São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

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+ memória

Leia entrevista inédita que o filósofo Paul Ricoeur, morto no último dia 20, deu à Folha

Teoria da solidão impossível

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 2002, o filósofo francês Paul Ricoeur -que morreu aos 92 anos, no último dia 20- concedeu uma entrevista exclusiva à Folha, por ocasião do lançamento [na França] de seu livro "A Memória, a História e o Esquecimento". Tal entrevista nunca foi publicada. Leia a seguir alguns trechos.

 

Folha - Gostaria de começar com uma questão a respeito da sua trajetória intelectual e de seu primeiro livro, "A Filosofia da Vontade", que apareceu em um momento filosófico dominado pela fenomenologia. Quais foram as coordenadas que o levaram a escolher o problema da vontade como tema filosófico?
Paul Ricoeur -
Creio que há duas razões, se é que podemos reconstruir nossa própria história, já que somos narradores de nós mesmos tão inseguros quanto os outros também o são. Antes de mais nada, havia a situação da fenomenologia. A meus olhos, ela estava marcada pelo lugar ocupado por Sartre e Merleau-Ponty. Ora, minha referência era Merleau-Ponty, pois eu não me interessava muito por Sartre e pela sua oposição entre o ser e o nada. Nesse quadro, depois da "Fenomenologia da Percepção", eu me perguntei: o que resta a fazer? A resposta, por subtração, era a região prática.
De outro lado, tinha um interesse de longa data a respeito da vontade má, que se exprimirá no livro seguinte, sobre o simbolismo do mal. Mas, primeiramente, era necessário falar sobre o problema da vontade sem relacioná-lo ao problema moral. Desta forma, eu podia articular uma preocupação antiga, que vinha do meu questionamento sobre a religião, e uma solicitação do presente.

Folha - Depois dessa obra o senhor voltou-se à psicanálise. O que exatamente o interpelava em Freud?
Ricoeur -
Aqui também minha resposta será dupla. Primeiro, pensemos a psicanálise em relação à fenomenologia. Sabemos que a fenomenologia coloca seu foco principal na questão da consciência. Logo, o inconsciente aparecia como um "desafio" epistemológico. Ora, eu levei muito a sério a noção de inconsciente enquanto algo irredutível ao que Sartre havia compreendido como má-fé. Minha questão era: há lugar para o inconsciente na fenomenologia? A resposta era "não". Nesse sentido, era necessário deixar o "desafio" aberto pois, com o inconsciente, a fenomenologia encontrava seus limites. E lembremos que reconhecer seus limites é ainda fazer ciência.
Agora havia uma outra razão ligada ao projeto de que falávamos antes a respeito da vontade má. Eu tinha escrito um livro intitulado "O Simbolismo do Mal" dez anos após "O Voluntário e o Involuntário". Era a segunda parte do que eu chamara de "filosofia da culpabilidade". Lá eu desenvolvia a idéia de que nos grandes mitos o mal encontrava expressão adequada e, de maneira geral, em uma linguagem simbólica. Pense, por exemplo, no mito da queda.
Eu encontrei na psicanálise uma espécie de contestação. "Contestação" porque ela se aproxima da culpabilidade por meio do mórbido, e não por meio de uma justificação simbólica. Daí temas como a auto-acusação e autoperseguição. Eu tinha então um problema de balança. Tratava-se de saber o que era mórbido e o que era são na culpabilidade ou, antes, qual era a relação entre o normal e o patológico na má-consciência.
Mas havia também um problema relacionado ao estatuto do simbolismo. Pois há, na psicanálise, uma análise do simbólico a partir do sonho e da fantasia. Ou seja, Freud reconstrói o campo simbólico por meio do seu núcleo onírico. Há então uma confrontação dupla: temática, quanto à má-consciência, e epistêmica, se pensarmos no problema do estatuto do simbolismo.

Folha - Hoje se fala muito em uma "crise da psicanálise". Um assunto que também concerne os trabalhos do senhor, já que eles são alvo do antifreudismo norte-americano.
Ricoeur -
Se você está pensando nas críticas do [filósofo americano] Adolf Grünbaum contra mim, digo que elas erram totalmente de alvo.
Ele acredita que faço uma leitura hermenêutica da psicanálise, enquanto que, na verdade, eu a trato como um saber absolutamente estranho à fenomenologia. Deve-se analisar minha leitura da psicanálise a partir do que desenvolvo em "O Conflito de Interpretações". Pois é em um campo conflitual que a interpretação psicanalítica deve ser pensada. Conflitual em relação a mim, em relação à fenomenologia e também à hermenêutica de textos.
Hoje, me dou conta de que minha leitura de Freud pecou devido a uma espécie de superestimação do teórico. Eu li principalmente os artigos de sistematização. Ora, duas coisas são dominantes em Freud. Primeiro, as cinco grandes psicanálises (Dora, o pequeno Hans, o homem dos ratos, o homem dos lobos e o presidente Schreber) e, segundo, o papel da transferência. Para mim, a transferência tem uma relação muito precisa com o tema da crise, já que cada grande psicanalista suscitou um tipo particular de transferência que se traduziu na tendência a transformá-los em objetos de amor e de ódio.
Logo, o caráter polêmico da teoria está de uma certa forma inscrito no próprio ato terapêutico, que sempre será controvertido. Na verdade, a relação entre prática e teoria psicanalítica ainda constitui um grande mistério para mim.

Folha - Em vários livros, o sr. trabalhou o problema da intersubjetividade. Porém nunca há, de sua parte, o abandono da idéia de "sujeito" e da análise de suas funções intencionais. Como é possível conservar essa espécie de ontologia da primeira pessoa sem entrar na metafísica do sujeito?
Ricoeur -
Depende do que você chama de "metafísica do sujeito". Se você está pensando em Heidegger e sua crítica à pretensão do sujeito em ser o fundamento de todas as coisas, é bom lembrar que esse é um extremismo filosófico que ninguém nunca sustentou. A colocação de Heidegger é mais da ordem de uma construção-limite. Não quero entrar em polêmica com Heidegger, mas o que é interessante nele é seu próprio pensamento, e não a maneira como ele coloca todo mundo sob a etiqueta comum de "metafísica", que teria reinado de Platão até o momento em que Heidegger em pessoa aparece.
Afinal, no espaço de tempo de Parmênides a Heidegger aconteceram algumas coisas.
Analisemos o caso daquele que é visto como o fundador da filosofia moderna do sujeito: Descartes [1596-1650]. Desde o início das "Meditações", há "Eu" e Deus, esse Outro absoluto. No fundo, o que Descartes sempre disse é: "Eu não estou sozinho". Isso é algo que aparece mesmo no estilo do seu texto. Lembre-se de que, nas "Meditações", as objeções e as respostas fazem parte do texto cartesiano.
Do meu ponto de vista, teríamos realmente uma metafísica do sujeito com Fichte. Sequer o sujeito kantiano é um sujeito absoluto, já que há um "Eu" numenal engajado na prática. Mas mesmo no caso de Fichte nós sabemos que ele só pôde ir até o fim em uma filosofia do sujeito à condição de duplicá-lo. Se há um pensador da intersubjetividade, esse pensador acaba sendo o próprio Fichte; basta ver seus escritos sobre o direito natural. No fundo, isso mostra como ninguém pensou o sujeito fora de uma situação dialógica.

Folha - Quer dizer que não há, ao pé da letra, "filosofia do sujeito"?
Ricoeur -
Não nesse sentido. Podemos economizar muitos problemas se formos mais atentos à filosofia do direito. Pois o problema da alteridade e da pluralidade sempre esteve presente no direito e na filosofia política, graças às noções de dano feito ao outro e de justiça devida. Seria necessário seguir uma outra via: a de Hobbes, Locke, Leibniz, em suma, toda a tradição do direito natural. Quer dizer, no meu ponto de vista, não é exatamente Descartes que preserva a intersubjetividade, já que ela estava no coração dos filósofos do direito natural. E aqui penso principalmente em Pufendorf [1632-94].
O problema é que a história da filosofia negligencia muito essa corrente não-cartesiana da reflexão sobre o sujeito e a intersubjetividade.


Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).

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