UOL


São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ literatura

O escritor paraguaio Augusto Roa Bastos fala de "Vigília do Almirante", que acaba de sair no Brasil e narra a história conturbada do descobridor da América

Os pecados de Cristóvão Colombo

Vinicius Mota
da Reportagem Local

Estamos entrando no futuro de costas, aos trancos." Esta é uma das falas, sombria e ironicamente premonitória, do Cristóvão Colombo transformado em personagem por Augusto Roa Bastos. O escritor, que nasceu no Paraguai em 1917, ganhou o Prêmio Cervantes, o mais importante da língua espanhola, em 1989. A tradução brasileira de "Vigília do Almirante" (por Josely Vianna Baptista) -romance de 1992- foi lançada na semana passada no país pela editora Mirabilia (tel. 0/xx/43/235-1499).


Augusto Roa Bastos


O livro (304 págs., R$ 35) pretende contar, como disse o autor ao Mais!, não a crônica do descobrimento da América, mas a história de "uma longa vigília de muitas noites em um mar incógnito, cheia de perseguições reais e fantásticas". Roa Bastos compõe um Colombo fragmentário, inconstante, frágil, que se vê -e realmente é- ameaçado por diversos flancos. Das artimanhas a fim de abrir uma brecha na corte dos católicos Fernando e Isabel que lhe permita se aventurar pelo "Mar Tenebroso" à patética peregrinação, já no fim da vida, pela Espanha atrás do reconhecimento do rei, o Colombo de Roa Bastos navega aos rastejos em seus labirintos reais e fictícios: talvez porque tenha recebido o castigo "reservado aos ambiciosos", como diz o autor a seguir.

Que tipo de recepção o sr. espera da publicação de "Vigília do Almirante" no Brasil?
Na verdade, não espero nada. Um autor deseja que seus personagens vivam suas próprias vidas, a partir do momento em que saíram do âmbito da imaginação, em que foram criados. Sim, me interessa criar pontes para facilitar a integração e o diálogo entre os povos. Sinto que temos permanecido isolados do Brasil durante anos, séculos. Os únicos contatos fortes que estabelecemos foram de caráter bélico ou de espionagem civil durante as ditaduras militares. Não creio que isso ajude para o diálogo e o entendimento. Depois veio a idéia algo platônica do Mercosul, um projeto de boas intenções, mas marcado pelas assimetrias entre Davi e Golias, entre países como o Brasil, um continente em si mesmo, e países como o Paraguai, com menos de 6 milhões de habitantes. "Vigília do Almirante" é a história de uma utopia que se tornou realidade. Nós somos os habitantes atuais dessa ilha imaginária com que Colombo sonhou equivocadamente. Todo o assunto foi um erro com alguns aspectos de tragédia e outros de ópera-bufa. Não seria boa idéia continuar esse mútuo descobrimento entre o mundo hispano-americano e o Brasil? Talvez essa interrogação seja a incitação mais atual dessa obra que agora nos reúne.

No livro, Colombo aparece diminuído como figura histórica. É um plagiador, um agente que, imerso numa mistura de ignorância e egoísmo, atua como um mero instrumento de um sentido histórico mais amplo, como encobridor, mais que como descobridor. Onze anos depois da publicação do livro, o sr. não acha que exagerou um pouco na dose de depreciação de Colombo?
Não me propus nenhuma empreitada iconoclasta. Colombo já é seu próprio mito. O homem e seus rastros se perderam atrás do mito. Nem sequer sabemos com certeza absoluta onde nasceu nem onde jaz finalmente -em Santo Domingo (República Dominicana) ou na Espanha ou em lugar nenhum. Os dois extremos que costumam definir uma existência, nele, resultam borrados. Sua gesta segue sendo discutida por estudiosos e ideólogos de todas as correntes e contracorrentes históricas. Por outro lado, não acredito ter depreciado o significado do Almirante. Ou digamos que não foi uma intenção manifesta. Unicamente queria devolver a dimensão legendária da literatura a uma figura que a educação escolar nos apresenta de um modo muito ingênuo, como um deus ex machina que vem resolver o enigma do Descobrimento. Estão os aspectos controvertidos muito mesclados nessa figura que agora nos serve como tela refletora na visão do passado. Por um lado, o último renascentista e primeiro modernista, o Colombo da épica, que aparece como o herói mitológico das façanhas impossíveis. Tem sonhos que se vão transformando em pesadelos. Ama a aventura. Deseja a paz de seu espírito convulsionado pelas mesquinhezas de seu tempo; por momentos é um titã, mas no dia seguinte tem que mendigar diante das cortes. Por outro lado, um pobre homem preso na armadilha de um poder que se antepunha a qualquer decisão, pois avançava no tempo no mesmo passo com que avançava no espaço. A coroa da Espanha já havia estipulado tudo: perdas e ganhos. O Almirante tinha que realizar a façanha de chegar às Índias sabendo que sua recompensa seria menor que seu castigo.

Ao ler o romance, às vezes tem-se a impressão de que, no fundo da narrativa, há uma contraposição muito dura entre o "resplendor" das culturas instaladas na América na chegada de Colombo e a brutalidade e a ignorância do conquistador europeu. Então não havia possibilidade de diálogo entre uma e outra cultura? A violência, o genocídio, era uma necessidade histórica inexorável?
Esse choque era inevitável. O passado não é bom nem ruim: é incorrigível. Certamente não podemos negar o etnocentrismo europeu, algo que, de outro lado, foi "descoberto" pelos mesmos europeus. Mas tampouco seria saudável idealizar o "bom selvagem", no estilo de Jean-Jacques Rousseau. Creio que a mescla de contraposições nos pode devolver uma visão do passado renovada. Digo nos meus aforismos que o passado muda continuamente. Por suposto, não mudam os fatos, mas como conhecemos esses fatos. Como os interpretamos. Não acredito que essa "Vigília do Almirante" deva ser lida como a crônica do Descobrimento. É, como o título indica, uma longa vigília de muitas noites em um mar incógnito, cheio de perseguições reais e fantásticas e quer ser o reflexo das vacilações e decepções de um homem comum, o Almirante -a quem a história concedeu um papel magnânimo.

O Piloto Anônimo [a pessoa que informa a Colombo sobre a existência de terra no rumo do poente, mas cuja identidade não é revelada pelo Almirante] é a mais importante "não-personagem" da narrativa. Num plano mais alto, o Piloto é a representação da má consciência do povo conquistador? Uma má consciência que, por fim, permite que se desmonte o próprio mito do Descobrimento?
O Piloto é uma personagem evocada que assedia a consciência do Almirante. Sonha com ele, recorda-se dele, o invoca, discute com ele em seus momentos de solidão. Colombo se respalda nas palavras de um morto que lhe havia revelado, durante sua agonia, o caminho das Índias. Indicou rumos incertos, mas assegurando ter sido testemunha. Não sei se houve "má consciência" por parte da Europa naquele momento. O fervor renascentista de explorações e aventuras não deixava passar pela peneira da autocrítica as empresas que se lançavam ao mar. A curiosidade humana tem sido vista como um defeito desde os livros sagrados. Não nos esqueçamos do mito do Éden, de onde Adão termina sendo expulso por ter comido a fruta do conhecimento, instigado pela mulher. Adão e Eva eram felizes porque ignoravam o mal. Com o conhecimento, abriram os olhos e aprenderam o mal. Apesar disso, creio que foi um bom negócio. Não gostaria de viver feliz como um idiota simplesmente porque não sei o que se passa no outro lado. Esse conhecimento, prodigioso, o bem que Deus mais regateava, nos fez humanos com defeitos e virtudes. Com grandezas e misérias. É o mesmo pecado do Almirante, se se quiser. Você me dirá: "Mas, além disso, Colombo tinha ambições materiais". Bom, em todo caso, recebeu o castigo que, segundo Dante, está reservado aos ambiciosos no quinto círculo do Purgatório: estendidos sobre a terra, de bruços, choram durante séculos implorando o perdão. Não vemos assim o nosso Almirante? Implorando o perdão da história, depois de ter ambicionado riquezas e fama, para terminar morrendo pobre, depreciado e abandonado? O poder corrói a quem o tenta tomar desprevenido. O poder nunca dorme.


Texto Anterior: ET + cetera
Próximo Texto: Capa 29.06
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.