São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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AUTORES
Exposição em Weimar problematiza relação entre estética e política
Arte em campo minado

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

Como pensar as relações entre o destino da arte em nosso século e as grandes ditaduras exercidas em nome da raça ou do povo? A exposição "Aufstieg und Fall der Moderne" ("Ascensão e Queda da Modernidade"), organizada por ensejo do ano "Weimar, Capital da Europa", certamente não é a primeira a formular essa pergunta. Sua localização, no entanto, parece dotar-lhe de um cenário e uma dramaturgia ideais. Weimar foi a cidade de Goethe e Schiller antes de ser a sede da Bauhaus. Foi o local de nascimento dessa república derrotada pelo nazismo antes de ser uma cidadezinha da República Democrática Alemã (RDA). Enfim, a alguns quilômetros de seus parques idílicos elevaram-se os barracões do campo de Buchenwald.
Neste ano, todo o patrimônio material e simbólico do local foi mobilizado para mostrar como o legado do humanismo clássico e da inovação artística precipitou-se na barbárie. Às edições preciosas e a todos os testemunhos da idade de ouro weimariana expostos na "Casa de Goethe" respondem, assim, expostas na "Casa de Schiller", as fotos e as fisionomias dos judeus enviados de Viena a Buchenwald para servir de cobaias ao estudo "científico" dos padrões físicos da nação judaica.
Mas, se o corpo-a-corpo entre os "documentos da cultura" e os "documentos da barbárie" não envolve maiores problemas, nem por isso é simples mostrar como os primeiros podem tornar-se os segundos, de acordo com a fórmula de Benjamin. Em que medida os quadros expostos em Weimar, num leque que vai desde a descoberta dos impressionistas às pinturas da antiga RDA, passando pelas obras oficiais da Alemanha hitleriana, podem esclarecer esse processo? Será que uma tal exposição não estaria entregue, mais do que as outras, a um dilema que persegue todas as exposições consagradas às relações entre arte e política?
Ou estas afirmam a autonomia intrínseca da arte, embora sustentem com isso sua irresponsabilidade diante dos embates coletivos de seu tempo e façam da relação entre esses dois termos uma simples questão de censura, ou estabelecem um princípio de implicação mútua entre o destino da arte e as formas de vida coletiva. "Modernidade", desse ponto de vista, é uma noção cômoda, que afirma o liame necessário entre uma era histórica e uma tarefa ou um conteúdo específicos, tornando todas as práticas dessa era solidárias e comensuráveis, como se fossem manifestações de um mesmo processo.
Mas há também o reverso da medalha. A dita modernidade presta-se às mais diversas e contraditórias definições: emancipação humana ou racionalidade desencantada, separação de esferas de atividade ou interdependência generalizada. A versão média da "modernidade" pretende inscrever a libertação da arte em relação aos cânones representativos, num processo global de emancipação política. Mas tal inscrição logo suscita dois problemas.
Será preciso considerar como emblema dessa emancipação a autonomia da arte, simbolizada pela ruína da figuração pictórica? Ou, de modo inverso, o verdadeiro emblema seria a afirmação da identidade entre as formas da arte e as da vida? Será que Kandinsky e Klee são modernos como pintores antifigurativos ou como artistas associados ao ensino da Bauhaus e ao projeto de síntese das artes? E como definir a relação entre sua escolha modernista, a repressão de sua arte e as catástrofes do século?
Será lícito pensar que sua arte modernista foi varrida pelo grande vento coletivo da regressão antimoderna? Ou, de modo inverso, que ela se tornou cúmplice da catástrofe global da modernidade, segundo a tese dos desiludidos deste fim de século, que acusam as vanguardas artísticas de terem preparado o terreno tanto para a desumanização mecânica do homem soviético quanto para a regressão irracionalista do homem nazista?
À primeira vista, os organizadores de "Ascensão e Queda da Modernidade" escolheram contornar a questão. Para tanto, dividiram a exposição em três partes. A primeira, acomodada no espaço tradicional de um museu, segue, segundo a lógica tradicional da história da arte, a passagem por Weimar das sucessivas vagas da novidade pictórica: impressionismo, pós-impressionismo, nabismo, expressionismo, abstracionismo, construtivismo. No máximo, o visitante poderia suspeitar de uma discreta sugestão na ordem que dispõe os quadros da exposição temporária diante de um certo número de telas da coleção permanente do museu, que guardaram seu lugar tradicional. Afinal, dispor os grupos de personagens sem rosto de Munch diante dos auto-retratos radiantes das pintoras do Iluminismo não seria torná-los testemunhas de uma identidade perdida entre o homem e sua imagem, torná-los prefigurações das vítimas anônimas do futuro?
A sequência da exposição, contudo, parece desmentir tal análise. As duas últimas partes, consagradas uma à arte nazista, outra à pintura da Alemanha comunista, foram materialmente separadas da primeira, como para negar toda relação entre as manifestações da modernidade pictórica e os testemunhos da ditadura. Situado a boa distância do museu, é um espaço hesitante entre o saguão da feira comercial e o estacionamento subterrâneo que acolhe as obras da arte nazista e da arte da RDA. E esse afastamento é redobrado pela cenografia dessas exposições.
Temos acesso à exposição das pinturas nazistas, batizada "A Arte para o Povo", por um corredor recoberto de fotografias das grandes paradas hitleristas. Entramos naquela das pinturas comunistas, batizada "Oficial/ Não-Oficial", passando primeiro por uma sala que mostra a liquidação, no início da RDA, do legado da Bauhaus. E, no entanto, a demonstração logo se embaralha. A luz crua, a disposição descuidada dos quadros e a apresentação estritamente temática das carnudas beldades mitológicas, dos guerreiros com armaduras pseudomedievais ou dos camponeses de feições buriladas, tão caros a Hitler, nos dizem de antemão: isso não é arte, mas somente imagens.
O cenário fotográfico, num certo sentido, já nos prevenira sobre isso, embora ao preço de nos propor duas explicações concorrentes. As pirâmides de operários-ginastas que nos são mostradas dizem duas coisas contraditórias: esse quadro não é arte porque não há mais espaço para a arte no tempo da mobilização policial absoluta dos corpos. Todavia esse dispositivo teatral de apresentar a comunidade a si própria é o destino de uma certa modernidade artística, a da arte identificada à vida. Ora, com isso a "pintura para o povo" perde ela própria toda importância, pois dá testemunho menos da mobilização propagandística de uma arte, que dos gostos e fantasias pessoais de Hitler.
Mas é na parte dedicada aos pintores da RDA que surgem os problemas mais delicados. Sua cenografia engloba os pintores ditos oficiais entre a Bauhaus inicialmente reprimida e os dissidentes que anunciam a libertação final. Uma enorme rotunda acolhe em desordem a produção de 40 anos dos mais diversos pintores e repete, por sua forma, a demonstração anterior: isso não é arte, mas propaganda. E, para dar bem a medida disso, chegamos à exposição por uma longa curva que opõe, de um lado, as pinturas de grande escala realizadas em 1975 para o Palácio da República e, de outro, fotografias de cenas da vida cotidiana na RDA.
O princípio é claro: opor às pompas e mentiras da arte oficial as imagens miúdas da realidade cinzenta. Mas a demonstração é capciosa. Por um lado, a mesma cenografia é aplicável a qualquer artista que trabalha em conjuntos monumentais: Michelangelo ou Chagall não estariam menos indefesos que Willi Sitte. Por outro, os quadros expostos não são menos ambíguos que as imagens da miséria cotidiana. Ao ilustrar as palavras de ordem oficial ("O homem é a medida de todas as coisas", "Estandarte vermelho", "As forças criadoras", "Juventude do mundo"), Werner Tübke ou Willi Sitte, Kurt Robbel, Lothar Zitman ou Bernard Heisig preocuparam-se primeiramente, eles também, em combinar sobre a superfície da tela formas cromáticas em arranjos diversos.
Suas obras dão testemunho de uma imaginação e um virtuosismo incomparáveis ao imaginário de Arthur Kampf, Rudolf Otto e outros pintores nazistas. Além disso, em razão da diversidade de suas fórmulas, derivadas do expressionismo ou do surrealismo, procuraríamos em vão definir um modelo de realismo socialista. Todos, certamente, eram alheios à modernidade da abstração formal que, na mesma época, "dava adeus" à arte. Mas a maneira de eles retomarem as fórmulas ou citarem os ícones do passado os situa na era da arte pop ou dos novos realismos. E o pastiche de Signorelli, criado por Tübke para ilustrar que "O homem é a medida de todas as coisas", teria seguramente passado, num outro contexto, por uma desmistificação exemplar da tradição pictórica.
Relegar esses artistas ao inferno da arte oficial pode prestar-se, assim, a uma leitura a contrapelo: será que a arte irresignada aos cânones oficiais da arte ocidental não é sempre estigmatizada de "autoritária"? Será que não é o "ponto de vista dos vencedores" que se faz passar por guardião da pureza da arte? Para sustentar a reflexão sobre arte e política, a "modernidade" é um suporte extremamente frágil, disso não há dúvida.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e um dos nomes centrais da filosofia francesa atual. É autor de "O Dissenso", "O Desentendimento" (Ed. 34), "A Noite dos Proletários", entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.


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