São Paulo, domingo, 30 de março de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MEMÓRIA
Um episódio esquecido da repressão


Morte de estudante em 1973 levou igreja a confronto com regime militar brasileiro
KENNETH P. SERBIN
especial para a Folha

Muitos brasileiros lembram um protesto religioso contra a tortura e o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, como o grande despertar da oposição na luta contra o regime militar de 1964-1985. Segundo um jornalista, a morte de Herzog causou ``a primeira grande reação popular contra a tortura, as prisões arbitrárias, o desrespeito aos direitos humanos''. Mas esse incidente foi posterior à queda acentuada da violência durante o governo do presidente Ernesto Geisel (1974-1979).
As grandes manifestações contrárias aos militares, após 1970, foram inauguradas não pelo caso Herzog, mas por um ato anterior, realizado contra a morte de Alexandre Vannucchi Leme. Estudante de geologia na USP, Leme morreu na prisão aos 22 anos, no dia 17 de março de 1973, horas depois de ser preso. Sua morte levou estudantes e religiosos católicos a arriscar um confronto violento com o regime do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), reunindo 3.000 pessoas para ouvir o cardeal arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, criticar o governo numa missa em sua memória. Apesar de ter sido esquecido, o caso Leme ajudou a erguer a igreja à sua posição de liderança decisiva da oposição.
Na década de 70, a censura e a polarização ideológica da Guerra Fria ocultaram as verdades do conflito em torno da repressão. Mas entrevistas realizadas recentemente e novas fontes obtidas em arquivos nos convidam a repensar os ``anos de chumbo''. O arquivo da antiga polícia política de São Paulo, o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), contém dezenas de documentos sobre o caso Leme. Outras evidências vieram à tona na coleção ``Brasil: Nunca Mais'' (``BNM''), na Universidade Estadual de Campinas e em outros arquivos.
As novas evidências esclarecem o caso Leme e sua importância histórica -passo necessário para curar as feridas deixadas pelo período e fazer o debate histórico avançar para além da polarização esquerda-direita. Embora a maioria das pessoas na USP e na igreja vissem Leme principalmente como estudante e desconfiassem da história do ``atropelamento'' contada pelo regime, está claro, hoje, que as forças de segurança o haviam identificado, corretamente, como importante militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas a tortura malfeita das forças repressivas fizeram uma prisão de rotina agravar-se progressivamente, transformando-se em assassinato, ocultação do acontecido e problema político de difícil solução para o regime. O incidente levou a igreja a arriscar-se a sofrer represálias ao aproximar-se da esquerda revolucionária, mas também criou condições para que ela pudesse instigar a oposição.
Leme morreu numa guerra civil não-declarada, travada entre revolucionários esquerdistas e as Forças Armadas. Muitos estudantes entraram na ALN, que constituiu importante ameaça armada ao regime. No final de 1969, a polícia paulista matou Carlos Marighela, fundador da ALN, e prendeu padres dominicanos favoráveis à organização. Quando as guerrilhas chegaram ao fim, em 1974, havia dezenas de mortos de ambos os lados. Os agentes de segurança torturaram milhares de pessoas para obter informação e intimidar a população.
Estudante modelo e líder altamente respeitado no campus, Leme veio de uma família religiosa de Sorocaba. Três de suas tias eram freiras e um de seus tios, um padre muito conhecido. Mas o governo o viu como ``terrorista'', envolvido em assaltos armados, roubos e no assassinato de Manoel Henrique de Oliveira, um dono de restaurante morto por ser delator da ALN.
Segundo um inquérito policial, Leme era o ``cérebro'' da ALN na USP. Ele distribuía jornais e aliciava estudantes para a organização. Saudava as denúncias feitas pela igreja contra os abusos cometidos pelo regime e teria contatado ``padres preparados para engajamento na ALN''.
Numa entrevista recente, o único líder da ALN que sobreviveu à repressão confirmou muitas dessas suspeitas. Criticado por alguns integrantes da esquerda por seu livro ``Viagem à Luta Armada'', uma história da ALN vista por dentro, contendo uma visão crítica dos revolucionários, Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz revelou que se reuniu com Leme, em meados de 1972, para discutir o recrutamento de novos militantes estudantis. Para os guerrilheiros, cada vez mais isolados, Leme representava um elo crucial com o mundo externo. Ele passou a Paz a informação de que o repúdio ao regime estava aumentando no campus e no interior da igreja. Ademais, depois do desastre dominicano, a ALN contava com Leme para renovar seus vínculos com a igreja. Embora Leme apoiasse a ALN por meio de atividades pacíficas, ele endossava a luta armada. Sua morte representou um golpe sério à organização. ``Ele não foi um inocente útil'', concluiu Paz.
Entretanto, excetuando uma declaração vaga feita por um estudante torturado, a polícia não possuía provas que vinculassem Leme à violência. O principal interrogador do Deops, delegado Edsel Magnotti, citou documentos encontrados com os assassinos e Oliveira, e que implicavam Leme, mas esses documentos não constam dos arquivos do Deops e do ``BNM''. Uma alegada confissão que Leme teria feito tampouco foi encontrada (os arquivos da inteligência militar, que provavelmente contêm muitas informações sobre o caso Leme e muitos outros, continuam vedados ao público). Ademais, Paz, que ordenou a execução, negou o envolvimento de Leme.
No entanto, um documento do Deops comprova que Leme foi preso, sem dúvida alguma, por agentes do Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), uma unidade especial de combate à guerrilha. Segundo testemunhas, duas equipes de interrogadores o torturaram nos dias 16 e 17 de março. Quando um carcereiro foi buscá-lo para ser submetido a mais uma sessão, encontrou-o morto.
As autoridades alegaram que Leme tinha sido atropelado por um caminhão ao tentar fugir da polícia. A igreja afirmou que ele foi morto sob tortura. A polícia impediu que o corpo fosse examinado em busca de sinais de abusos, enterrando-o rapidamente no cemitério de Perus e cobrindo-o com cal para acelerar a decomposição (as forças de segurança também esconderam outros corpos no mesmo local). Depois de procurar seu filho freneticamente durante dias, José de Oliveira Leme foi informado do enterro de Alexandre pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, o notório torturador que matou Marighela. A mãe de Alexandre, Egle Maria Vannucchi Leme, foi ao cemitério, onde um funcionário lhe mostrou a cova.
Por que Leme morreu? Só os torturadores conhecem os detalhes íntimos de seu calvário. O único indivíduo identificado por nome (os outros são conhecidos apenas por seus codinomes), o comandante do DOI-Codi, major Carlos Alberto Brilhante Ustra, não comentou nada sobre Leme no livro que publicou em 1986, no qual negou ter participado de torturas. Ele recusou-se a ser entrevistado.
Segundo Marival Chaves Dias do Canto, analista de inteligência do DOI-Codi e única pessoa a vir a público falar sobre o que acontecia dentro desse órgão, os agentes se apressaram a falsificar duas versões. A primeira destinava-se àqueles que sabiam que Leme havia morrido nas dependências do DOI-Codi. Essa versão dizia que Leme cometera suicídio, cortando o pescoço com uma lâmina. Para autenticar a história, os agentes cortaram a garganta enquanto o corpo ainda estava deitado na cela. Outros presos viram o corpo ensanguentado de Leme sendo arrastado pelos agentes. Depois disso, os carcereiros montaram uma suposta busca por lâminas em outras celas.
A segunda versão, a do acidente com um caminhão, foi passada para a imprensa. Ela se tornou necessária quando um estudante da USP informou, da prisão, a família. Numa carta enviada a um promotor, o diretor do Deops, Lúcio Vieira, confundiu as duas versões, referindo-se ao acidente como ``suicídio''. O impacto político do incidente levou a polícia a justificar a morte de Leme, promovendo uma investigação póstuma sobre ele. Em seu relatório, Magnotti revelou a preocupação básica do regime: protestos de estudantes e da igreja (outros documentos indicam o envolvimento, na investigação, do delegado Romeu Tuma, chefe de inteligência do Deops, posteriormente diretor da Polícia Federal e hoje senador da República). A polícia manteve os estudantes sob vigilância atenta, por meio de um agente infiltrado.
Tanto os estudantes quanto a igreja queriam promover uma missa em memória de Leme, mas um culto para um suspeito subversivo só poderia irritar as autoridades. Numa entrevista concedida recentemente, d. Paulo recordou como 22 líderes de diretórios acadêmicos foram a sua casa exigir que ele fosse a USP. Disseram que, se não o fizesse, começariam um quebra-quebra. Mas ir a USP seria uma provocação ainda maior aos generais. Em busca de uma alternativa não violenta, d. Paulo convenceu os estudantes de que uma missa na catedral da Sé teria impacto maior. No dia 30 de março, na véspera do nono aniversário do golpe, e apesar da presença de tropas de choque, a missa foi realizada.
Uma troca de cartas particulares entre d. Paulo e o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, trouxe à tona as tensões daquele momento. ``Não se pune um crime -se existiu- com um crime ainda maior'', d. Paulo escreveu. ``A violência, parta de onde partir, é a mais fecunda semente de cujo seio os ódios se multiplicarão, e através de cuja brutalidade e estupidez se prepara a ruína das Nações. Ela é mais grave, incompreensível e imperdoável se parte, exatamente, dos que têm como altíssima missão a salvaguarda da paz, a proteção das famílias, a tolerância e a compreensão em relação aos que a idade ainda não conferiu maturidade e que, muitas vezes, confundem os sadios ideais com os ímpetos da generosidade de seus verdes anos.''
A resposta de Passarinho foi contundente. Ele alegou que o episódio não dizia respeito ao Ministério da Educação (embora documentos do Deops mostrem que seu serviço de informações mantinha sob observação a situação na USP). ``Alexandre era estudante terrorista... Não foi atingido enquanto estudante, mas enquanto terrorista'', escreveu Passarinho, que criticou a campanha de direitos humanos movida pela igreja por defender os guerrilheiros, mas não as vítimas da esquerda. Desconhecendo o papel moderador exercido por d. Paulo, Passarinho também criticou a missa: ``Essa missa, senhor cardeal, poderia ter provocado um rio de sangue, agora sim, de inocentes e de piedosos!'' (Passarinho não menciona o incidente em suas memórias recém-lançadas).
A missa foi a primeira grande manifestação política de estudantes desde 1969. Um folheto estudantil dizia que ela mostrou a ``força da mobilização e união, que deixa a repressão da mãos atadas para uma repressão em massa''. A reação do governo foi forte. Na busca pelos organizadores, dezenas de pessoas foram presas. O episódio repercutiu em todo o Estado de São Paulo, mantendo as unidades de inteligência em alerta durante meses. Numa sequência pouco comum, o escritório de relações-públicas de Médici recebeu um relatório sobre o caso. Segundo outro, o regime passou a ter um ``problema Alexandre Vannucchi Leme''. Assim, Leme foi uma ameaça maior em morte do que em vida.
Quando nem os protestos públicos nem os esforços legais da família conseguiram resolver o caso, a igreja levou o assunto até a ultra-sigilosa Comissão Bipartite, na qual bispos e militares se reuniam na tentativa de preservar a harmonia tradicional entre igreja e Estado. Porém, os militares recusaram as evidências dos bispos que provaram a tortura a Leme. Segundo a avaliação dos militares, os bispos persistiram porque o episódio Leme era ``um caso polêmico que lhes dá determinados trunfos".
Durante toda a década de 70, Leme tornou-se um símbolo de resistência ao regime, e seu nome foi registrado com frequência pelo Deops. Porém, foi só em 1983 que a família foi autorizada a transferir os restos mortais de seu filho para Sorocaba. Em 1985, a arquidiocese de São Paulo publicou os depoimentos das testemunhas da morte de Leme no livro ``Brasil: Nunca Mais''. Em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou uma lei garantindo o pagamento de indenização às famílias das vítimas da repressão. A família Leme foi incluída entre as beneficiadas (alguns opositores observaram que as famílias das vítimas mortas pela esquerda não têm direito à indenização). O incidente Leme serviu como ensaio crucial para o ato ecumênico, celebrado por d. Paulo e outros, em memória ao conhecido jornalista judeu Herzog.
Esse protesto desafiou o regime ao unir a oposição -não apenas os estudantes e padres, mas também judeus, profissionais da mídia, intelectuais e outros integrantes da elite. Na abertura do sermão, d. Paulo pronunciou as palavras que dissera na missa de Leme: ``Deus é dono da vida''. O caso Leme só não exerceu impacto ainda maior porque o regime impôs uma grande mentira sobre sua morte. À medida que a era autoritária se desvanece, o surgimento de outras fontes vai suscitar outras reinterpretações. Uma medida importante do compromisso do Brasil com a democracia será a de saber até que ponto os pesquisadores vão obter acesso aos arquivos militares fechados. Do mesmo modo, a recusa de membros do aparato repressivo em reconhecer erros passados é um mau exemplo para as Forças Armadas e policiais brasileiros e debilita os direitos civis e humanos.


Kenneth P. Serbin é professor de história do Brasil e da América Latina na Universidade de San Diego (EUA). Está para lançar o livro ``Justiça Social ou Subversão?'', sobre as relações entre Estado e igreja durante o governo Médici.

Tradução de Clara Allain
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã