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"As mulheres pedem aos homens que lhes tirem a virgindade, porque enquanto permanecem virgens não podem procurar marido"
DETRÁS DOS MUROS
Passados dois ou três dias sem
que fôssemos à terra ou alguém
da terra viesse até nós, o capitão-mor resolveu reunir-se com os
outros capitães. O feitor-mor,
nessa ocasião, ofereceu-se para ir
à terra, caso o rei de Calicute concordasse em mandar dois reféns.
O capitão e os outros aprovaram
essa idéia, mas não sabiam como
fazê-la chegar ao rei. Imediatamente, um cavalheiro de nome
Francisco Corrêa disse que levaria
a mensagem. E assim o fez.
Corrêa disse ao rei que o feitor-mor, Aires Corrêa, estava pronto
para desembarcar e assinar um
tratado comercial com ele, mas
que para isso precisava ter como
garantia a vida de dois mercadores, entre os quais um guzerate
muito rico. Esse mouro guzerate
disse ao rei que mandaria em seu
lugar dois sobrinhos, o que muito
contentou sua serenidade. No dia
seguinte, Francisco Corrêa enviou
a resposta ao capitão, Aires Corrêa pôs-se pronto e o rei despachou para as naus os dois reféns.
O feitor-mor desembarcou na
companhia de oito ou dez homens, voltando às naus no final
da tarde para dormir. No outro
dia, ele retornou à terra para finalizar os negócios. Quanto aos reféns, esses permaneceram sempre
a bordo das naus. O rei mandou
dar a Aires Corrêa a melhor casa
que possuía o mercador guzerate
e encarregou esse homem de ensinar ao feitor os usos e costumes
do país. E assim Corrêa começou
a negociar e conseguiu vender algumas mercadorias.
A língua que falavam conosco
era o árabe, de modo que não tínhamos como nos dirigir ao rei
sem a mediação dos mouros, uma
gente má, muito hostil aos portugueses e que a toda hora se servia
de embustes e nos impedia de enviar alguém às naus. O capitão,
constatando que dia após dia
mandava gente à terra e ninguém
trazia nenhuma informação, resolveu fazer vela. Estávamos nós
presos em terra, numa casa guardada por muita gente, quando vimos que as nossas naus partiam.
O guzerate, cioso dos seus sobrinhos, permitiu que Aires Corrêa
enviasse às naus, numa almadia,
um rapaz com um protesto ao capitão. Sabedor do dito protesto, o
capitão imediatamente voltou ao
porto. Aires Corrêa pôde, então,
iniciar as suas negociações com o
rei e, pouco a pouco, acertou um
contrato como queria.
Depois do ocorrido, o guzerate,
sempre tendo em conta que os
seus sobrinhos estavam nas naus
como reféns, solicitou ao rei que
encarregasse um importante
mercador turco dos nossos negócios. Mudamos para uma casa
próxima à morada desse mouro e
começamos a inspecionar mercadorias para a compra. Dedicamo-nos a isso uns dois meses e meio,
tempo necessário para o cumprimento dos termos do contrato,
cumprimento que só foi conseguido graças ao esforço de Aires
Corrêa e daqueles que o acompanhavam. Terminado o contrato,
depois de muito regatear, o rei cedeu a Corrêa uma casa junto ao
mar, com um belo jardim, no qual
foi hasteada uma bandeira com as
armas do rei de Portugal.
Da referida transação, o rei deu
duas cartas: a de cobre, com o sinal real esculpido em latão, deveria ser entregue na casa de feitoria;
e a de prata, com o mesmo sinal
esculpido em ouro, ao rei de Portugal. Uma vez finalizadas as cartas, Aires Corrêa imediatamente
levou a de prata para a nau e trouxe de lá os dois homens que haviam ficado como reféns. Daí em
diante, os da terra passaram a
confiar nele e começaram a tratar-nos como se estivéssemos em
nosso país.
As coisas corriam assim quando, um dia, entrou no porto um
navio que vinha de um reino da
região. A embarcação, muito ampla e bem armada, levava cinco
elefantes, entre os quais um de tamanho avantajado e elevado preço, pois era treinado para a guerra. Quando o rei de Calicute soube
da chegada dessa nau, solicitou ao
nosso capitão que a capturasse,
dizendo que ela transportava um
elefante pelo qual oferecera uma
grande soma, mas que os donos
tinham se recusado a aceitar. O
capitão respondeu que o faria,
mas o advertiu de que, se houvesse resistência, mataria a todos. O
rei satisfez-se com a resposta e
mandou um mouro às naus, incumbido de ver como tomaríamos a embarcação e de avisar os
seus ocupantes da nossa intenção.
Entrementes, o capitão mandou
uma caravela de grossa bombarda, armada com 60 a 70 homens,
atacá-la. Durante duas noites, a
caravela a bombardeou sem conseguir tomá-la; no terceiro dia, investiu contra ela e perguntou aos
mouros se desejavam capitular.
Eles puseram-se a rir da pergunta
e começaram a atirar flechas, pois
eram muitos, bem armados e
ocupavam uma embarcação de
porte. Diante disso, o capitão da
caravela mandou disparar a artilharia. Rapidamente, a nau foi
desbaratada, rendeu-se e foi levada, com a gente que nela se encontrava, para Calicute. O rei veio
pessoalmente à praia recepcionar
a caravela. O capitão da caravela
entregou a ele o capitão da nau e,
em seguida, a própria nau. Sua Alteza maravilhou-se com o fato de
uma caravela tão pequena, com
tão pouca gente, ser capaz de capturar uma outra muito maior,
ocupada por mais de 300 homens
de batalha. O monarca recebeu os
elefantes com enorme alívio e
contentamento, e a caravela pôde
retornar para junto das naus.
Das coisas e costumes de Calicute
A cidade de Calicute é grande e
não é cercada por muros. Em algumas partes, as construções são
bastante afastadas umas das outras. As casas são de pedra talhada
e cal, cobertas com folhas de palmeira e contam com portas grandes e bem trabalhadas. Ao seu redor, há terrenos cercados por muros, nos quais os moradores cultivam árvores e mantêm tanques
para se banhar e poços de onde
retiram água para beber. Pela cidade, há grandes tanques de água,
frequentados assiduamente pelo
povo, que se lava duas, três e até
mesmo quatro vezes ao dia. O rei
é idólatra, embora outros (9) tenham pensado que era cristão. Os
que cometeram tal engano haviam aprendido menos sobre os
costumes locais do que nós, que
temos mantido consideráveis relações comerciais em Calicute.
O rei chama-se Gnaffer, e todos
os seus gentis-homens, bem como aqueles que o servem, são pardos como os mouros. São homens de boa compleição, que andam nus acima e abaixo da cintura. A única vestimenta que trazem
consiste num fino tecido de algodão branco ou de outras cores
enrolado no corpo. Não andam
calçados e não usam barrete, salvo os grandes senhores, que ostentam um barrete aveludado e
brocado, algumas vezes muito alto. Os gentis-homens apreciam os
braceletes de ouro e têm as orelhas furadas, cultivando o hábito
de dependurar nelas muitas jóias.
A espada e o escudo estão sempre
nas suas mãos: as espadas têm a
ponta alargada e os escudos, que
podem ser pretos ou vermelhos,
são redondos -como as "rotelle"
de Itália- e muito leves. Dizem
ser os melhores manejadores de
espadas e escudos do mundo e
cuidam somente desse ofício.
Há muitos desses homens na
corte, homens que se casam com
uma, cinco ou até mesmo seis
mulheres, e que se sentem honrados quando seus melhores amigos dormem com elas, pois entre
eles não há castidade nem vergonha. As meninas, quando completam oito anos, começam a ganhar a vida por esses meios. As
mulheres andam quase tão nuas
quanto os homens e trazem sobre
si grandes riquezas. Têm os cabelos arranjados com muito gosto e
são bem bonitas. Elas pedem aos
homens que lhes tirem a virgindade, porque enquanto permanecem virgens não podem procurar
marido.
A gente local come duas vezes
ao dia. A sua alimentação exclui o
pão, o vinho, o peixe e a carne,
consistindo basicamente em arroz, manteiga, leite, açúcar e frutas. Antes de comerem, lavam-se
e, depois de lavados, se alguém
que ainda não se lavou os toca,
não comem até que se tenham lavado novamente. E dão a isso
grande importância. Tanto os homens como as mulheres mascam,
diariamente, uma folha de nome
bétele, a qual deixa a boca vermelha e os dentes pretos; quem não
faz isso é considerado pessoa de
baixa qualidade. Quando alguém
morre, por terem de vestir preto,
pulem os dentes e deixam de mascar a dita folha por muitos meses.
O rei tem duas mulheres e cada
uma delas faz-se acompanhar de
dez sacerdotes, os quais se unem
carnalmente com elas para honrar o rei. Por essa razão, os filhos
do rei não herdam o trono, o que é
feito pelos sobrinhos, filhos de sua
irmã. Mil a 1.500 mulheres habitam o palácio, com o fim de lhe
dar maior magnificência. A única
função que têm aí é a de varrer e
lavar os lugares da casa por onde
passa o rei. A água que utilizam
para tal é misturada com estrume.
As casas do rei são muito grandes e contam com diversas fontes
de água, onde sua alteza pode se
lavar. Quando sai de sua residência, o monarca vai num andor
muito rico, coberto por um dossel
e carregado por dois homens. Ao
lado desse andor, seguem muitos
tocadores de instrumentos, carregadores, gentis-homens com espada e escudo e, na dianteira do
cortejo, arqueiros e guardas. O
povo presta ao monarca mais honras do que em qualquer outro
lugar do mundo: mantém dele a
distância respeitosa de três ou
quatro passos e, ao lhe dar alguma
coisa, o faz por meio de um ramo,
pois não ousa tocá-lo. Quando
seus súditos se dirigem a ele,
mantêm a cabeça baixa e a mão
rente à boca. Os gentis-homens
jamais se apresentam diante do
monarca sem a espada e o escudo
e, ao reverenciá-lo, colocam as
mãos sobre a cabeça como se estivessem dando graças ao Nosso
Senhor. Nenhum oficial ou homem de baixa qualidade, sobretudo se for pescador, pode ver o rei
ou falar com ele. Caso um pescador vá por uma rua e veja um gentil-homem vindo em sua direção,
só lhe restam duas opções: fugir
ou levar muitas bastonadas.
Quando morre o rei, os gentis-homens e suas esposas, para honrar
o monarca, queimam o seu corpo
com pau de sândalo. A gente de
baixa condição enterra-se e polvilha a cabeça e os ombros com cinzas.
A propósito dos homens de baixa condição, eles usam a barba
longa e são grandes contadores de
histórias, assim como escritores.
Para escrever, servem-se de uma
folha de palmeira e de uma pena
de ferro sem tinta. Outra classe de
homens são os mercadores chamados guzerates, provenientes da
província de Cambaia. Os nativos
desse lugar são idólatras e adoram
o sol, a lua e as vacas -os que tentam matar esse animal, pagam
com a própria vida. Os mercadores guzerates não comem nada
que é morto, não consomem pão
nem bebem vinho. Se por engano
um jovem come carne, expulsam-no, obrigando-o a vagar pelo
mundo à mercê da misericórdia
de Deus -mesmo se descendente ou filho de um grande senhor
ou de um grande mercador.
Os guzerates acreditam em encantos e em adivinhadores, são
mais brancos que os naturais de
Calicute e usam a barba e o cabelo
muito compridos. Vestem uma
roupa de algodão fino, sandálias,
véu e usam os cabelos enrolados
como os de uma mulher. Como
nós, cortejam e casam-se com
uma única mulher, geralmente
muito bonita e casta. Mantêm-se
fiéis à escolhida e têm extremo
ciúmes dela. Esses homens são
mercadores de tecidos, adornos e
jóias.
Dos mercadores e do transporte de mercadorias para o Cairo e Alexandria
Há, na cidade, um outro grupo
de mercadores, de nome Zetiestes, proveniente de uma outra
província. São idólatras e grandes
mercadores de jóias, pérolas, ouro e prata. Sua tez é escura, andam
nus e usam umas pequenas toucas, sob as quais trazem os cabelos
como um rabo de boi ou cavalo.
São os maiores encantadores que
existem no mundo e, diariamente, falam com um demônio invisível. As esposas desses mercadores
são corruptas e devassas como os
naturais de Calicute. Na cidade,
habitam, ainda, mouros de Meca,
da Turquia, da Babilônia (10), da
Pérsia e de muitas outras províncias. São grandes mercadores,
muito ricos, e controlam todas as
mercadorias que aqui chegam, a
saber: jóias de variados tipos e
muitas outras coisas finas, como
almíscar, âmbar, benjoim, incenso, pau de aloés, ruibarbo, porcelana, cravo, canela, pau-brasil,
sândalo, laca, noz-moscada e maça. Todas as mercadorias vêm de
fora, salvo o gengibre, a pimenta,
o tamarindo, o mirabólano, a cássia fístula (11) e alguma canela selvagem, os quais crescem na região de Calicute.
Os ditos mouros são tão ricos e
poderosos que praticamente governam esse reino. Nas montanhas, há um grande e poderoso
rei, de nome Narasimha, cujo povo é idólatra. Esse rei tem 200 ou
300 esposas que, quando de sua
morte, serão queimadas junto
com ele. Tal costume é seguido
por quase todos os casados. O
corpo do homem é queimado
num fosso, fosso ao qual sua mulher, vestida o mais ricamente
possível, é conduzida pelos parentes, com música e festa. A mulher desce bailando para o fosso
em chamas e, quando cai lá dentro, seus parentes, que já estão
preparados, lançam sobre ela potes de manteiga e óleo para que
possa queimar mais depressa.
Neste reino, há muitos cavalos e
elefantes, pois são utilizados na
guerra. Os animais são tão bem
domados e amestrados que a única coisa que não fazem é falar,
sendo capazes de entender tudo
como um ser humano -como
pudemos testemunhar em Calicute. O elefantes que o rei possui e
nos quais cavalga são os animais
mais fortes e ferozes do mundo;
dois deles são capazes até mesmo
de arrastar uma nau para a terra.
As naus deste país navegam somente entre outubro (ou novembro) e o final do mês de março,
meses que correspondem ao verão daqui. Durante o restante do
ano é inverno e as naus não navegam, permanecendo em terra.
Em novembro, partem de Calicute as naus para Meca, com especiarias destinadas a Jeddah, que é
porto de Meca. Daí seguem para o
Cairo e Alexandria.
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