São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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O desenhista de idéias

Newton da Costa
especial para a Folha

Godfrey Harold Hardy (1877-1947) foi um matemático inglês de grande projeção. Lecionou nas universidades de Cambridge e Oxford, tendo contribuído muito para a renovação e para o aperfeiçoamento do ensino da matemática na Inglaterra (e, indiretamente, em outros países); seu livro de índole didática "A Course of Pure Mathematics" (Um Curso de Matemática Pura, Cambridge University, Inglaterra, primeira edição em 1908) tornou-se célebre. Hardy colaborou intensamente, a partir de 1912, com John Edensor Littlewood (1885-1977) e, por algum tempo, com o genial matemático hindu Srinivasa Ramanujan (1887-1920). Essas colaborações ficaram famosas não apenas pelos resultados obtidos como também, no caso de Ramanujan, pela tragédia que envolveu a vida deste último. A obra matemática de Hardy versa, acima de tudo, sobre a teoria dos números, embora trate, além disso, de temas tais como soma de séries divergentes, "séries de Fourier" e certos aspectos da "função zeta de Riemann" (Hardy demonstrou que ela tem infinitos zeros de determinado tipo).

Artista criativo
O nome de Hardy acha-se ligado à chamada lei de Hardy-Weinberg, referente à genética. Ela foi descoberta simultaneamente, porém de modo independente, por ele e pelo alemão Wilhelm Weinberg (1862-1937). A lei concerne à maneira de propagação de genes dominantes e recessivos em grandes populações, desde que certas condições sejam satisfeitas; constitui lei de relevância em genética de populações. Na pequena obra em questão, intitulada, em inglês, "A Mathematician's Apology", terminada em 1940, Hardy procura justificar e defender, de seu ponto de vista, a carreira matemática. O livro contém uma introdução de C.P. Snow (1905-1980), seu amigo, que é excelente, fornecendo retrato bem elaborado e claro da vida de Hardy, em especial de sua psicologia. Quando o trabalho apareceu, Graham Greene afirmou que se tratava, de fato, da exposição do que significava ser um "artista criativo". Hardy acreditava que a escolha da carreira matemática, ao contrário do que se pode pensar, se fundamenta em três incentivos principais: curiosidade intelectual, orgulho profissional e ambição. Ele duvida que se opte por uma profissão pelo amor à humanidade ou por outras razões exclusivamente altruísticas. Sua tese básica é a de que o "matemático, como o pintor ou o poeta, é um desenhista". Todavia, enquanto os pintores se voltam para as formas e os poetas, para as palavras, o matemático desenha idéias". Daí a obra deste ser mais duradoura. O objetivo do matemático é provar teoremas, fazer avançar a sua ciência. Mas o essencial é a prova de teoremas não-triviais. As idéias matemáticas realmente importantes são as belas: a beleza constitui a chave mestra do matemático. Em adição, a verdadeira matemática deve ser séria. A seriedade advém da generalidade (amplitude) e da profundidade dos conceitos. Os resultados significativos enquadram-se, sempre, entre os belos e sérios.

Ciência desinteressada
Hardy não acha essencial para o julgamento da matemática suas possíveis aplicações, pelo menos as aplicações "práticas" (ele considera, não obstante, cientistas como Dirac, Einstein e Eddington matemáticos na verdadeira acepção da palavra). As aplicações que ele tem em mente não passam, efetivamente, das da matemática trivial, usuais e desinteressantes (como ocorre com a balística). Então saca uma conclusão algo desconcertante: a boa matemática é inofensiva, por exemplo não tem lugar na guerra. Se G.H. Hardy pudesse ver o que hoje se faz em matemática aplicada, talvez mudasse de opinião. Porém, para ele, o que tem valor é a matemática pura: ele foi um dos matemáticos mais puros que existiram.
O livro merece leitura de matemáticos, cientistas, filósofos, pedagogos e leitores médios. No fundo, trata-se de obra comovente, que nos faz refletir sobre a tragicomédia da vida humana, em particular pela introdução de Snow. Surpreendentemente, a tradução é muito boa, tendo-se em vista as dificuldades do estilo de Hardy.



Em Defesa de um Matemático
142 págs., R$ 21,50 G.H. Hardy. Introdução de C.P. Snow. Tradução de Luís Carlos Borges. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/ 11/239-3677).



Newton C.A. da Costa é professor no departamento de filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor de fundamentos da computação e lógica da Unip (Universidade Paulista), autor, entre outros, de "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial).

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