São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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+ antropologia
Pesquisador estuda a decomposição de cadáveres em centro nos EUA, único no mundo
Fazenda de corpos

Pierre Barthélémy
do "Le Monde"

Você nunca viu um morto? Bem, daqui a pouco não poderá mais dizer isso!" Com os cabelos brancos cortados em "escovinha", usando jeans, camisa pólo e tênis, como se fosse a um piquenique, William Bass desce da caminhonete com ar-condicionado que acaba de parar no estacionamento sufocante do hospital universitário de Knoxville. São 12 mil m2 verdejantes, numa encosta que dá vista para o rio Tennessee. Os cerca de 40 inquilinos permanentes desse lugar muito secreto jamais se levantam. De barriga para cima, o torso nu, barba espessa, um homem nos olha. Chegado recentemente, ele se cresta ao sol. Outros se protegem sob lonas, que o dono do lugar ergue sem repugnância. Bem-vindo à Fazenda de Corpos.
"Se não se sentir bem, basta caminhar um pouco", aconselhou Bill Bass. Caminhar para onde? Eles estão em toda parte e no ar, pois, mesmo se conseguirmos fixar os olhos numa área virgem, não podemos nos abstrair de uma coisa: o odor. É uma pestilência insuportável, como a que deve reinar num campo de batalha algumas semanas após os combates. Ao contrário dos outros sentidos, o olfato não tem transcrição direta para a linguagem. Há tantos referentes quanto odores. Isso cheira bem, a jasmim, mas não cheira a vermelho nem a grave nem a amargo nem a rugoso. Aqui o cheiro é mais do que de carniça, porque sabemos que não se trata de um simples cão atropelado. Um fedor adocicado, ao mesmo tempo insidioso e agressivo, quase insuportável, que parece reunir todos os odores da vida cotidiana.
O doutor Bass não parece se incomodar. Sem dúvida, ele alega, porque "tem um olfato medíocre". O hábito e todos os anos passados em companhia dos mortos também têm sua parte nessa insensibilidade. No entanto não há necrofilia malsã no procedimento desse antropólogo americano de 72 anos. A Fazenda de Corpos, que ele criou há três décadas, é um lugar de ciência único no mundo. Atraído no início de seus estudos pela psicologia, Bill Bass acabou "se cansando de escutar os problemas dos outros" e se apaixonou, em meados dos anos 50, por pessoas que aparentemente não terão mais nada a contar: os cadáveres e seus esqueletos. Quando participou de sua primeira pesquisa de campo, ele compreendeu imediatamente a potencial contribuição da osteologia à polícia científica. Pois, ao contrário do ditado segundo o qual os mortos não falam, estes muitas vezes têm algo a dizer, desde que se saiba escutá-los. Após uma década no Kansas, durante a qual trabalhou essencialmente com esqueletos, William Bass chegou em 1971 ao Tennessee, onde cerca de metade dos mortos não identificados que lhe são enviados ainda tem carne fervilhante de vermes. "O Kansas é duas vezes maior e duas vezes menos povoado que o Tennessee. Se você for morto no Kansas e o assassino esconder seu corpo, provavelmente só o encontrarão anos depois; se você for morto no Tennessee, a probabilidade de ser encontrado num estado anterior de decomposição é bastante boa. Estudei a literatura científica para saber como determinar a data da morte a partir desses restos, pois é sempre isso que a polícia quer saber, mas não havia nada. Então me dirigi à Universidade de Knoxville e lhes disse: "Preciso de um terreno para depositar corpos. A primeira versão da Fazenda de Corpos, muito reduzida, nasceu no outono daquele ano, 1971, a 45 minutos de carro do campus". Depois apareceu o coronel Shy. "Num dia de dezembro de 1977", conta o dr. Bass, "me chamaram porque haviam profanado um túmulo num cemitério histórico perto de Nashville, e a polícia temia que a vítima de um assassinato estivesse enterrada em um caixão antigo. Quando examinei o corpo ainda havia carne num fêmur. Segundo minha experiência, com base na exumação de um velho cemitério de alemães luteranos em 1974, concluí que se tratava de um homem branco de cerca de 20 anos, morto havia menos de um ano". A vítima em questão, um homem branco, tinha efetivamente 26 anos no momento de sua morte. Mas o oficial confederado William Shy tinha morrido na Guerra de Secessão, em 1864... "Eu me enganei em apenas 112 anos", sorri Bill Bass. "Meu erro se deveu ao fato de que o coronel Shy tinha sido embalsamado e colocado num caixão fundido, o que impediu a decomposição total." Dessa desventura o antropólogo tirou a conclusão de que precisava realizar mais experiências sob todas as condições imagináveis. Em 1979 a universidade finalmente lhe destinou um grande terreno próximo ao centro da cidade. Começava a aventura científica na atual Fazenda de Corpos. Para analisar o que ocorre após a morte, os fatores biológicos e ambientais que participam da decomposição de um cadáver, cerca de 500 corpos já se hospedaram no que é chamado oficialmente de Instalação de Pesquisa Antropológica (ARF) da Universidade do Tennessee. Vestidos, nus, envoltos em plástico ou tapetes, ao sol, à sombra, debaixo d'água e da terra, no porta-malas dos dois carros, todas as situações foram testadas e ainda o são. Graças a essas pesquisas, a "sequência" das mortes está hoje bem definida, explica o dr. Bass: "A coisa inicia de maneira interna. As enzimas do sistema digestivo começam a comer os tecidos, o que provoca a putrefação. A primeira coisa que você vê é a descoloração da região intestinal. Depois o corpo sangra e inicia sua decomposição. Se estiver ao ar livre, os insetos terão acesso a ele, ajudando no desaparecimento dos tecidos mortos. Seus ovos darão origem a larvas que vão comer a matéria. Depois de três semanas elas se tornarão adultas. É por isso que, em geral, se se encontrar em um cadáver casulos vazios que contiveram pupas dessas moscas, é possível dizer que passaram pelo menos 21 dias desde a morte".

Grama envenenada
Os habitantes da Fazenda de Corpos passam em média um ano lá. No local onde se deitaram a grama não crescerá antes de dois anos, devido aos ácidos graxos que a envenenam. Por isso o solo é analisado, para se saber, mesmo na ausência de cadáver, quanto tempo ele passou lá. Idem para o odor. Diretamente importados da indústria de perfumes, narizes artificiais aspiram os aromas pestilentos e desenham as curvas de diferentes marcadores químicos ao longo do tempo. Se a ordem dos fatos ocorridos após a morte não varia jamais, a velocidade do processo é sujeita a flutuações, principalmente devido à temperatura. Um corpo apodrece mais lentamente em Chicago do que em Miami. Mas, apesar de seus esforços, o dr. Bass nunca conseguiu fazer comparações em outras regiões dos EUA ou em outra parte do mundo. No entanto a utilidade de suas pesquisas está comprovada. Em diversas investigações policiais, o antropólogo fez os mortos falarem. Em julho de 1997, um agente do departamento de investigação do Tennessee telefonou para o dr. Bass da casa de Matt Rogers, cuja mulher, Patty, estava desaparecida havia duas semanas. A polícia descobrira no quintal um barril cheio de ossos carbonizados. Matt Rogers dizia que eram ossos de cabra. Bill Bass e dois de seus alunos coletaram milhares de fragmentos, os levaram para Knoxville, os limparam e começaram a montar um incrível quebra-cabeça macabro. Não apenas o antropólogo conseguiu reconstituir o esqueleto de Patty Rogers, como também localizou vestígios de um tiro no crânio. Depois de ler o relatório do dr. Bass, Matt Rogers confessou o crime. Está cumprindo 25 anos de prisão. Foi depois da publicação, em 1994, do romance policial "Lavoura de Corpos" (Companhia das Letras), de Patricia Cornwell, que a ARF passou a ser conhecida nos EUA. William Bass é apresentado no livro na figura do dr. Lyall Shade, que ajuda a heroína de Cornwell, a médica-legista Kay Scarpetta, a reconstituir a história do cadáver de uma menina assassinada. A pedido de Scarpetta, que se pergunta sobre uma misteriosa mancha encontrada na pele da criança, Shade coloca um inquilino da fazenda sobre diversos objetos metálicos e deixa o tempo agir. Scarpetta percebe assim que o vestígio em questão é a imagem em negativo do perfil de George Washington da moeda de 25 centavos que ela encontrou no porão da casa do assassino. Por amor ao detalhe, Bill Bass realmente fez a experiência para a escritora, que ele considera sua amiga. Esta doou US$ 20 mil ao departamento de antropologia para comprar uma nova caminhonete para transportar corpos -porque estes vêm e vão.

Desejos realizados
Existem três fontes de "abastecimento", explica William Bass: "Primeiramente há os corpos não reclamados, os mortos que as famílias não querem enterrar. Como custa US$ 700 para o município inumá-los, eles preferem me dar os corpos para economizar. Depois há pessoas que querem legar seus corpos à ciência. Enfim, como participei várias vezes de programas de televisão, pessoas me escrevem para saber se podem legar seus corpos à fazenda. Os advogados da universidade criaram um formulário com esse fim. Umas 300 pessoas já assinaram". Quatro delas já tiveram seu último desejo cumprido.
É assim que a Fazenda de Corpos garante seu futuro. Mas qual o destino dos corpos que já prestaram serviço? A resposta é que nunca se termina de servir a Bill Bass. Do outro lado do rio Tennessee, ergue-se o estádio de futebol americano onde o time universitário Tennessee Volunteers se apresenta para 108 mil pessoas. Sob as arquibancadas foram construídos quartos para os jogadores, que se tornaram os escritórios do departamento de antropologia. Entre eles está a sala 205, sempre fechada a chave. Aqui terminam as ossadas, limpas de toda a carne, em caixas de papelão de 30 cm de altura por 30 cm de largura e 1 metro de comprimento. Há centenas empilhadas, nas quais se vêem um número, o sexo, a idade, a raça, eventualmente a causa da morte. Um esqueleto é leve: dez quilos. A "coleção de esqueletos de William M. Bass" forma um exército que serve para o estudo osteológico dos americanos de hoje.
Bill Bass aposentou-se há dois anos, mas continua ativo. É raro o dia em que não vá à universidade ou à fazenda. Sabe que ela é fascinante porque, como diz, "em nossa cultura, quando uma pessoa morre, colocamos um lençol sobre ela. O agente funerário vem e nunca mais a vemos". Ter a morte por perto durante tanto tempo não o impede de detestá-la. Suas duas primeiras mulheres morreram de câncer.
Quanto aos corpos da fazenda, ele não os vê como mortos, mas como objetos de experimentação científica. E o que fará de seu próprio corpo? Prefere deixar a decisão para sua família e acha que seus alunos não gostariam de depositá-lo numa caixa de papelão. Com que sonha à noite? "É engraçado, você é o primeiro que me faz essa pergunta. Eu nunca disse a ninguém -nem mesmo à minha terceira mulher, Carol-, mas de vez em quando sonho que eu mato alguém e tento esconder o cadáver na Fazenda de Corpos."


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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