São Paulo, domingo, 29 de julho de 2007

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o caos ordenado

Em entrevista à Folha, os irmãos Campana afirmam querer "humanizar o design" e dizem que só foram valorizados no Brasil após fazerem sucesso na Europa

Eduardo Knapp-20.dez.2006/Folha Imagem
Detalhe do pufe "Vitória-Régia" (2001) e da cadeira "Banquete Jacaré" (2000), criações dos irmãos Campana


JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O design brasileiro atingiu a maturidade. Vão longe os tempos em que Lina Bo Bardi (1914-1992), defendendo que a arquitetura e o design deveriam beber na cultura brasileira, não passava de uma voz pregando no deserto.
"Por muito tempo fomos enquadrados em moldes alemães de indústria e tivemos um design fortemente influenciado pela Bauhaus: limpo, asséptico e insípido", afirma Adélia Borges, curadora do Museu da Casa Brasileira, em São Paulo.
"A primeira exposição dos irmãos Campana chamou-se "Desconfortáveis" e desde o título anunciava a ruptura com o dogma da funcionalidade", explica.
"Vindo de uma matriz forjada "de costas para o Brasil" [a Escola de Ulm], a discussão de identidade nacional foi enfrentada tardiamente pelo campo do design", defende Rafael Cardoso, professor do departamento de artes e design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O Brasil deixou de ser um satélite em relação aos grandes centros projetistas, como a Itália e a Alemanha, e descobriu -da década de 1990 para cá- que "é possível adequar a idéia de design a um local refratário ao design sem cumprir o esquema dos anos 1960", conclui.
"Nativista, macunaímico, antropofágico. Nenhuma dessas matrizes serve para o design moderno brasileiro, mas o que os irmãos Campana fazem, por exemplo, pode ser lido como antropofágico", explica Cardoso.
Para Adélia Borges, não há uma vertente mais forte no design brasileiro hoje: "Todas as tendências convivem, seja aquela fronteiriça entre arte e design, de que são os principais representantes, além dos irmãos Campana, Jacqueline Terpins e a dupla Luciana Martins e Gerson Oliveira, seja a mais ligada à tecnologia e à reprodutibilidade, como o trabalho de Fernando Prado".
"TransPlastic" é a mais nova invenção dos irmãos Fernando e Humberto Campana, a dupla de artistas que transfigurou o design brasileiro e provocou um refluxo na produção internacional de mobiliário, fazendo a indústria acolher etapas artesanais no processo de produção em massa, "humanizando o design", nas palavras de Humberto.
Isso está presente nas peças que seguem o conceito de "transPlastic": cadeiras de plástico coloridas recebem acabamento em vime trançado, criando um híbrido entre industrial e artesanal. As criações estão sendo atualmente exibidas na galeria Albion, em Londres, em exposição que fica em cartaz até 10/8.
Os designers partiram de uma visão, que está mais próxima da realidade do que da ficção científica, de que o plástico em anos futuros vai sofrer mutações e engolir o mundo ao seu redor.
A série "TransPlastic" conta uma história ficcional: imagina um mundo feito de plástico e matéria sintética que se torna solo fértil para criações transgênicas.
Fernando e Humberto entraram definitivamente para a história do pensamento sobre como morar e como viver ao inaugurarem uma instalação na meca museológica da transformação dos costumes, o Victoria and Albert Museum, em Londres.
Eles foram convidados a transformar o jardim John Madejski em uma instalação e exposição ao ar livre, criando telas de três metros feitas de bambu, arranjadas na área do gramado, formando passagens ricas em texturas, sombras e luz.
Ao longo do trajeto, instalaram seus bancos "Vitória-Régia" para criar situações de "lounge" para os visitantes. Desenhada em 2002, a peça ganhou nova edição apropriada para uso externo.
Os Campana escolheram essa obra porque o banco leva o nome da planta aquática amazônica que foi batizada para homenagear a rainha Vitória. A instalação faz parte das comemorações dos 150 anos de existência do museu.
Na entrevista a seguir, concedida à Folha em seu estúdio, Fernando e Humberto falam de seu processo de criação e do modo como, a partir de um olhar atento às coisas mais prosaicas do cotidiano, como ralos de banheiro ou pôsteres sobre os muros das cidades, eles constroem mesas, cadeiras, ambientes inteiros, luminárias e fruteiras que, além de belas peças de design, são manifestos da cultura da ecologia (mental, ambiental, subjetiva) de que o mundo necessita.
 

FOLHA - O design de vocês é reconhecido como tipicamente brasileiro no exterior devido ao uso que fazem de materiais precários e reciclados?
FERNANDO CAMPANA - Há indicações, que estão sobretudo no fazer, na forma de elaborar o trabalho, a forma de pensar que, para nós, significa fazer um retrato do que acontece no Brasil: ou seja, a fórmula de conseguir, da escassez, fazer muito.
HUMBERTO CAMPANA - Conseguimos levar o artesanato para a indústria italiana, que era algo que estava esquecido nas décadas passadas na indústria, essa coisa de humanizar o design, apostar em um design feito pela mão do homem, em vez de simplesmente cuspir milhões de cadeiras de plástico.
Essas ferramentas tornam uma coisa muito igual à outra, você não vê uma identidade, quem é quem, quem é o designer francês Philippe Starck, quem é o australiano Marc Newson, quem é o anglo-egípcio Karim Rashid. Parece que...

FOLHA - Tudo se equivale?
HUMBERTO - É, eu acho que, sem pretensão nenhuma, esse aspecto de trabalhar com a mão resultou em uma identidade muito particular do nosso trabalho.
FERNANDO - E isso teve um trajeto muito engraçado, porque tinha que chegar à indústria, não dava para ser designer de ateliê, fazendo edição limitada ou peça única.
Isso não cumpriria a função do design, que é ter uso, função. Conseguimos estabelecer esse diálogo com a indústria não cedendo a mudar o nosso perfil.
Hoje em dia, fazemos algumas coisas mais viáveis, como a fruteira "Blow Up" [lançada em 2006], por exemplo, que pode ser totalmente industrial.
Mas, antes de chegar a esse resultado, teve todo o processo de passar o conceito para a Edra [empresa italiana que fabrica a fruteira e diversas outras peças dos Campana].
Ou seja, não é mais o processo artesanal, mas existe o olhar, para quem vê o objeto, de uma manufatura.

FOLHA - Antes da luminária "Estela" (1997), primeira peça de vocês a ser fabricada industrialmente [por Oluce, Milão], vocês faziam apenas peças com pequena tiragem ou peças únicas?
FERNANDO - Eram exposições que fazíamos na [loja] "Arquitetura da Luz" ou na "Nucleon 8", com a Adriana Adam e a Maria Helena Estrada, e daí a gente deixava lá e vendia.
Quando saímos do Brasil, passou a haver maior eco. Mas sempre por parte dos intelectuais, de jornalistas e curadores, que viam potencial.
HUMBERTO - Voltando à sua pergunta sobre se o nosso design é brasileiro, acho que, de certa forma, procuramos sempre dar muito um caráter de imprecisão, de imperfeição.
Parece tudo ao acaso no nosso trabalho, naquela cadeira de cordas que é toda desconstruída, por exemplo, e mesmo nas de pelúcia.
Mas, para construir aquilo, existe todo um pensamento.
FERNANDO - Um caos ordenado. Tem uma coisa que é engenharia do caos. É saber interpretar o Brasil, fazer um retrato do que a gente vive.
Acho que essa é a questão, mostrar o significado, porque o design tem que ter significado, mesmo que venha carregado de força imagética "over", como o nosso: tem muitas coisas que são "over" no bom sentido.
Isso é o Brasil, em muitos casos: você vê gente vestida de jeitos maravilhosos na rua, que é falta de pudor do brasileiro. Pode ser gorda e estar na praia, mas está tão bem como a gatinha ou o cara malhado.
HUMBERTO - A Tati Quebra-Barraco... Acho bárbaro o que há de falta de pudor e de insolência nela. Essa é nossa modernidade.

FOLHA - É interessante como vocês conseguem dialogar com o contexto brasileiro e os problemas políticos atuais, mas de uma maneira que privilegia o aspecto formal e a exuberância estética.
FERNANDO - Uma vez o Massimo Morozzi, que é o diretor de arte da Edra, falou sobre "a riqueza dos pobres". A favela é uma homenagem à riqueza dos pobres, que é saber fazer sem ter aprendido, pela sobrevivência.
A riqueza do pobre é essa aí, da espontaneidade, da generosidade, é abrir a casa, abrir a alma, deixar ser dissecado. A antropofagia é isso. A gente sabe fazer isso. O legal do Brasil é isso.
HUMBERTO - É o que a Lina Bo Bardi fez muito bem. Eu sempre procurei, quando comecei a me interessar por design, me colocar do ponto de vista do olhar dela. Como ela fazia? Como enxergava o Brasil?
Ela enxergou o Brasil como quase nenhum brasileiro na época viu. Ela fez uma igreja de concreto e vidro com piso de terra, o Masp, enfim, aquela forma de expor os quadros no Masp, todo de vidro, os quadros flutuando. Aquilo é lindo, por que acabaram [com aquilo]? Eu aprendi vendo isso.
FERNANDO - É uma referência museológica, tem gente que vem para São Paulo para ver e precisa dar meia-volta.
Não quero falar nada contra, é só um exemplo. Pois como é que você vai expor o Renascimento, obras que geralmente estão expostas em palácios no exterior?
Ela soube fazer a riqueza dos pobres, modernizar a forma de expor.
Quando o brasileiro "saca" essas coisas, os trabalhos são legais. E, em alguns momentos, estamos próximos disso, tentamos pelo menos estar ligados a esse tipo de pensamento, de não esconder o Brasil, mesmo que tenha erro, que seja imperfeito, não ver o Brasil com olhos de turista, com olhos que queiram que a gente veja. Fazer coisa desafinada.

FOLHA - Como conseguem conciliar tecnicamente idéias como a de olhar para os ralos de banheiro, para o plástico das mangueiras e transformar esses materiais em objetos utilitários? Como tornar isso viável industrialmente?
FERNANDO - Há sempre um paralelo com a infância, aquele inconformismo de criança que pega os brinquedos e começa a revirar.
Eu e o Humberto fizemos isso, não de desmontar, de ser professor Pardal, mas pegar os objetos e ficar imaginando no que eles poderiam se transformar: pegar o despertador, virar e fazer um disco voador.
É uma experiência de tentar mudar o estado das coisas. É como olhar isso aqui [aponta o tampo da mesa feito de ralos de plástico] e começar a pensar: o ralo não serve só para escoar água, você pode comer no ralo.
Acontece muito de, quando vamos produzir uma peça, ela ganhar uma perversidade depois... O conceito vem depois.
HUMBERTO - Acho que temos muito essa coisa brasileira. Minha avó era portuguesa, e ela tinha na casa dela muitas latas; ela fazia comida e não jogava fora as latas.
Então acho que vem disso, de ir guardando, empilhando, de dar o valor certo a essas coisas. Reaproveitar as coisas.
Isso é do brasileiro, vem desde as pessoas que carregam papel na rua e vão fazendo as casas, transformando.
Você vai a uma favela e, por pior que seja a realidade, é triste, mas tem uma criatividade tão grande, em termos de objeto, de coisas que você encontra... São soluções, são escolas de design.
FERNANDO - Não é nem neofuturista, porque fizemos "Cadeira Favela", em 1990, sem pensar em favela.
Certo dia, vindo da Barra em direção a Copacabana, olhamos a Rocinha, aquele vale encravado na cidade, aquela imagem, fizemos uma foto daquilo na cabeça, e surgiu a cadeira. Aconteceu assim.
E isso até gerou um mau julgamento algumas vezes, de falarem: "Vocês tomam partido da pobreza". E eu digo: "Não, a gente fez uma forma justamente não para denunciar, mas potencializar esse tipo de atitude, de situação".
Naquela época, pegávamos muita coisa no Ceasa [em SP] e fizemos a cadeira como os caras constroem as favelas. Brasileiro tem essa capacidade de fazer uma gestão do lixo muito bem-feita.
Mas acho que é essa a questão, olhar para esses lados tortos.
Outra coisa que vão criticar é que a cadeira é vendida a 3.000 [cerca de R$ 7.700]. É vendida, mas, daí, fazer o quê?
Fizemos a cadeira em 1990 para vender no estúdio, e ninguém comprou. Uma empresa italiana produziu, ela é feita lá, e o Brasil importa.
Olha que história louca: a Edra quis expressamente que a "Cadeira Favela" fosse feita no Brasil, e quem trabalharia bem com madeira seria o pólo moveleiro do sul do país -não o de Bento Gonçalves [RS], mas o da região das Missões, em Santo Ângelo, em Santo Cristo.
Estivemos em Santo Cristo, que é uma cidade totalmente alemã, um lugar onde não se fala português. Tem cerca de 3.000 habitantes.
E a "Cadeira Favela" é feita por uma comunidade alemã, exportada para a Europa e vendida para o Brasil.
Então a favela ganha um status que é irônico.

FOLHA - Vocês não têm nenhuma peça produzida no Brasil?
FERNANDO - Sim, a linha Celia, que a gente desenvolveu com painel de OSB [Oriented Strand Board], é toda produzida aqui, pela Masisa, em Ponta Grossa [PR]. Outra curiosidade: há muito mais estrangeiros que gostam, estamos quase passando a licença para uma empresa européia. Não vende no Brasil.
O brasileiro não compra. Tem também um pouco aquilo de precisar do "made in Italy" para ter o aval de que é bom.
HUMBERTO - Isso nos abriu portas; quando a cadeira entrou em produção, isso deu respeito ao nosso trabalho e gerou curiosidade sobre o que se fazia no Brasil -não apenas sobre nosso trabalho, mas de outros designers também.
FERNANDO - Há um museu na Pensilvânia [EUA] que abriu um departamento de design e fez o anúncio com a cadeira vermelha de cordas; ela virou postal do MoMA [Museu de Arte Moderna de Nova York], faz parte do acervo do museu.

FOLHA - A luz é um elemento forte no trabalho de vocês, não apenas pela criação de luminárias mas também pelo uso de materiais transparentes ou vazados em peças de mobiliário...
HUMBERTO - Todo o nosso trabalho sempre está permeado pela desmaterialização de uma certa forma, seja nessa mesa com tampos de ralo que deixa vazar luz, seja em uma fruteira como a "Blow Up", nos biombos com fios de PVC ["Biombo Zig Zag"], na cadeira "Corallo", que considero mais como escultura, até a "Cadeira Vermelha".
É um pouco como cavar: assim como um escultor vai escavando o mármore, a gente tenta fazer isso com os materiais.

FOLHA - Quando foi que vocês começaram a "esculpir" com bichos de pelúcia?
HUMBERTO - A primeira [peça] é de 1992. A pelúcia nasceu de uma investigação sobre como fazer um estofamento sem utilizar a forma tradicional de estofar um móvel. Naquela época a gente tinha feito o sofá "Boa", um sofá de veludo todo trançado, uma micro-arquitetura.
Daí a gente começou a pesquisar o que pode servir de estofamento sem precisar usar uma espuma, cortá-la etc. Então começamos a observar os bichos de pelúcia, fomos testando, vendo que eles davam resultado.

FOLHA - Então não tem nada estruturando essa poltrona, ela é feita de pelúcia sobre pelúcia?
FERNANDO - Há só uma estrutura metálica e uma lona onde os bichos são costurados, mas o que constitui o estofamento é o próprio bicho de pelúcia.
HUMBERTO - Qual a razão de fazer uma nova cadeira? Ela tem que trazer um novo significado, mesmo que naquele momento ela não cumpra toda sua função, mas a idéia tem que ser colocada para fora para registrar um tempo, uma época.
E aí, depois, aquilo pode ser reelaborado com o tempo, com olhos mais maduros.

FOLHA - Como vocês pensam o trabalho de vocês no tempo, o destino das criações de vocês?
FERNANDO - Acho que um dia tudo isso vai estar num brechó.
Claro que existe essa sacralização e muita coisa vira peça de museu, mas, apesar de esses objetos serem pensados como forma artística, eles têm que ser usados de uma forma prosaica, cotidiana. É assim que eles ganham vida.
E, quando um deles chega a ser quebrado e vai parar num brechó, isso significa que ele completou um ciclo de vida longo; acho que tem que cumprir uma função, cumprir esse destino de uso mesmo.
HUMBERTO - Além da função de contaminar pessoas, para que a idéia evolua em outras cabeças, acho que é assim que o design resiste ao tempo.
Vejo que é agora que os móveis da Bauhaus estão ficando populares, pois agora surgiram novas tecnologias, novas ferramentas, e puderam se popularizar, tornar-se mais baratos.
FERNANDO - Na época [1919-33] era a coisa tubular e modular, com que se pretendia até que as peças fossem mais acessíveis, mas um século precisou se passar para que isso realmente fosse possível.
Não dá para esperar do mobiliário o que se espera do calendário de moda de um estilista, que a toda hora está mudando. Não dá para mudar o móvel de acordo com a estação.

NA INTERNET - Leia a íntegra desta entrevista em www.folha.com.br/071981

EXPOSIÇÃO - Veja o site do museu Victoria and Albert, que abriga a exposição dos irmãos Campana, em
www.vam.ac.uk/


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