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Orgânicos X Transgênicos
A gente não quer só comida
JOSÉ AUGUSTO PÁDUA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A ciência descobre, a
tecnologia executa,
o homem obedece."
As palavras escritas
no portal da Feira
Mundial de Chicago, em 1933,
sintetizam a postura submissa
que ainda caracteriza a relação
de importantes setores da opinião pública contemporânea
com as inovações tecnológicas.
No vazio das antigas certezas
religiosas, a ciência tornou-se
para muitos a única fonte confiável de verdade. É irônico observar, porém, que o próprio
movimento da modernidade
global age no sentido de dissolver a aura de devoção construída em torno do complexo ciência & tecnologia.
O número cada vez maior de
pessoas escolarizadas, a velocidade e a intensidade dos meios
de comunicação, o estabelecimento de múltiplos espaços
para o confronto de opiniões
vêm contribuindo para gerar
sociedades que discutem cada
vez mais seu presente e futuro.
O que está sendo discutido,
na verdade, não são os limites
da ciência, mas sim o alcance
da democracia na alta modernidade. Nesse sentido, a surpreendentemente forte reação
de diversos atores sociais aos
alimentos transgênicos, especialmente dos consumidores
europeus, representa um caso
paradigmático.
A pressão democrática para
que a produção de organismos
geneticamente modificados seja debatida de forma intensa e
transparente, com uma moratória no seu uso, contribui para
dar visibilidade aos condicionantes econômicos que controlam grande parte da atual
pesquisa técnico-científica.
E serve também para expor o
uso da ideologia da pureza do
progresso científico como instrumento para justificar decisões empresariais fundadas em
objetivos bem menos etéreos,
tais como o aumento dos lucros
e o controle dos mercados.
Princípio de precaução
Não se trata de coibir a pesquisa acadêmica. O esforço de
politização das novas tecnologias, com exceção de algumas
poucas vozes especialmente radicais, não passa pela defesa de
uma censura da investigação
teórica ou experimental.
O problema está na difusão
social precoce, por motivos calcados essencialmente na busca
por poder econômico, de técnicas perigosas que ainda estão
sob intenso debate científico.
Ou seja, uma clara violação
empresarial do chamado "princípio da precaução", que estabelece, diante da incerteza, que
não se devem adotar atividades
ou técnicas cujas conseqüências, se negativas, podem ser irreversíveis ou além da nossa
capacidade de controle.
Os organismos geneticamente modificados, na medida em
que são seres vivos, podem
mesclar-se com outros organismos e penetrar nas cadeias ecológicas planetárias, reproduzindo-se de forma descontrolada. É tolice, pois, associar os
transgênicos à modernidade e
os orgânicos ao arcaísmo.
No setor da produção orgânica, por exemplo, que está crescendo como uma alternativa ao
modelo transgênico, existe hoje um grande investimento
científico. Não se trata de aceitar passivamente os movimentos da natureza, mas sim de
buscar ativamente, por meio de
um conhecimento ecológico fino e sofisticado, formas de potencializar a produtividade e a
capacidade de sustentação das
lavouras.
Mas seria ingênuo supor que
a polarização entre transgênicos e orgânicos esteja fundada
em uma disputa apenas técnico-científica.
Trata-se, mais do que tudo,
de uma questão de poder. A
agroecologia, por suas características concretas, não facilita a
concentração de poder assim
como não favorece o estabelecimento de monopólios, patentes e pacotes tecnológicos.
A gestão ecológica da agricultura requer desenhos locais,
que dialoguem com as condições específicas de cada domínio do território.
Seus insumos, além disso,
são renováveis e recicláveis.
No núcleo da pressão pelos
transgênicos se encontra a fome de poder de um número
restrito de enormes conglomerados empresariais, que, no limite, buscam usar as novas tecnologias para dominar a oferta
de sementes e reduzir a autonomia dos agricultores e, por
extensão, das sociedades.
É assustador imaginar um
futuro em que algo tão vital como as sementes -assim como
as fontes da alimentação em geral- estejam nas mãos de pouquíssimas corporações. O consumidor, ao optar pelo que comer e por qual modelo favorecer, pode estar fazendo política
no mais alto grau.
JOSÉ AUGUSTO PÁDUA é professor do departamento de história da Universidade Federal do
RJ e autor de "Um Sopro de Destruição".
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