São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997.



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LIVROS
Memórias de um historiador

Em "Negócios e Ócios",Boris Fausto conta a história de sua família de imigrantes


RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Um historiador que decide escrever um livro de memórias sobre sua própria família é algo pouco comum. "Até que ponto faz sentido publicar um escrito desse tipo?", se pergunta o autor na introdução, sobre o tipo de obra que os franceses batizaram como "ego-história".
A família de Boris Fausto, um dos principais historiadores brasileiros, é certamente única, mas não é tão diferente de muitas outras de imigrantes em São Paulo na primeira metade do século.
O próprio Fausto, especialista em história contemporânea brasileira, notadamente a Revolução de 30, dá a resposta: "A meu ver, a busca de uma audiência mais ampla para um escrito do gênero da 'ego-história' se justifica quando ele combina as esferas pública e privada; ou seja, quando a narrativa se insere de algum modo em um universo coletivo, dizendo respeito a uma etnia, a uma nação, a uma classe social etc.; e também quando as relações internas entre os membros da família ajudam a iluminar um quadro cultural mais amplo, dizendo respeito ao modelo familiar de uma sociedade".
Fausto exagera na justificativa. "Negócios e Ócios - Histórias da Imigração" pode ser lido pelo motivo habitual que leva um ser humano a abrir as páginas de um livro -pelo prazer. É a história de uma família, contada com atenção, carinho e mesmo humor por um membro dela. Não chega a ser uma novela de televisão, mas depois de começado, o livro atrai o leitor curioso em saber o destino daqueles personagens -e alguns deles, como o simpático José Comprido, foram talhados para as páginas de um romance, se não tivesse ele andado, trabalhado e amado, ao vivo, em São Paulo.

Folha - Por que um historiador escreve um livro de memórias, ainda mais historiando a própria família?
Boris Fausto -
O fato de ser historiador dá algumas vantagens, que é você pegar o grande contexto em que se move a história familiar. No caso, a história da Espanha e Turquia. O livro tem uma digressão mais ou menos longa que é histórica, sobre o povo judeu, os sefaradi. Mas certamente não fui movido por isso. Minha atração central foi fazer uma história familiar.
Folha - Uma história familiar não traz problemas pessoais ao historiador quando ele tem que descrever coisas íntimas, como o tio que frequentava o bordel?
Fausto -
Ele é uma pessoa que me é muito cara, um personagem do qual sempre gostei. Ele morreu, não sei como reagiria se estivesse vivo, eu teria que consultá-lo. Ele morto, as coisas ficam mais fáceis. Ele fica engrandecido, era assim mesmo, o homem que convivia com as putas, que gostava das corridas de cavalos, que era profundamente sensível. Era uma parte muito viva da família.
Folha - Até dá para entender por que o senhor desistiu de escrever um romance. Essa pessoa, o José Comprido, já tem todas as pinceladas de um personagem de romance, e é real.
Fausto -
Tenho feito isso com personagens que me parecem dignos de ter sua história contada, eles têm frequentado a seção "Memória", no Mais!, com alguma continuidade. São situações vividas, de personagens de romance, mas, como não tenho fôlego para um romance, prefiro fazer essa memória, essas histórias curtas.
Folha - Isso contrasta com seu trabalho de historiador, no qual lida com figuras públicas, como Getúlio Vargas. Não lembraria também essa moda da história da vida privada, de personagens que não são os principais de uma época, mas que fazem parte dela?
Fausto -
Se insere nisso. Minha motivação pessoal é uma micro-história familiar, mas, sem dúvida, entra nessa corrente de valorizar as coisas da vida privada, não no sentido anedótico, só de contar historinhas, mas porque essas histórias familiares exploram a vida cotidiana, exploram, como no meu caso, o contexto de famílias imigrantes, suas dificuldades, suas facilidades de adaptação. Naturalmente, os psicólogos podem levar isso mais longe, os problemas das relações familiares, entre cunhados, irmãos, pais e filhos, no contexto de um determinado tipo de família.
Folha - O livro fala muito de São Paulo, tem uma atmosfera muito paulistana.
Fausto -
A imigração tem experiências diversificadas. Acredito que a experiência de famílias de imigrantes no interior tem um contexto diferente, como é o caso dos imigrantes alemães em Santa Catarina. É outra história, outra mescla, uma mescla diferente do que vem de fora com o que está aqui. O livro tem traços gerais dos imigrantes e, mais especificamente, de São Paulo.
Folha - E o caso do judeu, que nunca deixa de ter essa "judaicidade"?
Fausto -
Eu estou seguro de que o judeu é diferente dos outros, são diferentes como são os japoneses. Os italianos são menos -hoje um sobrenome italiano ou brasileiro tanto faz, são intercambiáveis. No caso dos judeus, a diferença é a religião, a crença, a insistência nos casamentos intra-étnicos, tudo isso dá uma especificidade ao grupo judeu. Mas, em São Paulo, eles são absolutamente integrados.
Folha - Há uma personagem no livro que diz que o futuro da sua família era casar com não-judeus.
Fausto -
Minha família se diferenciou da maioria das famílias judaicas. Com uma única exceção, todos os da segunda geração se casaram com mulheres de origens católicas. A primeira pessoa foi o seu Alberto, que não é meu parente, mas é chegado, sofreu resistência familiar muito forte. A mulher tinha dois "problemas": era católica e pobre. Eu soube depois que ela disse que estava abrindo um caminho. E aconteceu.
Folha - Desculpe a indiscrição, mas isso teria a haver com o fato de o senhor ser de esquerda?
Fausto -
Não necessariamente, há muitos judeus de esquerda que fizeram casamentos no interior da comunidade judaica. Eu diria que tenho um "iluminismo" que vinha do meu pai, que fazia um combate anti-religioso dentro da família, uma maneira a mais de brigar com os cunhados.
Folha - Além do mais ele era askhenazi e não sefaradi, algo que os não-judeus têm dificuldade em entender.
Folha -
Exato, ele era de um ramo diferente, e visto de outra forma. Eu, antes de ser de esquerda, deixei de ser religioso. Li uma entrevista com o Eric Hobsbawn no Mais! (22/06/1997) com que me identifiquei muito. Ele foi questionado sobre sua relação com o judaísmo e respondeu que não tinha nada que o aproximasse da religião, mas seguia o conselho da mãe: "Nossa família abandonou a religião, mas nunca negue que você tenha uma origem judaica". Eu me vi espelhado, um belo espelho.
Folha - Quais são as principais diferenças entre as diferentes gerações de imigrantes?
Fausto -
A primeira faz um esforço grande de se adaptar, de entender a terra de recepção, se possível garantir a sobrevivência e, se possível, ascender socialmente. A segunda faz questão de marcar sua brasilidade, "somos tão brasileiros, ou até mais", do que os brasileiros mais velhos. A terceira geração procura as raízes. Muitos pesquisadores que trabalham com imigração são gente de terceira geração. Isso em grandes linhas.
Folha - Uma curiosidade, que não está no livro. Por que desistiu do direito e foi parar na história? É assunto de uma próxima obra?
Fausto -
Não, eu vou voltar a escrever história. Eu não desisti propriamente do direito, eu vivi do direito, fui procurador do Estado e, depois, professor universitário. Dizer que eu abandonei seria cuspir no prato, mas para minhas necessidades intelectuais o direito é uma atividade insatisfatória. Como quase todo mundo, tentei a literatura, depois me interessei por história. Fiz uma coisa paralela, fui advogado, mas sempre abri um tempo para ser o que os franceses chamam de "historiador de domingo". Depois me converti em historiador. Acho curioso quando me perguntam a profissão e escrevem que sou um um historiador profissional. Nunca me encarei muito como profissional da história.


LANÇAMENTO "Negócios e Ócios" será lançado amanhã, às 18h30, na Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033).

A OBRA

Negócios e Ócios - Boris Fausto. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 248 págs. R$ 24,00.




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