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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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Um clássico das ciências sociais, "Cultura e Razão Prática", do americano Marshall Sahlins, é relançado no Brasil

SÍMBOLOS E SUSPEITAS

Caio Caramico Soares
da Redação

O mármore é um material "rebelde", que não permite ao escultor fazer o que quiser. Mas cabe ao artista decidir se a estátua será a de um cavaleiro montado contemplando suas vitórias ou de Moisés contemplando os pecados de seu povo.
É na simplicidade dessa metáfora que o antropólogo americano Marshall Sahlins, já ao final de "Cultura e Razão Prática" (1976), resume uma sofisticada discussão sobre o que diferencia, de um lado, a cultura em relação à natureza, e, de outro, a criação simbólica em relação às imposições da esfera econômica.
O livro, ora relançado no Brasil, é um clássico das ciências sociais - assim como "Ilhas de História", do mesmo autor. Fugindo à modéstia das pesquisas etnológicas isoladas, restritas a "tribos" e a conclusões pontuais, este livro relê, combate ou articula uma vasta gama de escolas teóricas, de Boas a Lévi-Strauss. Também é pioneiro em trazer a antropologia, habitualmente focada em povos "primitivos", para o centro do debate sobre a sociedade capitalista.
O grande espectro que paira sobre a obra é a figura de Karl Marx. É com suas idéias que Sahlins polemiza quase todo o tempo, explicitamente ou não. É preciso ressalvar que o professor da Universidade de Chicago mostra ter por Marx grande admiração.
Para ele, o autor de "O Capital" era dotado de grande argúcia antropológica avant la lettre, manifesta em teses como a de que "a tradição dos mortos permanece como um pesadelo na cabeça dos vivos" -enunciado que intuiria o peso coercitivo das "estruturas" na definição da história. Marx também teria sido altamente consciente acerca do estilo de reprodução estereotipada -ligada ao "eterno retorno" mítico- característico das sociedades "primitivas" e dos riscos que elas correm quando expostas à "sede do dinheiro".
Para além desses insights pessoais, porém, o materialismo histórico legado por Marx padeceria de um problema fundamental: o de ser apenas um espelho da representação que a sociedade burguesa faz de si mesma. Como a dialética de Hegel, o utilitarismo burguês teria sido revirado pela crítica marxista, mas "ratificado" em seus pressupostos básicos, como o de que, na sociedade capitalista, o dinheiro a tudo governa -generalidade, aliás, que reaparece em novas vestes, hoje em dia, no argumento comum de que o interesse por petróleo é "a verdadeira razão" da guerra no Iraque. Essa "constatação" equivaleria, para usar um exemplo do livro, ao simplismo dos que vêem a publicidade como "nada mais do que" a fachada alegórica que esconde um único "segredo": o interesse de vender.
O que Sahlins tenta mostrar é que a economia é em si mesma uma atividade simbólica, não uma infra-estrutura "real", independente e determinante das outras esferas sociais. Ao falar em "símbolos", logo vem à mente o risco de uma visão idealizada -senão espiritualizada-, que apaga as contradições, as lutas de poder, os interesses materiais. Não é o caso de Sahlins. Ele não nega a força e a extensão que os ditames da economia tomam na definição dos rumos da política, dos costumes e do cotidiano na sociedade moderna. Mas é justamente por ser um "meio de vida total" que a produção e o consumo capitalista são galgados à condição de operador simbólico central, equivalente, diz ele, ao que as relações de parentesco representavam para as sociedades tribais.
A procura de lucro, pelo produtor, e aquisição dos bens mais úteis, pelo consumidor, aparecem, assim, não como a realização da "natureza humana" (versão liberal) ou distorção imposta pelos determinismos do sistema (versão marxista). Trata-se mais -e nisso Sahlins pode alimentar os atuais estudos sobre "estilos de vida"- de uma maneira de materializar diferenças. Não por acaso os dias "úteis" e de ócio, roupas para estar em casa ou fora, a "adolescência" e a idade "adulta" são ritos, ritmos do tempo e divisões do espaço tão marcados entre nós pela dimensão do trabalho.
Sahlins diz que a importância do símbolo na vida cotidiana, mesmo em sociedades "racionalizadas" como a nossa, vem à tona graças não só a especulações abstratas, mas também pela observação das práticas reais. E demonstra isso nas partes mais divertidas do livro, em que comenta as regras de vestuário e de alimentação nos Estados Unidos.
Ele cita, por exemplo, a frase da Rainha de Copas de Lewis Carroll - "não é fino mandar cortar alguém a quem você foi apresentado"- para ilustrar a regra de que os bichos mais "humanizados", caso, naquele país, do cachorro e do cavalo, são também os menos "aptos" ao consumo, e não por razões nutricionais ou econômicas.
Deixando claro que a via simbólica não é, para ele, "pacificação" escapista, e sim uma possível arma a mais de luta contra as ilusões do economicismo, Sahlins conclui como começou: voltando a Marx, de quem extrai uma formulação exemplar do "totemismo burguês": fazendo as pessoas "se relacionarem como coisas", nossa sociedade, segundo Sahlins, não quebra, mas inverte, o sortilégio primitivo que levava as coisas a se comportar como pessoas.
Para encerrar com outra "oposição binária" ao gosto dos estruturalistas: se os "mestres da suspeita" Freud e Marx desmascararam o interesse por detrás do símbolo, a força crítica do programa formulado em "Cultura e Razão Prática" parece estar no contrário: desvendar o símbolo por detrás do interesse.


Cultura e Razão Prática
232 págs., R$ 26,00 de Marshall Sahlins. Trad. de Sérgio Tadeu de Niemayer Lamarão. Ed. Jorge Zahar (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2240-0226).


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