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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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Em "A Formação do Nome" e "Autobibliografias", que estão saindo no Brasil, o português Abel Barros Baptista se apóia em críticos como Derrida e Paul de Man para lançar um olhar inovador sobre o autor de "Dom Casmurro"

DESCONSTRUINDO MACHADO

por Luiz Costa Lima

Nos últimos anos, o crítico e ficcionista português Abel Barros Baptista dedicou dois livros a Machado de Assis. O primeiro, "Em Nome do Apelo do Nome" (1991), reaparece com outro título na edição brasileira, "A Formação do Nome" e um novo prefácio. O segundo, "Autobibliografias" (1999), acolhido pela mesma editora, mantém o título original. O exercício de extrema telegrafia que se segue buscará sua ossatura básica. Antes de tentá-lo, se note: quaisquer que sejam as reações que provoquem, é inconteste que os dois livros representam um momento excepcional no reconhecimento da estatura de Machado; ademais, poderá ele favorecer o reexame do que, entre nós, se tem entendido por literatura. Essa é a minha esperança. Já pelo modo como a eles me refiro posso supor que muito leitor se ponha na defensiva. Talvez essa postura seja inevitável -sendo apenas de esperar que não se manifeste pela tática frequente do muro de silêncio-, inevitável porque o argumento que Baptista desenvolve questiona a própria base do paradigma analítico aqui dominante. É o que se mostra pela análise de o que significa haver sido o romantismo brasileiro o fundador da reflexão literária nacional e a leitura contrastante do ensaio de Machado, "O Instinto de Nacionalidade". O privilégio do romantismo implicou a constituição de uma lei, que permanece bem ativa: "Instala a questão nacional como centro de gravidade da reflexão literária, torna ilegítima toda a tendência para encarar a possibilidade de a literatura resistir ao Brasil; por outro lado, integra no fio de uma tradição única e contínua as sucessivas e diversas interpretações do Brasil". Contra ela, o ensaio de 1873 nega à referência ao Brasil a condição de fundamento para o "projeto de construção de uma literatura nacional".

Cor local
Sem me deter no argumento, sublinho tão-só uma de suas consequências: ao passo que "o instinto de nacionalidade" se projeta sobre o passado, "de que se vê como prolongamento", o ensaio de Machado recusa à cor local dos poetas árcades o caráter de sinal distintivo da brasilidade, negando que por isso já mereceriam ingressar na história da literatura nacional. Ao descartar-se da carga do "instinto", Machado, na esperteza de que se tornaria mestre, afasta-se "de uma tradição literária homogênea", do autoritarismo cordial que já se instalava. Com pés macios, ele abre o coro dos descontentes.
Em vez de produto da transposição da realidade para o texto, a literatura supõe um processo de construção discursiva. O problema básico de seu entendimento implica a indagação da linguagem. Nosso essencialismo romântico, em contraste com a empresa dos "primeiros românticos", a esmagava na raiz, tornando impensável o que seja a ficcionalidade. Daí que seu questionamento enfatize a presença do ficcional, da "ficção que ameaça toda a autobiografia", como dirá a propósito das "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e que afetará a questão do autor. Mas, perguntar-se-á o leitor, há uma questão sobre a autoria!?
O crítico português responderia: tanto há e é ignorada por força do paradigma dominante no Brasil que a crítica vigente se esforça em subsumir os diversos autores supostos dos romances machadianos -Brás Cubas, D. Casmurro, o Conselheiro Aires- na figura do autor real, o próprio Machado. Mas, insistiria o leitor: por que a subsunção não estaria correta? Ou por que não passaria de mera convenção que, já na fundação do romance moderno, Cervantes emprestasse seu Quixote a um certo Cid Hammete? Porque, responder-se-ia, a questão do nome do autor real ou fictício, em última analise, remete à peculiaridade da linguagem ficcional.
De maneira menos inexata: para que se considere a presença de autores fictícios uma convenção secundária e desprezível será preciso: a) que se conceba a linguagem como transparência, simples meio de conversão do mundo em sons, letras, e palavras; b) que, além do mais, se pressuponha que tal conversão é passível de pleno êxito, ou seja, que a palavra, afinal, dirá plenamente e tão-só o que, na condição de coisa do mundo ou de fato social, já se mostrava antes dela. Considere-se ainda o que "Autobibliografias" desenvolve: é falsa a suposição de que a composição tipográfica teria tão-só otimizado a concepção do livro como metáfora da unidade, pois sua capacidade multiplicativa não interfere na plurivocidade da fábula ficcional .
Como o suposto leitor não se convenceria com tanta facilidade, procuro uma formulação mais abrangente. Para isso talvez baste articular melhor o que já havia dito com o que agora se acrescentou a propósito do livro tipográfico. Formulo assim a conexão: a afirmação de uma essencialidade nacional -de um quid nacional a que a literatura, para ser brasileira, estaria obrigada a converter em palavras-, não só implicava e implica ignorar a ficcionalidade, com a ênfase consequente nos fatores histórico-sociológicos, não só a crença na transparência da linguagem, mas ainda que a intenção autoral se manifesta na obra que assina. A multiplicidade de cópias iguais, propiciada pela tipografia, teria favorecido essa concepção se se contrapusesse à heterogeneidade interna do texto ficcional.
Sem negar a importância de machadianos que, total ou parcialmente, integram esse modo de ver -Eugênio Gomes, Augusto Meyer, José Guilherme Merquior e Roberto Schwarz-, trata-se, para o crítico português, de melhor concretizar o paradigma a que se opõe. A ele chamará "o paradigma do pé atrás".
São seus traços fundamentais: 1) o documentalismo -a literatura dá forma ao que já estava, ainda que de modo indistinto ou pouco claro, no estado do mundo e na configuração da sociedade (a passagem do romantismo para o documentalismo contemporâneo implica a menor ênfase sobre o estado do mundo -o que os nossos românticos sintetizavam como a "nossa natureza"- e o pleno realce da configuração social); 2) a intencionalidade, que daria um sentido unívoco à fábula ficcional. Esta, de sua parte, supõe: a) "(...) Todo o livro, onde apenas o autor suposto fala, é verdadeira e intencionalmente escrito contra o autor suposto, nisto consistindo a originalidade artística de Machado" ("Autobibliografias"); b) Se um livro contém mais do que o autor se propunha ou menos é porque o autor não atingiu a transparência que a linguagem punha a seu dispor.
É sobretudo contra a intencionalidade que se volta Abel Baptista (o descrédito prévio do documentalismo poupa-o do trabalho). Sem a oposição ao intencionalismo, o próprio título de seu segundo livro será incompreensível. "Autobibliografias" significa a tentativa de, por meio do exame do que fazem os autores supostos e das notas ou prefácios que lançam dúvidas sobre sua intenção ou a fidedignidade dos textos que se lhes atribui, pôr frente a frente a versão deles e a do autor real; tentativa, e aqui está o elemento decisivo, afinal inconclusiva, pois "o dito difere de si próprio" ("Autobibliografias"). Desse hiato entre o que o autor real teria intencionado dizer, com ou sem a "colaboração" de supostos autores, e o efetivamente dito resulta a indecidibilidade do texto ficcional. A figura do indecidível não só se contrapõe à prática interpretativa do "pé atrás" como transtorna a leitura habitual dos cinco romances da maturidade machadiana. Considero esquematicamente apenas dois exemplos. O primeiro concerne às "Memórias Póstumas" (o interessado deverá recorrer à sua demorada demonstração). O "acidente" a ser explicado é a alusão ao "emplastro Brás Cubas". O início do romance é seu lugar porque "só o emplastro Brás Cubas pode cumprir a função de princípio organizador da autobiografia" ("A Formação do Nome"). Mas de fato a organiza, isto é, deixa transparecer a intenção do defunto autor ou, melhor, a verdadeira intenção de Machado? Por um lado, a resposta pareceria afirmativa: "Atendendo ao modo como tudo se passou, o destino de Brás Cubas se cumpriu, se completou no emplastro: (...) cumpre declará-lo como verdadeira causa da morte". Por outro, entretanto, instala-se o verme que corrói as certezas: tudo seria diferente se a Brás a idéia do emplastro houvesse ocorrido antes. É considerando o embate entre certeza e contracerteza que o crítico conclui: "A morte projeta-se necessariamente sobre o conjunto da vida, mas não deixa, por isso, de resultar do acaso: o acaso de um golpe de ar". Nomeia-se o acaso e o acaso nega a suficiência da intenção. Isso a menos que se pense que, assim, estaria Machado afirmando que, mesmo uma memória post mortem, é incapaz de converter a vida que relata em um todo uno e auto-suficiente. A intencionalidade seria salva, diria em reforço do argumento de Baptista, ao preço, contudo, de se afirmar que o acaso impede o que se espera da intencionalidade autoral: declarar o sentido das memórias, isto é, negar que, mesmo ficcionalmente, a autobiografia dê coerência à vida que narra. A presença do acaso torna o romance indecidível. Se há por certo interpretações insuficientes, falsas ou grosseiramente erradas, não há a interpretação correta, isto é, que esgote o sentido do dito ficcional.

Resto do resto
É com o mesmo esquematismo que exponho o segundo exemplo. Ele tem por objeto o capítulo final de "Dom Casmurro". O narrador fictício recapitula seu casamento desfeito e por duas expressões se refere à memória que ali terminava: "Mas não é este o resto do livro. O resto é saber se (...)". A segunda aparece no último parágrafo: "E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber (...)". O intérprete se empenha em acentuar a divergência entre as duas expressões, "o resto do livro" e "o resto dos restos": "(...) "O resto do livro" concerne ao caráter de Capitu e aos ciúmes de Dom Casmurro, enquanto "o resto dos restos" respeita ao desígnio do destino qualquer que seja a solução para a pergunta a que responde o resto do resto" ("Autobibliografias"). No primeiro caso, é a volubilidade de Capitu, combinada ou não aos ciúmes de Bentinho, a responsável pela catástrofe doméstica. No segundo, o destino. O destino ou o acaso tornam infundada a certeza da resposta: a inconstância de Capitu, estimulada ou não pelos ciúmes de Bentinho, a "invenção" do triângulo amoroso pelo advogado-narrador etc. Dada a variedade das respostas, passa a ser tão parcial a leitura dominante antes de "O Otelo Brasileiro de Machado de Assis" (1960), de Helen Caldwell (que saiu há pouco no Brasil pela ed. Ateliê) -a traição de Capitu, como disse um certo intérprete, é uma traição metafísica (!)-, como a hoje preferida -Bentinho utiliza sua prática forense para escrever o processo contra sua mulher. Ambas são insatisfatórias porque não respeitam a dignidade da "questão de Capitu": "A possibilidade da inocência é inseparável da possibilidade de culpa". Diante do indecidível, como ainda considerar bastante o princípio da intencionalidade? Ele só tem sentido se se disser que o propósito de Machado era assumir a responsabilidade de desconhecer a resposta unificadora da fábula que compôs. Ora, sem essa unidade é o livro como metáfora do uno que se dissipa. E o nome do autor passa a indicar apenas sua responsabilidade jurídica pelo que escreveu. A tipografia, portanto, em vez de afirmar a unidade do livro, difunde a heterogeneidade interna da ficção. Não devo terminar esta apresentação sem antes sair do papel de expositor equidistante. Limito minha tomada de posição ao mínimo. O primeiro reparo concerne ao modo como Abel Baptista constrói seu argumento -não se discute sua extrema novidade quanto a Machado. Por explícita influência de Jacques Derrida -embora seja em Paul de Man que Baptista encontra a base conceitual para a caracterização do ficcional como indecidível- seu texto assume uma disposição claramente digressiva. Será lastimável que ela, embora certas vezes contraproducente, prejudique sua recepção. No entanto o desestímulo à capacidade reflexiva que continua a caracterizar os cursos de letras e a maioria das análises que se publicam entre nós tornam bastante previsível a reserva e a rejeição.

Estatuto da indecidibilidade
O segundo reparo diz respeito ao estatuto da indecidibilidade do texto ficcional. Sem negar que ele seja muitas vezes incontestável, suponho que o tomar como o ponto final do percurso analítico é um defeito inversamente proporcional ao do "paradigma do pé atrás". Se este desdenha a questão da ficcionalidade, para que privilegie seu caráter documental, o paradigma do indecidível, afirmando que a ficção neutraliza o mundo, falha pelo oposto: o ficcional passa a desconhecer qualquer referencialidade. Para o paradigma dominante, a leitura de um texto literário visa a reconstituir a posição de seu autor diante de sua realidade. A indecidibilidade responde pelo oposto: sem negar que os autores possam ter, como Machado, uma visão critica de sua sociedade, acrescenta que essa, afinal, é uma questão secundária. Diante da alternativa, diria que é aceitável e mesmo salutar afirmar que o interesse por um texto ficcional depende de ele, dentro de si, trazer um caráter indecidível, no sentido restrito e específico de o objeto ficcional não se esgotar na interpretação, por certo temporalmente variável, que se lhe dê. Desse modo, repudia-se a idéia da interpretação "definitiva". Seus defensores parecem contudo esquecer que a própria formulação do indecidível, historicamente motivada, não é a última palavra. Em vez de endossá-la, prefiro pensar que, do indecidível que hoje encontramos em Machado, se ergue a tematização da ruína com que, por seus autores fictícios ou por sua própria assinatura, o romancista diz do modo como se relacionava com seu mundo. O realce das ruínas em Machado, formulado por João Adolfo Hansen em texto ainda inédito em português, não se confunde com a afirmação de Abel Baptista: "A ficção do livro no processo de se escrever expõe a autobiografia arruinada pela autobibliografia". Sua formulação ainda supõe um "é" intemporal: próprio da ficção é ser indecidível. A isso será preciso acrescentar o horizonte temporal. Ou seja, reelaborar a operação da referencialidade.

Projeto em ruínas
Temporalizar a interpretação exigiria sua reformulação: nas coordenadas do mundo presente, o que ressalta é a ruína de todo o projeto. A ruína, para falar com Husserl, é um antepredicativo que motiva nossas predicações. Em palavras comuns: é um sentimento que nos predispõe para o modo como nos situarmos no mundo que nos coube. Nada impede que, se o mundo durar, receba ele outro sentido de orientação. E que o indecidível se temporalize noutro modo de ver. Tais reservas, contudo, em nada interferem no reconhecimento da contribuição do colega português. Ela abre um campo de discussão que tem se mantido fechado.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (ed. Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).



A Formação do Nome
271 págs., R$ 34,00 de Abel Barros Baptista. Ed. da Unicamp (r. Caio Graco Prado, 50, campus Unicamp, caixa postal 6.074, CEP 13083-970, Campinas, SP, tel. 0/xx/19/3788-1528).
Autobibliografias
604 págs., R$ 65,00 de Abel Barros Baptista. Ed. da Unicamp.


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