São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

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+ cultura

Primeiro volume da autobiografia de Bob Dylan mostra o início da carreira, nos anos 60, as impressões do meio musical e a relação tensa com sua época e seus fãs

O cantor CONTRA AS MULTIDÕES

Reprodução
Bob Dylan em turnê pelo Reino Unido


ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Anunciado como o primeiro volume das memórias de Bob Dylan, "Crônicas" [ed. Planeta, tel. 0/xx/11/ 3088-2588, 328 págs., R$ 44,90] é leitura incontornável para quem tem interesse na música popular e na cultura norte-americanas do último século. Incontornável, mas não penosa: o livro se lê inteiro com prazer e alguma vez com empolgação. Mas não é livro que agrade necessariamente aos fãs, que nele aparecem em geral como indesejáveis, invasivos e uma ameaça à saúde física e mental do ídolo e de sua família.
Não poucas vezes, Dylan aponta a arma contra eles -e não apenas metaforicamente. A esse respeito, aliás, o terceiro capítulo, que trata do ano emblemático de 1968, é absolutamente brutal. E menos do que patentear o seu desejo de se livrar da aura de "príncipe do protesto" ou de "expressão autêntica da consciência perturbada e preocupada dos jovens EUA", como o chamou o orador de Princeton que lhe entregou o título de doutor honoris causa daquela universidade, Dylan deixa ver que ainda hoje não é pequeno o seu ódio pela mitologia dos anos 60 -incluindo-se a mitologia Bob Dylan, ao menos na vasta parte fora de seu controle, que balizaria a vida inteira que lhe restava para viver.
Os cinco capítulos do livro não seguem uma ordem cronológica estrita, e a sua disposição é engenhosa, a começar pelo fato de que as memórias do primeiro volume começam e terminam com a mesma cena: Dylan assinando o seu primeiro contrato, e logo com a Columbia Records, de John Hammond, em 1961. Isso se passa não muito tempo depois de ter chegado pela primeira vez a Nova York, vindo de Minneapolis, e, antes, da região do cinturão de ferro em Minnesota.
Nesse mesmo dia, é entrevistado pelo responsável pela divulgação dos artistas da Leeds Music Publishing Co. e já começa a sua conhecida série de invencionices biográficas, que assimilavam a sua história pacata de garoto de interior à vida vagabunda e aventureira de seu ídolo, Woody Guthrie [1912-67], o maior nome da música "folk" americana. Advirto que, felizmente, informações biográficas objetivas tampouco são o forte das presentes memórias.
A maior parte deste primeiro volume se refere justamente ao inverno de 1961, desde que Dylan chega a Nova York até a fatídica assinatura que o revela ao mundo. Em pouco tempo, familiariza-se com a cena musical do Greenwich Village, o bairro boêmio da moda, apresentando-se nos cafés e clubes preferidos de "folks" e "beats", acompanhado somente da gaita e do violão, com um repertório baseado nas assim chamadas "canções de protesto", de autoria de Guthrie. Tudo isso, entretanto, é bem conhecido e está mais bem contado nas várias biografias de Dylan e nas enciclopédias de rock and roll.
O que é mesmo bom no texto de Dylan são os retratos fulminantes que cria das pessoas que conhece -ou talvez devesse dizer: das personagens que cria-, os quais raramente ultrapassam um quarto de página, mas sempre acham o tempo justo para lançar uma ou duas pinceladas que definem o sujeito para o resto da vida.
Por exemplo, falando de Bono Vox [da banda U2], diz que, se ele tivesse vindo mais cedo para os EUA, certamente seria policial, do tipo especialista em arrancar confissão de alguém; ou, quando comentando a impressão que lhe causou Joan Baez [cantora "folk" da década de 60] na primeira vez em que a viu, num programa de TV, afirma que ela parecia um ícone religioso em cujo altar sentia-se compelido a se sacrificar.

Ópera ou "mariachi"
Melhor ainda é quando Dylan descreve suas impressões das músicas que ouvia (e ele ouvia música o tempo todo) ou dos livros que lia nas bibliotecas dos amigos. Por exemplo, quando afirma que, quando escutava Roy Orbison [1936-88], nunca sabia se estava ouvindo "mariachi" ou ópera (impressão certamente corroborada por "Cidade dos Sonhos", de David Lynch) ou que, quando Robert Johnson começava a cantar, ele parecia saltar com armadura completa direto da cabeça de Zeus.
Não se trata de uma ou outra sacada espirituosa ou apenas de um achado esperto deixado ao léu: a narrativa das memórias é articulada em torno dessas imagens metafóricas, irônicas, equívocas, nas quais o objeto parece capturado de uma vez por todas, e quem o descreve, ao contrário, parece cada vez menos definido, pois não se sabe até onde a metáfora é feita com simpatia ou maldade. Mais provavelmente com ambas. Em matéria de livros, os comentários são ainda mais divertidos, tocando mesmo o histriônico.
Por exemplo, quando abandona a leitura de Freud, diante da suspeita de um amigo de que ele fosse o guru dos "top guys" da propaganda na TV. Em relação a Maquiavel, discorda de que melhor era ser temido do que amado; para ele, ser amado era muito mais assustador.
Do ponto de vista da narração, o grande capítulo do livro é o quarto, que trata dos eventos de 1987 que culminam na gravação de "Oh Mercy", álbum produzido por Daniel Lanois, em Nova Orleans, e lançado em 1989. Partindo de um "freak accident" no qual teve a mão seriamente machucada, Dylan relata os tempos difíceis que se seguiram, quando chegou a pensar em aposentadoria do mundo da música para entrar no dos negócios e assim tentar, por uns tempos, a vida comum.
A misteriosa "vinda", nas madrugadas, de umas 20 canções, que depois seriam a base do novo álbum, é apenas uma das peripécias do capítulo. Dylan descreve, com minúcia e agudeza, os dilemas musicais e existenciais surgidos durante a gravação do álbum, centrados no embate, por vezes dramático, apesar da nenhuma ênfase sentimental da narração, entre o desejo de Lanois de descobrir ainda um verdadeiro Dylan e o seu próprio, de encontrar uma nova audiência, menos comprometida com os seus discos "clássicos".
Para encerrar esta breve notícia, cabe apenas perguntar pelo sentido de um livro de memórias que se intitula "Crônicas". O termo em inglês ["Chronicles"] não tem a ver com as crônicas do cotidiano, que no Brasil têm seu melhor modelo em Rubem Braga, mas com o cronicão medieval e os livros das linhagens de um reino. Não há crônica de gente reles. Ao ler, pois, um título como esse atribuído a um livro de memórias de Bob Dylan, também aqui as metáforas equívocas estão no centro do jogo. De um lado, é como se o livro tratasse de coisas antigas, ancestrais, de dinossauros, para usar o jargão roqueiro apropriado ao caso.
De outro, é como se tratasse verdadeiramente de contar menos as memórias de um indivíduo do que os feitos de uma linhagem aristocrática. E de que linhagem se trata, afinal? Em que linhagem Dylan se pensa? A pergunta poderia ser refeita da seguinte forma: a que se conforma Dylan, quando percebe que tem o direito de não criar nada além do que simplesmente é ou faz? A resposta, meu amigo, Dylan apenas assopra. Para mim, contudo, ela está dada na cena inicial e final do volume: a assinatura do contrato que lhe oferecia John Hammond.
Ora, Hammond era um Vanderbilt, "a mais genuína aristocracia norte-americana", como anota Dylan, mais de uma vez. E o que o aristocrata lhe consignava ao assinar o contrato era igualmente o reconhecimento de que participava de uma outra linhagem, a dos seus grandes músicos, além de todos os gêneros. É a eles que Dylan assume pertencer em última instância: ao tronco de Billie Holliday, Teddy Wilson, Charlie Christian, Cab Calloway, Benny Goodman, Count Basie, Lionel Hampton, Woody Guthrie, Robert Johnson, Elvis Presley, Johnny Cash, Roy Orbison e outros.

Alcir Pécora é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).

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