São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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A vida em suspensão



Em "O Bom Soldado", Madox Ford faz um retrato cruel da sociedade vitoriana

MARCOS FLAMÍNIO PERES
Editor-adjunto interino do Mais!

A história que o narrador de "O Bom Soldado" se propõe a nos contar é aparentemente banal. Gira em torno da vida sólida, estável e sem incidentes que levam dois casais endinheirados -um inglês e um americano- na Inglaterra dos bons costumes e da moral vitoriana de fins do século 19.
"Pessoas de bem", Edward e Leonora, Florence e John -o narrador- convivem em uma aparente harmonia durante quase dez anos, tocando suas vidas amenas entre estadas em balneários e passeios pela Europa, um relacionamento "em que tudo já estava estabelecido". Mas se trata de uma relação epidérmica, em que só regras e convenções rígidas ficam à tona, empurrando para o escuro a parte viciada, como "uma bela maçã apodrecida no miolo".
Uma atmosfera rarefeita em que a vida mantém-se em estado de suspensão induzida, prestes a despedaçar-se. Para poder casar-se, Florence ocultara do futuro marido a vida licenciosa que levara; sob pretexto de um mal do coração, portava-se como doente terminal de modo a poder manter relações com o amante sem despertar as suspeitas de John; tempos depois, ela e Edward iriam tornar-se amantes. Leonora, a par desta e de outras traições do marido, esforçava-se por ocultar os fatos de todos, inclusive a situação financeira do casal, que declinava rapidamente. Em um mundo dominado pelo orgulho e a reserva, em que a contenção é regra, o conhecimento se dá por detalhes. Assim, é por meio da troca de olhares entre Florence e Edward que Leonora se dá conta da paixão entre ambos, antes mesmo de sua consumação.
A situação se precipita quando entra em cena a jovem Nancy Rufford, recém-saída do convento. Único caráter inteiramente puro, Nancy é estraçalhada em meio a um jogo velado de intrigas e acaba ficando louca. O suicídio -à espreita das personagens como a única alternativa possível- se consuma ao final da história.
Dispersos, os fatos apontam para uma notável harmonia. Tomados em conjunto, desvendam existências vincadas pela hipocrisia. Daí a fina ironia do narrador.
No limite, "O Bom Soldado" é um esforço contínuo de John -o narrador- em tomar a justa distância narrativa de modo a compreender sua existência -"o negócio do romancista é fazer com que você veja as coisas claramente". Se John, como personagem, ignorava o que se passava -"Que chance teria contra aqueles três jogadores endurecidos, que estavam todos unidos para esconder seus lances de mim?"-, como narrador, vendo a si mesmo como personagem dentro do olho da tormenta, narra em busca de coerência mínima, buscando juntar os cacos da experiência para compreender o absurdo que foi sua vida - "Um mundo estranho e fantástico, em que tudo é escuridão".
A busca da distância narrativa ideal certamente o inglês Ford Madox Ford - pseudônimo de Ford Hermann Madox Hueffer (1873-1938)- herdou de Joseph Conrad. Os dois foram amigos e chegaram a escrever três romances a quatro mãos. De Conrad percebe-se em "O Bom Soldado" o narrador que não tem certeza de nada do que conta, que se surpreende a cada momento com os rumos que toma a história, como se fugisse ao seu próprio domínio.
Mas em "O Bom Soldado" -publicado em 1915- esse recurso adquire vida própria devido aos constantes vaivéns no tempo e no espaço, que desmontam a história aparentemente retilínea e sem percalços. O narrador espia sorrateiramente por trás da cortina para descobrir as motivações de uma peça de que participou, embora não o soubesse. Com os recursos da épica -a narração- tateia em busca de uma visão totalizadora, capaz de dar algum sentido à sua existência: "Estou contando esta história, sei disso, de uma forma muito errática, de modo que pode ser difícil para qualquer um achar seu caminho através do que pode ser uma espécie de labirinto".
Mas, como em uma peça de Pirandello, a coerência nunca chega, pois há cortinas e cortinas além: "Não sei nada. Estou muito cansado". Nas cenas finais, mesmo a natureza se impregna de amargura: "Posso ouvir os passos da ruína e do desastre se aproximando".
Há outras linhas de tensão no romance, como as oposições entre valores americanos e ingleses, católicos e protestantes e também a questão de classes. Mas a riqueza dos contrastes se enfeixa no esforço do narrador em tentar rearranjar essa existência, que foi a sua.
Compreender uma vida banal, mas que resultou em um caso de loucura e dois suicídios. De fato, o título original do livro, segundo nos diz o autor na "Dedicatória", era "A História Mais Triste". Ficou "O Bom Soldado" -referência ao valoroso capitão Edward Ashburham- por imposição do editor, preocupado em tornar o romance mais vendável. Sem dúvida o título é um contraponto irônico -mais um- à desoladora conclusão da narrativa: "Assim a vida vai sumindo aos poucos".



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