São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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Kafka aos pedaços

Ensaio de 1969 do crítico Günther Anders é fundamental,porém controverso, ao tratar o escritor tcheco como realista

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Kafka - Pró e Contra", de Günther Anders [1902-92], publicado no Brasil em 1969 pela fundamental coleção "Debates", da editora Perspectiva, e agora reeditado pela Cosacnaify, tem recebido muitos elogios.
Para seu tradutor, Modesto Carone, que é também o mais importante tradutor de Kafka para o português, trata-se provavelmente da melhor descrição do lugar do autor de "O Processo" na literatura contemporânea; para Samuel Titan Jr., "o Kafka de Anders é um autor que não se presta nem à trivialização proverbial nem ao desfrute literário"; para Bernardo Carvalho, "é um texto fundamental no que diz respeito à recepção dessa obra construída sobre paradoxos".

Os contras do livro
Pode ser implicância deste crítico, mas talvez não fosse de todo equivocado aplicar a Günther Anders o princípio que ele usou em Kafka e perceber que o estudo também tem seus "contras", que serão aqui brevemente lembrados, uma vez que os vários "prós" existentes já foram tão recordados.
Um exemplo: "As instâncias judiciais, no romance "O Processo", representam duas coisas: por um lado, os "pobres", cuja existência torna a própria existência uma "culpa" (...). Mas, por outro lado, muitos membros do "mundo", portanto da classe dominante -e justo aqueles que consideram a consciência social de K. uma vergonha-, conservam o mais estreito contato com esse tribunal. Essa duplicidade só pode ser esclarecida por Kafka ter experimentado uma consciência pesada em duas direções: não só sentia como culpa o fato de não pertencer aos totalmente não-prejudicados, como também, ao mesmo tempo, o de não fazer parte do "mundo" -ou seja, o fato de ser um "incapaz'".
Esse trânsito direto entre obra, vida e mundo na análise, mesmo quando feito com todas as mediações e cuidados, pode ser bem complicado. O caso específico, que se repete com regularidade ao longo do texto, soa no mínimo bastante ingênuo na atualidade, tornando difícil para o leitor não lembrar do comentário de Adorno de que o escritor tcheco fora rebaixado à categoria de "escritório de informações sobre a condição eterna ou atual do homem"...

Contradição em termos
Outro exemplo: "Confundir esses graus de realidade é um dos efeitos didáticos intencionais de Kafka. Uma vez que, como crítico de seu tempo, considera tão-somente ideológicos numerosos fenômenos reputados como reais por natureza, embora julgue muito reais outros cuja realidade é encoberta ou borrada, ele procura abalar a firme armação do que vale como real ou irreal".
Será que expressões como "efeitos didáticos intencionais" ou "crítico de seu tempo" não são problemáticas e talvez precisassem ser, com o perdão da tautologia, problematizadas? Na verdade, a questão conflituosa reside em um pressuposto fundamental, que é uma espécie de conclusão reiterada após inúmeros argumentos apresentados por Anders: Kafka é um escritor realista.
Trata-se de idéia controversa, já que se poderia pensar que, pelo contrário, Kafka é um dos marcos iniciais do fim de um longo predomínio da literatura realista.
De qualquer modo, como escreveu certa vez o norte-americano Robert Alter (aliás, autor de vários textos sobre o criador de "A Metamorfose"), o "realismo literário é uma tantalizante contradição em termos".
O debate a respeito de tais posições teóricas é longo e não está, evidentemente, terminado. Mas vale registrar a sensação de que, da leitura de "Kafka - Pró e Contra", resulta um Kafka decisivo, de quem, contudo, parece faltar uma série de pedaços.

ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.


Kafka - Pró e Contra
Autor:
Günther Anders
Tradução: Modesto Carone
Editora: Cosacnaify
(tel. 0/xx/11/3218- 1444)
Quanto: R$32 (174 págs.)



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