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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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ESTUDOS DE GÊNERO SE SOFISTICAM, SAEM DA BERLINDA E PASSAM A ABORDAR AUTORES CANÔNICOS, COMO MACHADO DE ASSIS E GUIMARÃES ROSA

Universidade GLS

por Mário César Lugarinho

Os estudos literários na universidade brasileira, notadamente na década de 1990, vêm tendo o seu perfil modificado. Da investigação dos elementos internos da obra literária, tradicionalmente submetida ao paradigma da nacionalidade, a crítica universitária passou a considerar a obra em razão das relações de classe social, etnia e gênero que encena tanto no seu interior quanto no nicho que ocupa no panorama cultural. O fenômeno em foco associa-se a políticas construídas à margem do Estado por grupos socialmente marginalizados, que, por conseguinte, reivindicam visibilidade social, inclusive no conjunto literário. Uma crítica forte e organizada emergiu, mantendo, de forma inédita e solidária, intensas redes de relações com a sociedade civil. No caso, não importam a origem e a condição do crítico, mas a solidariedade potencial que seu discurso engendra junto aos grupos com que estabelece contato. Os estudos sobre mulheres e sobre negros geraram inúmeras análises que vieram a problematizar o cânone nacional e determinaram revisões curriculares, especialmente nos cursos de letras. Não é diferente com os estudos sobre gays e lésbicas. O desenvolvimento dos estudos gays e lésbicos, no Brasil, é fato recente. Deu-se através da interação de pesquisadores de diversas regiões que aspiravam, sobretudo, ao fim do isolamento acadêmico. Sem dúvida, apesar de suas atividades colocarem em funcionamento, em muitos casos, o circuito da homofobia nos círculos universitários, uma crescente produção investigativa vem tomando vulto.

Rede interdisciplinar
Dessa maneira, a homossexualidade rompeu o cerco da patologia e do fenômeno social para se constituir como centro gerador de saber. Nesse processo, migrou da sua condição de mero tema para se constituir como campo investigativo que evidencia não apenas a diferença do objeto a ser analisado, mas, sobretudo, o ponto de vista do crítico que passa a perceber as relações sociais e culturais para além do par opositivo heterossexualidade/homossexualidade. As relações de gênero são aprofundadas, a fim de se perceber as contradições que a cultura perpetua diante da presença de estranhos não previstos pela sociedade tradicional. Não é demais que se apóie em Roland Barthes por ter afirmado que a literatura é o lugar de encenação de saberes por excelência; portanto, nesse tipo de análise não importam as orientações sexuais dos autores, importa sim o quanto a obra literária representa de uma cultura que por tradição exclui a homossexualidade, nela convergindo todo um saber a seu respeito. Com isso, a investigação passa a exigir uma ampla rede interdisciplinar que pode abranger desde o discurso médico e sanitário até a filosofia, a sociologia ou, até, a teologia. Para tanto se constituiu o conceito de homocultura, a extensa rede de relações sociais e culturais que constrói a identidade homossexual. Em 2001, na Universidade Federal Fluminense, foi fundada a Associação Brasileira de Estudos da Homocultura, que segue já para o seu segundo congresso, que será em 2004. A ABEH reúne mais de 40 pesquisadores universitários brasileiros e estrangeiros das mais diversas áreas do conhecimento, voltados para o debate aberto pelos estudos gays e lésbicos no Brasil. A crítica literária, baseada na homocultura, encontra os exemplos inaugurais de "O Barão de Lavos", de Abel Botelho (Portugal, 1891) e de "O Bom Crioulo", de Adolfo Caminha (Brasil, 1895). Ao investirem no desnudamento de relações de gênero contraditórias, baseadas em triângulos amorosos não-convencionais, essas obras revelam mais do que aquilo que o naturalismo de seus autores almejava e que os compêndios de história literária sustentam: a análise dos vícios de uma sociedade decadente. Esses romances formalizam a emergência de uma identidade social e cultural baseada no desejo homossexual à medida que os protagonistas se estruturam a partir dessa diferença. Tanto o barão português quanto o marinheiro brasileiro podem se tornar fontes geradoras de discussão da história de suas nações, por exemplo, numa ênfase que permeia a microistória e deságua no quadro da formação das identidades nacionais de seus países.

Perspectiva nova
Sendo, sobretudo, a formulação de um ponto de vista crítico, no âmbito literário, os estudos gays e lésbicos podem constituir uma extensa lista que capta obras tanto de autores canônicos, como Guimarães Rosa, Lucio Cardoso, Clarice Lispector ou, até, Machado de Assis, quanto de autores mais recentes, como Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu, Waldo Mota ou Luís Capucho.
O pequeno livro do fluminense Luís Capucho ("Cinema Orly", ed. Interlúdio, 1999) é o exemplo mais bem acabado daquilo que os estudos gays e lésbicos podem eleger como uma obra literária gay. A narrativa de Capucho expõe um cotidiano de um narrador homossexual, de origem suburbana, frequentador assíduo de uma sala de cinema carioca tradicionalmente conhecida como lugar de encontros de homens em busca de sexo anônimo.
O que importa no pequeno livro é que Capucho consegue construir uma narrativa que convoca um leitor que com ela se identifica, isto é, um leitor que, de alguma forma, compartilhe das mesmas experiências do narrador. Abre-se uma perspectiva nova para a análise da narrativa, que vai bem além da classificação apressada, que já recebeu, de obra erótico-pornográfica. A narrativa não se aprofunda em discussões intelectualizadas. O cotidiano é aliado às reflexões de um narrador, cujo único sentido é, sem culpas ou interditos evidentes, o imperativo do gozo.
O leitor é introduzido no rol de ambiguidades que as práticas do sexo anônimo entre homens produz: o gozo imediato aliado à encenação do afeto; o anonimato buscado pelos praticantes do sexo no cinema em contradição com as relações de disputa e de solidariedade pelo gozo; o espaço de clausura e segurança do cinema em oposição aos perigos da rua; as referências ao que seja público e privado. Nesse vão de angústias, transitam narrador e leitor sem perceberem que sua interação constrói uma cumplicidade que poucas narrativas já construíram. O narrador de Capucho não discute a sua identificação social e sexual, mas a põe à mostra ao leitor ao qual se dirige. Daí em diante, uma diversificada leitura pode se constituir desde a perspectiva antropológica que a narrativa abre até uma mais aprofundada discussão sobre saúde pública nos tempos da Aids.
Dessa forma, a constituição de uma literatura gay e a crítica que dela advém não são apenas a busca da legitimação do lugar do homossexual na cultura, mas uma crítica da cultura, não se restringindo unicamente ao gueto onde floresceu.


Mário César Lugarinho é professor adjunto de literatura na Universidade Federal Fluminense (RJ) e autor de vários ensaios sobre a relação entre literatura e estudos gays e lésbicos.


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