São Paulo, domingo, 29 de julho de 2007

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Memória

Cientista, político

O sociólogo Florestan Fernandes, que faria 87 anos, é tema de entrevista com o filósofo Bento Prado Jr., que morreu em janeiro

FABRICIO MAZOCCO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Florestan tornou-se essencialmente um sociólogo crítico de uma sociedade na qual ele entrou como membro das classes oprimidas."
Essa é uma das definições feitas por um dos maiores filósofos contemporâneos do país, Bento Prado Jr. (1937-2007), sobre um dos sociólogos mais representativos do Brasil, Florestan Fernandes, que teria completado 87 anos no dia 22.
Bento Prado, morto em 12 de janeiro passado, considerava-se um discípulo indireto de Florestan, como ele mesmo se autodenomina nesta entrevista concedida em novembro de 2005, para a Semana Florestan Fernandes, realizada no mesmo mês na Universidade Federal de São Carlos.
Logo após ingressar como aluno de filosofia na USP, na segunda metade da década de 50, Prado teve os primeiros contatos com o professor de sociologia Florestan Fernandes (1920-95).
Entretanto a influência veio com a amizade e o trabalho conjunto com Octavio Ianni (1926-2004) e Fernando Henrique Cardoso (1931), assistentes diretos de Fernandes.
Em 1961, Prado tornou-se professor de filosofia na USP. Em 1969, por decreto presidencial, Prado, Fernandes e outros colegas da USP foram cassados. Leia a seguir a entrevista.

 

FOLHA - Que influências tiveram na sua vida as idéias e estudos de Florestan Fernandes?
PRADO JR. -
Embora eu jamais tenha sido aluno do Florestan, participei durante muitos anos de um trabalho conjunto com seus discípulos e iniciei -ou aprofundei- minha leitura de Marx e de outros clássicos das ciências sociais guiado um pouco pelos assistentes do Florestan, de tal maneira que, indiretamente, posso dizer que, sem ter sido aluno, fui algo como um discípulo indireto.

FOLHA - O que Florestan representa para a sociedade brasileira?
PRADO JR. -
Ele tem que ser pensado em dois níveis diferentes: como cientista social e como homem político. É óbvio que essas duas faces não são divergentes, porque sua obra científica desde muito cedo se encaminhou para uma visão crítica da sociedade brasileira.
E, entre uma visão científico-crítica da sociedade brasileira e uma militância política de oposição e de crítica à organização social do Brasil, há uma perfeita continuidade.
Entre o sociólogo -preocupado com os excluídos, com os preconceitos raciais e com todos os processos de exclusão- e o militante -defensor dos excluídos-, há uma perfeita continuidade. Essa continuidade está marcada pelo adjetivo "crítico", a crítica transformada em comportamento, em atividade política.
Digamos que Florestan, depois de 1969, ficou bem mais crítico do que era antes, quando, por obrigação quase profissional, era obrigado a apresentar a seus alunos a totalidade das ciências sociais, todos os clássicos da sociologia.
Por obrigação profissional, o Florestan professor era mais eclético que o Florestan militante.

FOLHA - Se pudesse resumi-lo em poucas palavras...
PRADO JR. -
Diria que ele se tornou essencialmente um sociólogo crítico de uma sociedade na qual entrou como membro das classes oprimidas.
Antes de ser sociólogo, foi um engraxate que teve que abandonar seus estudos para poder ajudar sua mãe a sobreviver e só voltou aos estudos lá pelos seus 16, 17, 18 anos.
Então, como garçom de um bar em São Paulo, foi estimulado pelos seus clientes por causa de sua inteligência, por sua leitura e por sua cultura inteiramente adquirida autodidaticamente, fora dos muros escolares.

FOLHA - Como sociólogo, Florestan vai a campo para o desenvolvimento de seus estudos.
PRADO JR. -
Florestan se tornou propriamente militante após a cassação, pós-69. Ele o fez oprimido pela história presente, mas sob o fundo de uma tradição já existente de um pensamento crítico.
Na década de 30, são várias as obras fundadoras de uma teoria do Brasil; penso em Caio Prado Jr., na "História Econômica do Brasil"; em Sérgio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil"; em Gilberto Freyre.
Quando Florestan começou a escrever, escreveu sob a orientação de professores franceses, tendo às suas costas o esboço de uma teoria do Brasil que já era crítica.
Gilberto Freyre, cuja posição política sempre foi mais oscilante e jamais foi um crítico de esquerda da sociedade brasileira, é injusta e freqüentemente acusado de excessivamente conservador, o que acho que não é propriamente verdade.
Mas, se não era excessivamente conservador, seguramente não era revolucionário, como tendiam a sê-lo Sérgio Buarque e Caio Prado.
Sérgio Buarque sempre esteve próximo dos movimentos socialistas. Em todo caso, tratava-se de um engajamento teórico que jamais chegou a se converter em uma prática política formal, como é o caso do Florestan, que se tornou deputado.
Entre uma atitude intelectual crítica e uma militância como representante da população no Parlamento, há uma diferença crucial.
Tenho a impressão de que essa é a diferença fundamental do adjetivo "crítico" em Florestan e na boa tradição a que pertence.

FOLHA - Um ponto do Florestan "marxista" é que a classe operária deveria sempre ser bem-informada, e aí vem a defesa da educação.
PRADO JR. -
É preciso nuançar um pouco as coisas. Nas décadas de 40 e de 50, Florestan era bem menos marxista do que o Florestan posterior. Nesses textos sobre indução sociológica, ele se aproximava muito mais da tradição do empirismo lógico.
De uma certa maneira, a sua carreira é de radicalização, em que as posições não permanecem as mesmas.
Nessa evolução da sociologia clássica e de uma interpretação filosófica da sociologia clássica, que às vezes era próxima do empirismo lógico, ele se aproximou cada vez mais de um estilo marxista, mas que não foi sempre o definidor de seu estilo.
Quanto às teses globais a respeito da importância política do ensino, da escola, para a democracia, é claro que não posso estar em desacordo com as teses defendidas por Florestan.

FOLHA - Como o fato de ter sido cassado influenciou a formação de Florestan?
PRADO JR. -
Pessoalmente, ele não deve ter deixado de viver essa experiência como uma grande dor. É claro que o exílio a que foi forçado lhe deu a oportunidade de um reconhecimento internacional maior do que tinha até então.
Mas tenho a impressão de que a importância do seu departamento dentro da faculdade, da sua tarefa de formador de formadores era muito próxima do coração.
De tal maneira que ele deve ter sofrido uma grave frustração de uma vocação de formador que lhe foi proibida e que passou depois a desempenhar de outra maneira, como homem político.
Uma coisa é ser professor, outra é ser deputado. Os meios de que dispõem um e outro são muito diferentes.
Mas se pode dizer que os alvos de um e de outro, em última instância,, eram os mesmos, de tal maneira que, a despeito de sua frustração ao ser excluído injustamente da USP e de ter sofrido com essa exclusão, não deixou de continuar a sua atividade com os mesmos objetivos, fora da universidade.


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