São Paulo, domingo, 30 de março de 2008

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Cabeças em risco

Coleção sobre pensadores brasileiros atuais tem início com obras sobre Boris Fausto, Evaldo Cabral e Silviano Santiago

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Parece existir uma onda revisionista da crítica intelectual brasileira recente, justamente quando, para muitos, a base de suas especificidades (a cultura pré-1964) está morta. É um sinal de alento, depois que um dos próceres intelectuais mais marcantes da geração, Fernando Henrique Cardoso, na qualidade de presidente da República, teria sentenciado o famoso "esqueçam o que escrevi".
Cada vez mais estão sendo publicados livros sobre quem faz e pensa em livros. E o melhor: sobre autores vivos.
Daí a importância da série inaugurada pelas editoras UFMG e Perseu Abramo, "Coleção Intelectuais do Brasil", que começa com três volumes (que trazem sempre ao final uma longa entrevista com os intelectuais analisados) justamente dedicados a Evaldo Cabral de Mello, Boris Fausto [historiadores] e Silviano Santiago [crítico].
Juntem-se a esses os lançamentos recentes de livros sobre a obra de Fernando Novais ("Aproximações", Cosac Naify) e Roberto Schwarz ("Um Crítico na Periferia do Capitalismo", Companhia das Letras) e teremos muito que pensar. Sobretudo porque -muitos repetem isso como um mantra paralisante- escrever sobre os vivos é perigoso.
Dos três livros, aquele organizado por Lilia Schwarcz, sobre Evaldo Cabral de Mello, me parece o mais robusto intelectualmente. O texto de Stuart Schwartz, que abre o volume (após uma precisa introdução da organizadora), é um ótimo panorama da obra do historiador pernambucano, vista "de fora" (por um norte-americano) e "de dentro" (pois apresenta os aspectos principais da obra analisada).
O de Luiz Felipe de Alencastro, talvez o mais aprofundado de todas as coletâneas resenhadas aqui, traz o diálogo de um discípulo peculiar, capaz de analisar com rigor e graça o estilo narrativo e as idéias do mestre, sem se furtar a fazer reparos críticos e a propor questões.
Também os outros textos, assinados por Júnia Ferreira Furtado, Pedro Puntoni e pela organizadora, tratam de um historiador inclassificável, moderno e conservador ao mesmo tempo, diante do qual reinava até agora um quase-silêncio respeitoso, motivado talvez pela dificuldade em abordar o "enigma Evaldo" -que, como diz Puntoni, nos ensina não apenas a manipular a história, mas a habitá-la.

Disposição
Ângela de Castro Gomes, organizadora do volume dedicado a Boris Fausto, explicita logo na introdução o fascínio e a dificuldade da proposta da coleção. Ela nota, com perspicácia auto-reflexiva, que a "proposta é arriscada", pois "tratar da obra de intelectuais vivíssimos, sob encomenda, não resvalando em escrita apenas elogiosa e meio vazia, é coisa que exige disposição, quer de quem escreve, quer do próprio sujeito sobre quem se escreve".
Os textos do volume, assinados por Sílvia Regina F. Petersen, Sérgio Adorno e Keila Grinberg, dão conta da tarefa. Eu destacaria o texto de Adorno, que explica um dos aspectos mais originais da obra de Fausto, o trabalho pioneiro sobre a criminalidade em São Paulo.
Além disso, a entrevista que fecha o volume é muito simpática e agradável. Os textos do livro sobre Silviano Santiago compõem um divertido compêndio ou dicionário de bolso de toda a parafernália sintática pós-moderna na sua vertente lítero-filosófica (que se tornou a linguagem do poder contemporâneo nas universidades norte-americanas): uma festa de "hibridismos", "homographesis", "imbricação", "indecidível", "dicotomias ordenadoras", "anestética", "transmigração" etc.
Parte disso pode ser do gosto e da vertente do homenageado, mas falta aos textos dos comentadores (com a exceção do esclarecedor ensaio de Wander Melo Miranda sobre a obra ficcional de Santiago) a graça do jeito de prosa "mineira", da simpática desconversa, que acompanha seus textos de toda ordem, desde os ensaios mais profundos (não raramente também pouco acabados e dispersivos) à mais pretensiosa narrativa.
O texto de apresentação, da organizadora Eneida Leal Cunha, contrasta violentamente com os outros dois. Enquanto estes são diretos, dialogam com o leitor, se justificam e se autoproblematizam, o dela é uma hagiografia bastante obscura, dirigida a devotos. Curiosamente, o ensaio da organizadora fala muito em diálogo com o mundo e suas infinitas e "híbridas" "imbricações", em uma linguagem pedante e absolutamente ortodoxa.
O ensaio da crítica argentina Florencia Garramuño procura mostrar que Silviano seria o guru do pós-modernismo na América Latina -ou, na linguagem evasiva da organizadora, o responsável por uma "ação tutorial". No geral, são, a meu ver, livros excelentes, de uma coleção que promete marcar época no estudo da intelectualidade brasileira, suas filiações e conseqüências.


FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na USP.

LEITURAS CRÍTICAS SOBRE EVALDO CABRAL DE MELLO
Organização:
Lilia Moritz Schwarcz
Editora: Fundação Perseu Abramo/ UFMG (0/xx/31/ 3409-4657)
Quanto: R$ 36 (208 págs.)

LEITURAS CRÍTICAS SOBRE BORIS FAUSTO
Organização:
Ângela de Castro Gomes
Editora: Fundação Perseu Abramo/ UFMG
Quanto: R$ 38 (236 págs.)

LEITURAS CRÍTICAS SOBRE SILVIANO SANTIAGO
Organização:
Eneida Leal Cunha
Editora: Fundação Perseu Abramo/ UFMG
Quanto: R$ 38 (240 págs.)


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