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AUTORES
Exposição em Weimar problematiza relação entre estética e política
Arte em campo minado
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha
Como pensar as relações entre o
destino da arte em nosso século e
as grandes ditaduras exercidas
em nome da raça ou do povo? A
exposição "Aufstieg und Fall der
Moderne" ("Ascensão e Queda da
Modernidade"), organizada por
ensejo do ano "Weimar, Capital
da Europa", certamente não é a
primeira a formular essa pergunta. Sua localização, no entanto,
parece dotar-lhe de um cenário e
uma dramaturgia ideais. Weimar
foi a cidade de Goethe e Schiller
antes de ser a sede da Bauhaus.
Foi o local de nascimento dessa
república derrotada pelo nazismo
antes de ser uma cidadezinha da
República Democrática Alemã
(RDA). Enfim, a alguns quilômetros de seus parques idílicos elevaram-se os barracões do campo
de Buchenwald.
Neste ano, todo o patrimônio
material e simbólico do local foi
mobilizado para mostrar como o
legado do humanismo clássico e
da inovação artística precipitou-se na barbárie. Às edições preciosas e a todos os testemunhos da
idade de ouro weimariana expostos na "Casa de Goethe" respondem, assim, expostas na "Casa de
Schiller", as fotos e as fisionomias
dos judeus enviados de Viena a
Buchenwald para servir de cobaias ao estudo "científico" dos
padrões físicos da nação judaica.
Mas, se o corpo-a-corpo entre
os "documentos da cultura" e os
"documentos da barbárie" não
envolve maiores problemas, nem
por isso é simples mostrar como
os primeiros podem tornar-se os
segundos, de acordo com a fórmula de Benjamin. Em que medida os quadros expostos em Weimar, num leque que vai desde a
descoberta dos impressionistas às
pinturas da antiga RDA, passando pelas obras oficiais da Alemanha hitleriana, podem esclarecer
esse processo? Será que uma tal
exposição não estaria entregue,
mais do que as outras, a um dilema que persegue todas as exposições consagradas às relações entre arte e política?
Ou estas afirmam a autonomia
intrínseca da arte, embora sustentem com isso sua irresponsabilidade diante dos embates coletivos
de seu tempo e façam da relação
entre esses dois termos uma simples questão de censura, ou estabelecem um princípio de implicação mútua entre o destino da arte
e as formas de vida coletiva. "Modernidade", desse ponto de vista,
é uma noção cômoda, que afirma
o liame necessário entre uma era
histórica e uma tarefa ou um conteúdo específicos, tornando todas
as práticas dessa era solidárias e
comensuráveis, como se fossem
manifestações de um mesmo processo.
Mas há também o reverso da
medalha. A dita modernidade
presta-se às mais diversas e contraditórias definições: emancipação humana ou racionalidade desencantada, separação de esferas
de atividade ou interdependência
generalizada. A versão média da
"modernidade" pretende inscrever a libertação da arte em relação
aos cânones representativos, num
processo global de emancipação
política. Mas tal inscrição logo
suscita dois problemas.
Será preciso considerar como
emblema dessa emancipação a
autonomia da arte, simbolizada
pela ruína da figuração pictórica?
Ou, de modo inverso, o verdadeiro emblema seria a afirmação da
identidade entre as formas da arte
e as da vida? Será que Kandinsky e
Klee são modernos como pintores antifigurativos ou como artistas associados ao ensino da Bauhaus e ao projeto de síntese das
artes? E como definir a relação entre sua escolha modernista, a repressão de sua arte e as catástrofes
do século?
Será lícito pensar que sua arte
modernista foi varrida pelo grande vento coletivo da regressão antimoderna? Ou, de modo inverso,
que ela se tornou cúmplice da catástrofe global da modernidade,
segundo a tese dos desiludidos
deste fim de século, que acusam
as vanguardas artísticas de terem
preparado o terreno tanto para a
desumanização mecânica do homem soviético quanto para a regressão irracionalista do homem
nazista?
À primeira vista, os organizadores de "Ascensão e Queda da Modernidade" escolheram contornar a questão. Para tanto, dividiram a exposição em três partes. A
primeira, acomodada no espaço
tradicional de um museu, segue,
segundo a lógica tradicional da
história da arte, a passagem por
Weimar das sucessivas vagas da
novidade pictórica: impressionismo, pós-impressionismo, nabismo, expressionismo, abstracionismo, construtivismo. No máximo, o visitante poderia suspeitar
de uma discreta sugestão na ordem que dispõe os quadros da exposição temporária diante de um
certo número de telas da coleção
permanente do museu, que guardaram seu lugar tradicional. Afinal, dispor os grupos de personagens sem rosto de Munch diante
dos auto-retratos radiantes das
pintoras do Iluminismo não seria
torná-los testemunhas de uma
identidade perdida entre o homem e sua imagem, torná-los
prefigurações das vítimas anônimas do futuro?
A sequência da exposição, contudo, parece desmentir tal análise.
As duas últimas partes, consagradas uma à arte nazista, outra à
pintura da Alemanha comunista,
foram materialmente separadas
da primeira, como para negar toda relação entre as manifestações
da modernidade pictórica e os
testemunhos da ditadura. Situado
a boa distância do museu, é um
espaço hesitante entre o saguão
da feira comercial e o estacionamento subterrâneo que acolhe as
obras da arte nazista e da arte da
RDA. E esse afastamento é redobrado pela cenografia dessas exposições.
Temos acesso à exposição das
pinturas nazistas, batizada "A Arte para o Povo", por um corredor
recoberto de fotografias das grandes paradas hitleristas. Entramos
naquela das pinturas comunistas,
batizada "Oficial/ Não-Oficial",
passando primeiro por uma sala
que mostra a liquidação, no início
da RDA, do legado da Bauhaus. E,
no entanto, a demonstração logo
se embaralha. A luz crua, a disposição descuidada dos quadros e a
apresentação estritamente temática das carnudas beldades mitológicas, dos guerreiros com armaduras pseudomedievais ou dos
camponeses de feições buriladas,
tão caros a Hitler, nos dizem de
antemão: isso não é arte, mas somente imagens.
O cenário fotográfico, num certo sentido, já nos prevenira sobre
isso, embora ao preço de nos propor duas explicações concorrentes. As pirâmides de operários-ginastas que nos são mostradas dizem duas coisas contraditórias:
esse quadro não é arte porque não
há mais espaço para a arte no
tempo da mobilização policial absoluta dos corpos. Todavia esse
dispositivo teatral de apresentar a
comunidade a si própria é o destino de uma certa modernidade artística, a da arte identificada à vida. Ora, com isso a "pintura para
o povo" perde ela própria toda
importância, pois dá testemunho
menos da mobilização propagandística de uma arte, que dos gostos e fantasias pessoais de Hitler.
Mas é na parte dedicada aos
pintores da RDA que surgem os
problemas mais delicados. Sua
cenografia engloba os pintores ditos oficiais entre a Bauhaus inicialmente reprimida e os dissidentes que anunciam a libertação
final. Uma enorme rotunda acolhe em desordem a produção de
40 anos dos mais diversos pintores e repete, por sua forma, a demonstração anterior: isso não é
arte, mas propaganda. E, para dar
bem a medida disso, chegamos à
exposição por uma longa curva
que opõe, de um lado, as pinturas
de grande escala realizadas em
1975 para o Palácio da República
e, de outro, fotografias de cenas
da vida cotidiana na RDA.
O princípio é claro: opor às
pompas e mentiras da arte oficial
as imagens miúdas da realidade
cinzenta. Mas a demonstração é
capciosa. Por um lado, a mesma
cenografia é aplicável a qualquer
artista que trabalha em conjuntos
monumentais: Michelangelo ou
Chagall não estariam menos indefesos que Willi Sitte. Por outro, os
quadros expostos não são menos
ambíguos que as imagens da miséria cotidiana. Ao ilustrar as palavras de ordem oficial ("O homem é a medida de todas as coisas", "Estandarte vermelho", "As
forças criadoras", "Juventude do
mundo"), Werner Tübke ou Willi
Sitte, Kurt Robbel, Lothar Zitman
ou Bernard Heisig preocuparam-se primeiramente, eles também,
em combinar sobre a superfície
da tela formas cromáticas em arranjos diversos.
Suas obras dão testemunho de
uma imaginação e um virtuosismo incomparáveis ao imaginário
de Arthur Kampf, Rudolf Otto e
outros pintores nazistas. Além
disso, em razão da diversidade de
suas fórmulas, derivadas do expressionismo ou do surrealismo,
procuraríamos em vão definir um
modelo de realismo socialista.
Todos, certamente, eram alheios
à modernidade da abstração formal que, na mesma época, "dava
adeus" à arte. Mas a maneira de
eles retomarem as fórmulas ou citarem os ícones do passado os situa na era da arte pop ou dos novos realismos. E o pastiche de Signorelli, criado por Tübke para
ilustrar que "O homem é a medida de todas as coisas", teria seguramente passado, num outro contexto, por uma desmistificação
exemplar da tradição pictórica.
Relegar esses artistas ao inferno
da arte oficial pode prestar-se, assim, a uma leitura a contrapelo:
será que a arte irresignada aos cânones oficiais da arte ocidental
não é sempre estigmatizada de
"autoritária"? Será que não é o
"ponto de vista dos vencedores"
que se faz passar por guardião da
pureza da arte? Para sustentar a
reflexão sobre arte e política, a
"modernidade" é um suporte extremamente frágil, disso não há
dúvida.
Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e um dos nomes
centrais da filosofia francesa atual. É autor
de "O Dissenso", "O Desentendimento" (Ed.
34), "A Noite dos Proletários", entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.
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