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Meu amigo Foucault
O renomado historiador da Roma Antiga Paul Veyne traça um retrato íntimo e surpreendente do filósofo francês, morto em 1984
JEAN-BAPTISTE MARONGIU
Sem dúvida aqueles
dois se amaram. Mas
nada os predispunha
a isso. Nem a origem
social, nem as inclinações sexuais, nem a personalidade. Sua abertura de espírito
de provincianos sedentos do
vasto mundo e de reconhecimento mundano teve grande
influência.
Filho de cirurgião, Michel
Foucault pertencia à boa sociedade de Poitiers. A mãe de Paul
Veyne era uma pobre comerciante em Aix-en-Provence.
Michel estudou com os jesuítas, Paul é um puro produto do
mérito republicano.
O segundo dedica ao primeiro, 24 anos após sua morte devido à Aids, "Foucault - Sa Pensée, Sa Personne" [Foucault -Seu Pensamento, Sua Pessoa,
ed. Albin Michel, 224 págs.,
16, R$ 43]: um retrato em pé,
em que as cores abstratas do
discurso foucaultiano vêm dar
mais relevo físico à singularidade moral do corpo do herói.
É grande arte. O mestre da
história romana é um fino conhecedor do baixo-relevo. Assim, ele pinta uma temporada
intelectual única, esclarecendo
os confrontos entre as grandes
teorias (marxismo, existencialismo, estruturalismo, psicanálise) por meio da vivência dos
homens que as animavam.
O estilo desse ímpar criador
de intrigas da pequena e da
grande história é veloz e voraz.
Hoje professor honorário no
Collège de France, Paul Veyne
nos recebeu em sua casa perdida no sopé do monte Ventoux,
a dois quilômetros da aldeia de
Bédoin.
O tio
O encontro entre Paul Veyne
e Michel Foucault ocorreu em
1954 em Paris, na rua d'Ulm, na
Escola Normal Superior.
"Éramos quatro: Gérard Genette, futuro semiólogo; Jean
Molino, outro futuro semiólogo, emigrado para a Suíça;
Jean-Claude Passeron, um sociólogo que considero muito
superior a Bourdieu; e eu. Tínhamos 20 anos. Ele tinha quatro a mais. Éramos estudantes,
ele, professor. Havia nos escolhido porque o admirávamos e
porque nos achava simpáticos."
"Ainda estávamos no Partido
Comunista, ele já havia saído.
Nós nos tratávamos com familiaridade, mas as relações eram
ligeiramente condescendentes
da parte dele. Era o tio. Entre
nós, o chamávamos de "Fouks",
a raposa. Ele sabia, e nós sabíamos, que era infinitamente
mais inteligente que nós e que
tínhamos muito a aprender
com ele."
Os anos 1950 eram muito rígidos em relação a normas. Em
seu meio católico provinciano,
Foucault sofreu o inferno por
causa de uma homossexualidade vivida na vergonha. Fez duas
tentativas de suicídio e absorveu todo tipo de droga que pudesse haver no armário de seu
pai, cirurgião.
Escapando da família, reviveu. Foi seu período de "louca
histérica", como ele diria mais
tarde, quando pensava ter-se
tornado "um veado corajoso,
sem problemas". Por seu lado,
Veyne tinha um gosto bastante
doentio pelo sexo oposto, que
nunca se solucionou. Foucault
ficava desolado: "Alguém como
você, aberto, instruído, preferir
as mulheres!".
Para facilitar sua entrada no
círculo dos íntimos, acabaria
por nomeá-lo "homossexual
honorário". "A Escola Normal
era um lugar muito sério, muito
conformista. Foucault, por
seus hábitos que acabou nos
deixando entrever, era diferente, alguém que não era como todo mundo. Isso foi uma experiência preciosa que nos marcou para sempre."
Em que acreditamos quando
não acreditamos em nada? O
"Foucault" de Veyne é perpassado por essa pergunta. A resposta é paradoxal: depois de
propor que Foucault era um cético, demonstra que ele acreditava fortemente em uma certa
verdade.
"Quando o conhecemos, ele
não era cético. Tinha deixado
de ser marxista e procurava sua
voz em coisas complicadas, pelo lado de Heidegger [1889-1976]. Foi no grande ano de
1953 que leu Nietzsche [1844-1900] e se atirou no empirismo
histórico, como sabemos. Nós o
conhecemos em mutação. Foucault não acreditava em nenhuma idéia geral, mas na verdade
dos fatos. Um dia, o cético grego
Pirro foi perseguido por um cão
que queria mordê-lo; Pirro
acreditou no cão! Ele não acreditava na "caninidade", na essência dos cães."
Metafísica impossível
"O que nos faz sofrer, o que
nos causa indignação, isso existe. Por outro lado, o sentido da
história, a vocação da humanidade, o universalismo... Todas
as grandes idéias não são realidades. Auschwitz é um fato, assim como a inocência de Dreyfus. Os crimes do stalinismo, o colonialismo, as alas de alta segurança nas prisões, o tratamento infligido aos loucos pelo sistema de asilos são fatos. Foucault não somente crê neles como os combate. Eu disse cético
como desafio, porque escutei
isso dele e para chocar os espíritos, inscrevendo-o na tradição filosófica que culmina em
Montaigne."
A metafísica era impossível
aos olhos de Foucault. Ele não
acreditava, ao contrário de
Kant e de um bom número de
filósofos, que o homem possui
qualquer faculdade superior
que lhe revele a verdade das
coisas.
"Não podemos dizer: o homem é isto ou aquilo. O homem
não pára de mudar, e não sabemos do que é capaz. Basta ver
os problemas atuais do Pacs
[Pacto Civil de Solidariedade,
tipo de contrato que permite a
união civil entre pessoas do
mesmo sexo], da adoção por
homossexuais... Daqui a cem
anos, as pessoas ficarão surpresas de que isso tenha nos escandalizado de tal maneira, como
hoje nos fazem rir as idéias sexuais de alguns séculos atrás."
"A história humana é o cemitério das verdades do passado,
dizia Foucault. Sua arqueologia
visava a exumar essas verdades
mortas, desatolá-las, como ele
dizia, libertá-las da lama das sucessivas interpretações, para
considerá-las somente em sua
verdade inicial -perdida para
sempre para nós. Não era nem
relativista nem desesperado.
Pensava apenas que a verdade é
deste mundo: um discurso que
dá sentido a uma época e que
não sobreviverá a ela."
Caminhos cruzados
Enquanto seus livros "As Palavras e as Coisas" [Martins
Fontes] e "História da Loucura" [Perspectiva] o projetam no
grande cenário intelectual, o
trajeto universitário de Foucault é errático.
Adido cultural em Varsóvia
[na Polônia], ele perde o Maio
de 68, e é sua passagem pela
universidade experimental de
Vincennes, em 1969, que o rotula como de extrema esquerda. Isso quase lhe custa o Collège de France no ano seguinte.
Depois da Escola de Roma e
da faculdade em Aix-en-Provence, Paul Veyne o reencontra
no Collège em 1975. A reunião
com Foucault, 20 anos depois,
é calorosa: "Ele foi acolhedor,
muito amistoso. Mas, se tivéssemos a infelicidade de pensar
mais alto que a pele do crânio
(em francês vulgar: de peidar
mais alto que o cu), suas réplicas eram flechas que se plantavam na pele do adversário, tão
bem escolhidas que o sujeito
sofreria até o fim de seus dias".
"Em meus primeiros anos de
curso no Collège de France,
morei no estúdio anexo a seu
apartamento, na rua de Vaugirard. Ele me hospedou e me alimentou gratuitamente. Impossível contribuir com o que quer
que fosse. Generoso, ele era estranhamente avaro com os trocados. É até freudiano: sua avareza só se manifestava com o
dinheiro em moedas."
O Foucault pintado por Veyne é um guerreiro, um samurai
temerário e astucioso, usando à
maravilha o sabre e o punhal.
No combate intelectual, o ardente indisciplinado se duplica
em estrategista consumado.
Ele não acreditava na revolução, mas estaria sempre do lado
da rebelião. Trabalhava muito e
não vivia em estado permanente de indignação ou de febre
militante.
"Foucault tinha um apreço
pessoal pelos revoltados e malditos, mas não tinha doutrina
política. Como em sua juventude ele havia sido humilhado e
acreditara em todas as proibições de seu mundo, sua reação
foi violenta, e estava decidido a
não mais aceitar o que lhe fosse
inaceitável".
"Tinha uma reserva, uma coragem física excepcionais que
demonstrou diversas vezes
diante dos CRS [guarda republicana francesa, antimotins],
da Guarda Civil espanhola, da
polícia especial em Varsóvia... e
no momento de sua morte. Digo isso com prazer ainda maior
porque eu não tenho a menor
coragem. Um dia eu lhe disse:
como eu gostaria de ter coragem física! Ele me respondeu:
"Ah, sim! Mas só existe coragem
física, a coragem é sempre um
corpo corajoso"."
Este texto foi publicado na "Les Inrockuptibles".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
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