São Paulo, domingo, 30 de março de 1997.

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CINEMA
AMIR LABAKI
da Equipe de Articulistas

Se uma pesquisa fosse hoje feita sobre os maiores documentaristas vivos, Marcel Ophuls seria nome certo nas primeiras posições. Todos se lembram de Woody Allen declamando em ``Noivo Neurótico, Noiva Nervosa'' (``Annie Hall'') sua devoção a ``A Dor e a Compaixão'' (``Le Chagrin et la Pitié'', 1971), a monumental desconstrução do colaboracionismo francês. A estréia do filme em Nova York levou Paulo Francis a dissecá-lo num ensaio, no ``Pasquim'', que terminava considerando-o ``magnífico''. A primeira indicação ao Oscar não foi, assim, surpresa.
A segunda, em 1988, já era o reconhecimento de um mestre. Ophuls, dessa vez, não deixou o prêmio escapar, ganhando fecho de ouro para sua ``trilogia nazi'' com ``Hotel Terminus - Klaus Barbie, Sua Vida e Seu Tempo'', sobre o carrasco de Lyon. Entre um e outro, a devassa da barbárie nazista motivara ainda ``A Memória da Justiça'' (1975), a respeito do julgamento de Nuremberg.
O nazismo é o tema capital do cinema de Ophuls, mas sua câmera já abordou questões igualmente delicadas, como a guerra civil irlandesa (``A Sense of Loss'') e a queda do muro de Berlim (``November Days''). Em seu mais recente filme, ``Os Problemas Que Temos Visto'' (1994), Ophuls adapta para a cobertura jornalística da guerra civil iugoslava a teoria de Philip Knightley, na qual a primeira vítima de todo conflito armado é a verdade.
Filho de peixe (Max Ophuls, 1902-1957, de ``Lola Montez''), em mais de meio século de documentarismo militante e humanista, Marcel Ophuls, 69, criou um estilo todo próprio. O próprio cineasta protagoniza seus filmes, como uma espécie de Sherlock da História. Entrevistador incansável, prova a todo momento o abismo entre memória e verdade.
Ophuls vem ao Brasil no próximo mês, a convite da Folha e do 2º Festival Internacional de Documentário ``É Tudo Verdade''. O Mais! publica abaixo uma carta de auto-apresentação do cineasta ao público brasileiro.


Carta aos espectadores brasileiros


O cineasta francês Marcel Ophuls, que vem ao Brasil neste mês, escreve uma auto-apresentação ao público do país
MARCEL OPHULS
especial para a Folha

Há pouco tempo, li em algum lugar que o seu novo presidente teria dito, a propósito do seu grande e maravilhoso país: ``O Brasil não é um país pobre, é um país injusto''. Isto me impressionou, e por duas razões.
Há 30 anos, e muito a contragosto, tenho-me confrontado, no exercício das minhas atividades profissionais, com a injustiça da nossa história contemporânea. Contra a minha vontade, tornei-me, a partir da realização do filme ``Le Chagrin et la Pitié'' (``A Dor e a Compaixão'', 1969), um tipo de especialista da miséria do mundo. Nada de muito alentador, há que se confessar, sobretudo à medida que os anos passam. Eis-me agora acuado no papel, um tanto ridículo, de dom Quixote encanecido, encarapitado num magro rocim, supostamente usando da câmera como de uma lança de cavaleiro obsoleto contra os temíveis moinhos de vento da barbárie, do genocídio e da injustiça do século 20.
Definitivamente, não há por que se pavonear. E devo ainda confessar que tal ``especialidade'', dolorosa em si mesma, não melhora em muito o estado da minha conta bancária. Meu pai (Max Ophuls), cineasta de gênio, conheceu a glória a título póstumo, mas ainda hoje, graças às televisões do mundo inteiro, à TV a cabo, aos videocassetes e aos satélites, seus direitos autorais ainda ajudam a ``encher a panela'' nos anos de vacas magras. Mas o que será da minha família quando o vovô cair no domínio público e quando eu mesmo tiver desaparecido, se já agora não se encontram cópias dos meus filmes nem sequer para a organização de retrospectivas?
Questão melancólica a que os quixotescos a meio soldo não podem fugir. George Bernard Shaw (1856-1950), este espírito magnífico, lúcido e excêntrico, pensava que, nas artes de espetáculo, todos os que trabalham para a posteridade são ``pompous arses'' (asnos pomposos), pretensiosos mesquinhos condenados à trivialidade... Formidável! Estou profundamente de acordo, mas depois de uma vida inteira (como a sua mesma) debruçado sobre as taras, os ridículos e os vícios do tempo, quando soa a hora tardia das retrospectivas e das comemorações, tem-se o direito de formular algumas questões. Não se trata necessariamente de orgulho (sabe-se lá!), mas, antes, de uma tomada de consciência da própria mortalidade.
Muito já se afirmou que ``Le Chagrin et la Pitié'' (o filme sobre a ocupação nazista da França, que me tornou célebre em diversos países, confinando-me, simultaneamente, a um gênero de cinema que não me agrada em especial -teria preferido rodar ``Cantando na Chuva'' e os filmes de Fred Astaire e Woody Allen) serviu para mudar a autopercepção histórica de toda uma nação. Não tenho tanta certeza, mas pode até ser o caso! Em caso afirmativo, creio que este terá sido, acidentalmente, um dos raros casos dentro da história do cinema a ter cumprido tarefa tão gigantesca. Mas o improvável não acontece todos os dias, e estou convencido de que o impacto da mídia -e do cinema em especial- sobre a consciência e sobre a vida das pessoas é evanescente, fugitivo, mínimo. Feitas as contas, ainda bem! Não fosse assim e o dr. Goebbels teria tido sucesso ainda maior, ao passo que os espíritos medíocres e demagógicos dos publicitários e dos magnatas da mídia, que, atualmente, controlam nosso consumo audiovisual, celebrariam um verdadeiro triunfo no interior das nossas cabeças.
``Injustiça e pobreza''! A primeira e única vez em que pude visitar o Brasil ocorreu quando retornava de uma filmagem na Bolívia -uma fita sobre a vida e a carreira do ignóbil Klaus Barbie, de título ``Hotel Terminus''. Essa filmagem, toda ela em La Paz, Cochabamba e Santa Cruz, em meio aos chefões das drogas e aos antigos protetores e amigos do ``açougueiro de Lyon'', fora razoavelmente penosa e, sem dúvida, muito perigosa. Após a filmagem, quis voltar a Paris fazendo escala no Rio de Janeiro, decerto influenciado por minhas recordações de ``Flying Down to Rio'', de ``Notorious'' ("Interlúdio") -do mestre Hitchcock-, mas também pela leitura da autobiografia de Stefan Zweig e pela notícia de seu encontro com Orson Welles, poucos dias antes do suicídio. Queria também, cumpre confessar, tomar um banho de mar na famosa praia de Copacabana e, se possível, encontrar algumas daquelas moças esplêndidas e seminuas que sempre se vêem nas reportagens sobre o Carnaval do Rio.
Mandei a equipe de filmagem de volta a Nova York e sobrevoei sozinho a Amazônia, num avião das Linhas Aéreas Bolivianas, pertencentes ao general Hugo Banzer, amigo e notório protetor de Klaus Barbie e muitos outros criminosos de guerra. Numa escala em Santa Cruz e em circunstâncias muito misteriosas, roubaram-me um guardanapo contendo todos os endereços dos meus informantes dissidentes na Bolívia. Instalado no Hotel Méridien, no Rio de Janeiro, passei a maior parte do tempo tentando alertar as autoridades consulares e diplomáticas da França e dos EUA, meus dois países de adoção. Em vão! Não recuperei o guardanapo. Felizmente, o sr. Banzer, algumas semanas mais tarde, perdeu as eleições para um candidato mais democrático e menos suspeito de simpatias nazis. Posso, então, ter esperanças de que meus informantes em La Paz não tenham sido molestados.
Fosse como fosse, trajando um roupão branco e, a conselho da recepção do hotel, despido de carteira, relógio ou jóias, acabei por me aventurar sozinho na praia. Era baixa temporada, e eu era o único a andar por aqueles quilômetros de areia, exceção feita a um vendedor de amendoins descalço que passava por mim, de quando em quando. As ondas estavam muito fortes, e eu mergulhava nelas com imenso deleite. É tudo de que me lembro! Amnésia total! Não sei quanto tempo depois dei por mim encostado a uma placa de trânsito ao lado da avenida. Era dia de maratona no Rio, e os corredores, acompanhados pelos carros da TV, desfilavam à minha frente. Um garoto brasileiro apontava o dedo para o meu rosto ensanguentado: ``Doutor! Doutor!'', dizia ele com voz suave, mas insistente. Acabei por seguir o conselho do gentil pequenino; chamaram o médico do hotel, uma bela moça judia chamada Monica Wolff, que, depois de dar a atenção devida ao meu olho roxo, aconselhou uma transferência para um pronto-socorro, a fim de passar por uma tomografia.
Para dizer a verdade, eu não estava muito inclinado a seguir o conselho. Havia poucos dias que o seu último presidente, recentemente eleito, sucumbira a uma série de dez intervenções cirúrgicas, tudo por causa de uma banal apendicite. Decidi-me, então, a convidar a bela doutora para um almoço e a retornar à França tão logo fosse possível. O resultado é que agora tenho um buraco na cabeça e sofro perdas de memória. Terá sido uma vingança dos amigos de Klaus Barbie no Brasil, aqueles ``boys from Brazil'' que, por tanto tempo, protegeram o dr. Mengele, de sinistra memória? Quem sabe?
A maravilhosa declaração do presidente Cardoso, corajosa e autocrítica, tranquiliza-me bastante quanto à situação presente das instituições políticas e hospitalares no Brasil. Desde então, a democracia e os direitos humanos parecem ter feito progressos significativos em seu país. Em tais condições, será que os meus filmes, longos, e sobrecarregados com as legendas em português, terão algo a ``ensinar'' ao público brasileiro? Seja como for, sou mais que cético quanto às supostas virtudes pedagógicas do meu cinema. Para mim, mui francamente, trata-se, no melhor dos casos, de filmes ``de sucesso''. Se é que há ``virtudes'' neles, estas não serão outras que as do cinema em geral, arte popular do nosso século -e, neste caso, creio que são consideráveis. Como qualquer profissional do espetáculo, tento sobretudo seduzir, agradar, distrair.
De resto, se houver alguma relação entre os comerciantes que financiavam, e talvez financiem ainda, os esquadrões da morte que executam os meninos das favelas brasileiras e Marius, aquele comerciante de Clermont-Ferrand que, em ``Le Chagrin et la Pitié'', confessava ter publicado um anúncio no jornal para anunciar à sua ``amável clientela'' que não era judeu... bem, cabe a vocês descobrir.
NB: Meus filmes, compostos quase que exclusivamente de entrevistas filmadas e de documentos de arquivo, são bastante longos, complexos e inteiramente estruturados sobre as falas das inúmeras testemunhas. Creio que poderíamos chamá-los de ``testemunhos múltiplos''. A despeito do apoio considerável das legendas em português, desaconselho a espectadores sem grandes conhecimentos de francês e inglês o sofrimento desnecessário de quatro horas de ``talking heads''. Não podia deixar de preveni-los! Obrigado e até logo!
Cordialmente,
Marcel Ophuls.


Tradução de Samuel Titan Jr..

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