São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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"As mulheres pedem aos homens que lhes tirem a virgindade, porque enquanto permanecem virgens não podem procurar marido"
DETRÁS DOS MUROS

Passados dois ou três dias sem que fôssemos à terra ou alguém da terra viesse até nós, o capitão-mor resolveu reunir-se com os outros capitães. O feitor-mor, nessa ocasião, ofereceu-se para ir à terra, caso o rei de Calicute concordasse em mandar dois reféns. O capitão e os outros aprovaram essa idéia, mas não sabiam como fazê-la chegar ao rei. Imediatamente, um cavalheiro de nome Francisco Corrêa disse que levaria a mensagem. E assim o fez.
Corrêa disse ao rei que o feitor-mor, Aires Corrêa, estava pronto para desembarcar e assinar um tratado comercial com ele, mas que para isso precisava ter como garantia a vida de dois mercadores, entre os quais um guzerate muito rico. Esse mouro guzerate disse ao rei que mandaria em seu lugar dois sobrinhos, o que muito contentou sua serenidade. No dia seguinte, Francisco Corrêa enviou a resposta ao capitão, Aires Corrêa pôs-se pronto e o rei despachou para as naus os dois reféns. O feitor-mor desembarcou na companhia de oito ou dez homens, voltando às naus no final da tarde para dormir. No outro dia, ele retornou à terra para finalizar os negócios. Quanto aos reféns, esses permaneceram sempre a bordo das naus. O rei mandou dar a Aires Corrêa a melhor casa que possuía o mercador guzerate e encarregou esse homem de ensinar ao feitor os usos e costumes do país. E assim Corrêa começou a negociar e conseguiu vender algumas mercadorias.
A língua que falavam conosco era o árabe, de modo que não tínhamos como nos dirigir ao rei sem a mediação dos mouros, uma gente má, muito hostil aos portugueses e que a toda hora se servia de embustes e nos impedia de enviar alguém às naus. O capitão, constatando que dia após dia mandava gente à terra e ninguém trazia nenhuma informação, resolveu fazer vela. Estávamos nós presos em terra, numa casa guardada por muita gente, quando vimos que as nossas naus partiam. O guzerate, cioso dos seus sobrinhos, permitiu que Aires Corrêa enviasse às naus, numa almadia, um rapaz com um protesto ao capitão. Sabedor do dito protesto, o capitão imediatamente voltou ao porto. Aires Corrêa pôde, então, iniciar as suas negociações com o rei e, pouco a pouco, acertou um contrato como queria.
Depois do ocorrido, o guzerate, sempre tendo em conta que os seus sobrinhos estavam nas naus como reféns, solicitou ao rei que encarregasse um importante mercador turco dos nossos negócios. Mudamos para uma casa próxima à morada desse mouro e começamos a inspecionar mercadorias para a compra. Dedicamo-nos a isso uns dois meses e meio, tempo necessário para o cumprimento dos termos do contrato, cumprimento que só foi conseguido graças ao esforço de Aires Corrêa e daqueles que o acompanhavam. Terminado o contrato, depois de muito regatear, o rei cedeu a Corrêa uma casa junto ao mar, com um belo jardim, no qual foi hasteada uma bandeira com as armas do rei de Portugal.
Da referida transação, o rei deu duas cartas: a de cobre, com o sinal real esculpido em latão, deveria ser entregue na casa de feitoria; e a de prata, com o mesmo sinal esculpido em ouro, ao rei de Portugal. Uma vez finalizadas as cartas, Aires Corrêa imediatamente levou a de prata para a nau e trouxe de lá os dois homens que haviam ficado como reféns. Daí em diante, os da terra passaram a confiar nele e começaram a tratar-nos como se estivéssemos em nosso país.
As coisas corriam assim quando, um dia, entrou no porto um navio que vinha de um reino da região. A embarcação, muito ampla e bem armada, levava cinco elefantes, entre os quais um de tamanho avantajado e elevado preço, pois era treinado para a guerra. Quando o rei de Calicute soube da chegada dessa nau, solicitou ao nosso capitão que a capturasse, dizendo que ela transportava um elefante pelo qual oferecera uma grande soma, mas que os donos tinham se recusado a aceitar. O capitão respondeu que o faria, mas o advertiu de que, se houvesse resistência, mataria a todos. O rei satisfez-se com a resposta e mandou um mouro às naus, incumbido de ver como tomaríamos a embarcação e de avisar os seus ocupantes da nossa intenção.
Entrementes, o capitão mandou uma caravela de grossa bombarda, armada com 60 a 70 homens, atacá-la. Durante duas noites, a caravela a bombardeou sem conseguir tomá-la; no terceiro dia, investiu contra ela e perguntou aos mouros se desejavam capitular. Eles puseram-se a rir da pergunta e começaram a atirar flechas, pois eram muitos, bem armados e ocupavam uma embarcação de porte. Diante disso, o capitão da caravela mandou disparar a artilharia. Rapidamente, a nau foi desbaratada, rendeu-se e foi levada, com a gente que nela se encontrava, para Calicute. O rei veio pessoalmente à praia recepcionar a caravela. O capitão da caravela entregou a ele o capitão da nau e, em seguida, a própria nau. Sua Alteza maravilhou-se com o fato de uma caravela tão pequena, com tão pouca gente, ser capaz de capturar uma outra muito maior, ocupada por mais de 300 homens de batalha. O monarca recebeu os elefantes com enorme alívio e contentamento, e a caravela pôde retornar para junto das naus.

Das coisas e costumes de Calicute
A cidade de Calicute é grande e não é cercada por muros. Em algumas partes, as construções são bastante afastadas umas das outras. As casas são de pedra talhada e cal, cobertas com folhas de palmeira e contam com portas grandes e bem trabalhadas. Ao seu redor, há terrenos cercados por muros, nos quais os moradores cultivam árvores e mantêm tanques para se banhar e poços de onde retiram água para beber. Pela cidade, há grandes tanques de água, frequentados assiduamente pelo povo, que se lava duas, três e até mesmo quatro vezes ao dia. O rei é idólatra, embora outros (9) tenham pensado que era cristão. Os que cometeram tal engano haviam aprendido menos sobre os costumes locais do que nós, que temos mantido consideráveis relações comerciais em Calicute.
O rei chama-se Gnaffer, e todos os seus gentis-homens, bem como aqueles que o servem, são pardos como os mouros. São homens de boa compleição, que andam nus acima e abaixo da cintura. A única vestimenta que trazem consiste num fino tecido de algodão branco ou de outras cores enrolado no corpo. Não andam calçados e não usam barrete, salvo os grandes senhores, que ostentam um barrete aveludado e brocado, algumas vezes muito alto. Os gentis-homens apreciam os braceletes de ouro e têm as orelhas furadas, cultivando o hábito de dependurar nelas muitas jóias. A espada e o escudo estão sempre nas suas mãos: as espadas têm a ponta alargada e os escudos, que podem ser pretos ou vermelhos, são redondos -como as "rotelle" de Itália- e muito leves. Dizem ser os melhores manejadores de espadas e escudos do mundo e cuidam somente desse ofício.
Há muitos desses homens na corte, homens que se casam com uma, cinco ou até mesmo seis mulheres, e que se sentem honrados quando seus melhores amigos dormem com elas, pois entre eles não há castidade nem vergonha. As meninas, quando completam oito anos, começam a ganhar a vida por esses meios. As mulheres andam quase tão nuas quanto os homens e trazem sobre si grandes riquezas. Têm os cabelos arranjados com muito gosto e são bem bonitas. Elas pedem aos homens que lhes tirem a virgindade, porque enquanto permanecem virgens não podem procurar marido.
A gente local come duas vezes ao dia. A sua alimentação exclui o pão, o vinho, o peixe e a carne, consistindo basicamente em arroz, manteiga, leite, açúcar e frutas. Antes de comerem, lavam-se e, depois de lavados, se alguém que ainda não se lavou os toca, não comem até que se tenham lavado novamente. E dão a isso grande importância. Tanto os homens como as mulheres mascam, diariamente, uma folha de nome bétele, a qual deixa a boca vermelha e os dentes pretos; quem não faz isso é considerado pessoa de baixa qualidade. Quando alguém morre, por terem de vestir preto, pulem os dentes e deixam de mascar a dita folha por muitos meses.
O rei tem duas mulheres e cada uma delas faz-se acompanhar de dez sacerdotes, os quais se unem carnalmente com elas para honrar o rei. Por essa razão, os filhos do rei não herdam o trono, o que é feito pelos sobrinhos, filhos de sua irmã. Mil a 1.500 mulheres habitam o palácio, com o fim de lhe dar maior magnificência. A única função que têm aí é a de varrer e lavar os lugares da casa por onde passa o rei. A água que utilizam para tal é misturada com estrume.
As casas do rei são muito grandes e contam com diversas fontes de água, onde sua alteza pode se lavar. Quando sai de sua residência, o monarca vai num andor muito rico, coberto por um dossel e carregado por dois homens. Ao lado desse andor, seguem muitos tocadores de instrumentos, carregadores, gentis-homens com espada e escudo e, na dianteira do cortejo, arqueiros e guardas. O povo presta ao monarca mais honras do que em qualquer outro lugar do mundo: mantém dele a distância respeitosa de três ou quatro passos e, ao lhe dar alguma coisa, o faz por meio de um ramo, pois não ousa tocá-lo. Quando seus súditos se dirigem a ele, mantêm a cabeça baixa e a mão rente à boca. Os gentis-homens jamais se apresentam diante do monarca sem a espada e o escudo e, ao reverenciá-lo, colocam as mãos sobre a cabeça como se estivessem dando graças ao Nosso Senhor. Nenhum oficial ou homem de baixa qualidade, sobretudo se for pescador, pode ver o rei ou falar com ele. Caso um pescador vá por uma rua e veja um gentil-homem vindo em sua direção, só lhe restam duas opções: fugir ou levar muitas bastonadas. Quando morre o rei, os gentis-homens e suas esposas, para honrar o monarca, queimam o seu corpo com pau de sândalo. A gente de baixa condição enterra-se e polvilha a cabeça e os ombros com cinzas.
A propósito dos homens de baixa condição, eles usam a barba longa e são grandes contadores de histórias, assim como escritores. Para escrever, servem-se de uma folha de palmeira e de uma pena de ferro sem tinta. Outra classe de homens são os mercadores chamados guzerates, provenientes da província de Cambaia. Os nativos desse lugar são idólatras e adoram o sol, a lua e as vacas -os que tentam matar esse animal, pagam com a própria vida. Os mercadores guzerates não comem nada que é morto, não consomem pão nem bebem vinho. Se por engano um jovem come carne, expulsam-no, obrigando-o a vagar pelo mundo à mercê da misericórdia de Deus -mesmo se descendente ou filho de um grande senhor ou de um grande mercador.
Os guzerates acreditam em encantos e em adivinhadores, são mais brancos que os naturais de Calicute e usam a barba e o cabelo muito compridos. Vestem uma roupa de algodão fino, sandálias, véu e usam os cabelos enrolados como os de uma mulher. Como nós, cortejam e casam-se com uma única mulher, geralmente muito bonita e casta. Mantêm-se fiéis à escolhida e têm extremo ciúmes dela. Esses homens são mercadores de tecidos, adornos e jóias.

Dos mercadores e do transporte de mercadorias para o Cairo e Alexandria
Há, na cidade, um outro grupo de mercadores, de nome Zetiestes, proveniente de uma outra província. São idólatras e grandes mercadores de jóias, pérolas, ouro e prata. Sua tez é escura, andam nus e usam umas pequenas toucas, sob as quais trazem os cabelos como um rabo de boi ou cavalo. São os maiores encantadores que existem no mundo e, diariamente, falam com um demônio invisível. As esposas desses mercadores são corruptas e devassas como os naturais de Calicute. Na cidade, habitam, ainda, mouros de Meca, da Turquia, da Babilônia (10), da Pérsia e de muitas outras províncias. São grandes mercadores, muito ricos, e controlam todas as mercadorias que aqui chegam, a saber: jóias de variados tipos e muitas outras coisas finas, como almíscar, âmbar, benjoim, incenso, pau de aloés, ruibarbo, porcelana, cravo, canela, pau-brasil, sândalo, laca, noz-moscada e maça. Todas as mercadorias vêm de fora, salvo o gengibre, a pimenta, o tamarindo, o mirabólano, a cássia fístula (11) e alguma canela selvagem, os quais crescem na região de Calicute.
Os ditos mouros são tão ricos e poderosos que praticamente governam esse reino. Nas montanhas, há um grande e poderoso rei, de nome Narasimha, cujo povo é idólatra. Esse rei tem 200 ou 300 esposas que, quando de sua morte, serão queimadas junto com ele. Tal costume é seguido por quase todos os casados. O corpo do homem é queimado num fosso, fosso ao qual sua mulher, vestida o mais ricamente possível, é conduzida pelos parentes, com música e festa. A mulher desce bailando para o fosso em chamas e, quando cai lá dentro, seus parentes, que já estão preparados, lançam sobre ela potes de manteiga e óleo para que possa queimar mais depressa.
Neste reino, há muitos cavalos e elefantes, pois são utilizados na guerra. Os animais são tão bem domados e amestrados que a única coisa que não fazem é falar, sendo capazes de entender tudo como um ser humano -como pudemos testemunhar em Calicute. O elefantes que o rei possui e nos quais cavalga são os animais mais fortes e ferozes do mundo; dois deles são capazes até mesmo de arrastar uma nau para a terra.
As naus deste país navegam somente entre outubro (ou novembro) e o final do mês de março, meses que correspondem ao verão daqui. Durante o restante do ano é inverno e as naus não navegam, permanecendo em terra. Em novembro, partem de Calicute as naus para Meca, com especiarias destinadas a Jeddah, que é porto de Meca. Daí seguem para o Cairo e Alexandria.


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