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+ corpo Arte
A obra de Lygia Clark é uma obstinada investigação para convocar na
subjetividade do espectador a possibilidade de ser contaminada
pelo objeto de arte
O corpo vibrátil de Lygia Clark
por Suely Rolnik
Uma idéia toma corpo passo a passo no conjunto da
obra ímpar de Lygia Clark. Tal idéia situa-se no horizonte de uma das mais insistentes questões colocadas
pela arte moderna -religar arte e vida- como uma
resposta original e, mais do que isso, resposta que tem o
poder de levar aquele projeto ao limite.
Muita imaginação dedicou-se à invenção de estratégias para realizar a utopia de reconectar arte e vida ao
longo do século. A situação que mobiliza essa utopia é a
crise de uma certa cartografia da existência humana que
começa a se fazer sentir no final do século 19 e se intensifica cada vez mais ao longo do século 20 -a cartografia
do sujeito da razão constituído no Iluminismo.
Para situar a problemática que Lygia Clark elabora em
sua obra como encaminhamento insólito às questões
de seu tempo, o aspecto desta cartografia em crise que
interessa assinalar é o exílio da prática artística num domínio especializado, o que implicou que um certo plano dos processos de subjetivação ficasse confinado à experiência do artista. Este plano é o "corpo vibrátil", no
qual o contato com o outro, humano e não-humano,
mobiliza afetos, tão cambiantes quanto a multiplicidade variável que constitui a alteridade.
A constelação de tais afetos forma uma realidade sensível, corpórea, que, embora invisível, não é menos real
do que a realidade visível e seus mapas. É o mundo
compondo-se e recompondo-se singularmente na subjetividade de cada um. Muda o mundo, muda a consistência sensível da subjetividade, indissociavelmente:
entre eu e o outro, desencadeiam-se devires não paralelos de cada um, num processo sem fim. É a partir da escuta do corpo vibrátil e suas mutações, que o artista, desassossegado pelo conflito entre a nova realidade sensível e as referências antigas de que dispõe para orientar-se na existência, sente-se compelido a criar uma cartografia para o mundo que se anuncia, a qual ganha corpo
em sua obra e dele se autonomiza.
O avesso desse processo de subjetivação do artista é a
anestesia do resto da vida social: o homem comum em
todos os homens perde as rédeas dessa atividade de
criação de valor e sentido para as mudanças que se operam em sua existência e passa a se orientar em razão de
cartografias gerais, estabelecidas a priori, passivamente
consumidas. Constitui-se a figura do "indivíduo", entidade fechada em si mesma, que extrai o sentimento de
si, de uma imagem vivida como essência, que se mantém idêntica a si mesma, imune à alteridade e aos seus
efeitos de turbulência.
É o princípio identitário regendo a construção da subjetividade, sob o regime exclusivo da representação. Esteriliza-se o poder transformador do estranhamento
gerado pelos colapsos das cartografias vigentes e das figuras da subjetividade que as acompanham.
A obra de Lygia Clark será uma obstinada investigação para convocar na subjetividade do espectador a potência de ser contaminado pelo objeto de arte, não só
descobrindo a vida que o agita internamente e em sua
relação com o espaço, mas fundamentalmente a vida
que se manifesta como força diferenciadora de sua própria subjetividade, no contato com a obra. Para a artista,
sem a reativação da potência poética na subjetividade
do espectador, o projeto moderno de religar arte e vida
não se completa.
Embora essa investigação permeie o conjunto da obra
de Lygia Clark, a partir de "Caminhando" (1963) ela ganha uma tal radicalidade, que permite marcar o início
de uma segunda etapa da trajetória da artista, mais extensa, mais intensa e menos conhecida, que ainda está
por ser decifrada. Um instigante percurso iniciático que
se desenrolará em sete etapas, ao fim das quais uma nova paisagem terá se descortinado.
A etapa inaugural se faz por meio de uma só proposta:
o "Caminhando", tira torcida de papel, como uma fita
de Moebius. A obra consiste em oferecer ao espectador
a tira e uma tesoura, com a instrução de escolher um
ponto qualquer para iniciar o corte, evitando incidir sobre o mesmo ponto.
Lygia transfere aqui para o espectador o ato de cortar
o papel em seus estudos preliminares para a criação dos
"Bichos". A participação do espectador na obra que se
iniciara com os "Bichos" atinge aqui a própria realização. Já agora, a participação do espectador na obra atinge a própria realização. É o ato de criar que se torna
obra, "work in progress", como a vida. É no ato que se
reativará a poética. A figura do espectador começa a se
desterritorializar, ao mesmo tempo que o objeto de arte, que já não é redutível à sua visibilidade, nem passível
de existir inerte, isolado, de quem realiza a obra.
Ainda que seja apenas o início de um processo, Lygia
pressente a magnitude da transfiguração do cenário da
arte que se anuncia em sua proposta e entra em uma crise, talvez a mais violenta de todas, que a atormentará
por dois anos. Durante ela, a artista sentirá necessidade
de voltar à etapa anterior de sua obra para explorá-la à
luz da nova descoberta.
A segunda etapa (1963-64) será portanto a do neoconcretismo revisitado, contaminado pela presença perturbadora de "Caminhando", numa retomada dos "Bichos". As obras desse período serão a última tentativa
de Lygia de criar "objetos de arte", que, apesar de agora
se completarem na manipulação pelo espectador, ainda
podem se prestar a uma contemplação passiva. Daí para a frente, seus objetos não terão mais existência alguma possível fora da experiência daqueles que os vivem.
A terceira etapa (1966-69), Lygia chamará de "nostalgia
do corpo". Ela tem início com "Pedra e Ar". A obra consiste num saco plástico cheio de ar e fechado por um
elástico, colocando-se um seixo numa de suas pontas,
voltada para cima. A instrução de uso é segurar o saquinho com a palma das mãos, pressionando-o em movimentos que façam a pedra subir e descer, como os movimentos de inspiração e expiração.
Nessa etapa, a participação do espectador ganha uma
nova dimensão: a obra começa a migrar do ato para a
sensação que ela provoca em quem a toca. Mais um passo foi dado para a dissolução da figura do espectador:
esboça-se já aqui a convocação do corpo vibrátil, mas
esta ainda não é essencial nas obras do período. A atenção ainda está voltada para o objeto; é preciso ir além.
A quarta etapa (1967-69), Lygia chamará de "A Casa É
o Corpo". A obra que inaugura esse momento é a "Série
Roupa-Corpo-Roupa: O Eu e o Tu". Dois macacões de
tecido plastificado grosso, ligados no umbigo por um
tubo de borracha de pesca submarina, com um capuz
cobrindo os olhos, deverão ser vestidos por um homem
e uma mulher. O forro é confeccionado com materiais
variados, diferentes em cada macacão, de modo a proporcionar ao homem uma sensação de feminilidade e
vice-versa.
O objeto perde agora totalmente sua visibilidade, ele
passa a "vestir" o corpo e a ele irá se integrar. Com os
olhos vendados, e recoberto por aquelas estranhas texturas, torna-se impossível para o espectador situar-se a
partir de uma imagem tanto do objeto como de seu próprio corpo, independente das sensações que seus gestos
exploratórios mobilizam. Dissolve-se qualquer classificação identitária, como o gênero, por exemplo, no caso
específico dessa obra. O espectador descobre-se como
corpo vibrátil, e é a partir das sensações que ele irá situar-se no mundo, fazer seus sucessivos abrigos. O sentir-se "em casa" de uma familiaridade com o mundo
passa a fazer-se e refazer-se na própria experiência: a casa é o corpo. Aqui, é o corpo, em sua relação com os objetos, que redevém poético.
O corpo de quem veste
A desterritorialização da
figura do espectador e da obra isolada tornou-se irreversível: a atenção deslocou-se inteiramente do objeto,
para concentrar-se no corpo vibrátil de quem o veste.
No entanto, ainda aqui, temos um sujeito e um objeto.
A etapa seguinte (1968-70), Lygia chamou de "O Corpo É a Casa". Ela se inicia com a "Arquitetura Biológica:
Ovo-Mortalha" (1968): um grande plástico transparente retangular, com sacos de nylon ou juta costurados em
suas extremidades, nos quais duas pessoas enfiam os
pés ou as mãos e passam a improvisar movimentos, envolvendo-se mutuamente no plástico.
No visível, a obra é uma estrutura flexível feita dos
gestos dos participantes em suas interações, auxiliados
por materiais mínimos, "já completamente vazios de
significado e sem possibilidades de recobrar vida senão
através do suporte humano", o que já é muito. Mas a
obra vai além: no invisível ela passa a realizar-se na pura
sensação das emanações dos corpos dos parceiros de
experiência, captadas pelo corpo vibrátil de cada um. O
plástico transparente sem cor materializa a presença
imaterial da energia vital que emana dos corpos em seu
encontro, que tudo liga num só contínuo em movimento, a imanência. Aqui é a interação entre os corpos que
redevém poética.
A sexta etapa de seu percurso pós-Caminhando, ela
chamou de "Fantasmática do Corpo" ou "Corpo-Coletivo". A obra que a inicia é "Baba Antropofágica", na
qual um grupo de pessoas recebe um carretel de linha
colorida de máquina de costura, que deverá colocar na
boca. As pessoas -em média 60- sentam-se no chão
ao redor de um dos membros do grupo, que aceita deitar-se de olhos vendados, e devem ir puxando a linha,
depositando-a sobre o corpo deitado até esvaziar o carretel. Em seguida, elas enfiam suas mãos no emaranhado de linhas molhadas de saliva, que cobre todo o corpo
de quem está deitado, e vão esgarçá-lo até que a trama
se desfaça totalmente. Nesse ponto, os olhos são desvendados e o grupo se reúne para compartilhar a experiência verbalmente. Aqui, a obra se encerra.
Útero coletivo
Nesse ritual, corpos afetam outro
corpo até que suas emanações entrelaçadas formem um
molde no corpo afetado. Ainda úmido o molde será arrancado, como a placenta de um útero coletivo, de onde
nascerá um novo corpo, esculpido entre todos. Antropofagicamente incorporadas pelo corpo afetado, as
emanações autonomizam-se dos corpos de origem.
Um devir tanto de quem afetou quanto de quem foi afetado desencadeia-se no processo: torna-se impossível
manter-se indiferente ao que liga imaterialmente os
corpos e produz sua constante transformação.
Lygia descobre nesse momento que, para que a integração do corpo vibrátil se consolide numa subjetividade marcada pelo trauma dessa experiência que levou a
seu recalque, o ritual requer essa continuidade no tempo e a expressão das fantasias produzidas pelo trauma.
O passo seguinte já está delineado: em 1976, quando
Lygia volta ao Brasil, ela iniciará suas seções de "Estruturação do Self com os Objetos Relacionais", última etapa de sua obra. O ritual coletivo transforma-se aqui
num ritual solitário, no qual a iniciação do espectador
se completa, por meio do assentamento do corpo vibrátil em sua subjetividade. O trabalho com um "espectador" de cada vez constitui um espaço mais protegido
que propicia uma intimidade maior e uma viagem mais
radical. O que irá se estruturar é um modo de subjetivação, no qual o "em casa" não é mais o ego neurotizado
do sujeito moderno, mas uma estrutura viva em devir,
engendrando-se no engravidamento pelo mundo, que
Lygia chamará de "self". O objeto se revela relacional, e
não mais neutro ou indiferente, para uma subjetividade
estruturada como "self", e não mais como identidade,
individualidade fechada em si mesma. É a desterritorialização definitiva do sujeito espectador, do objeto de arte, e de sua relação deserotizada.
Lygia insiste que suas obras propõem um "rito sem
mito". Com efeito, não é um mito transferente, exterior
ao homem, o que será registrado, mas a potência de
criação permanente do sentido de si e do mundo, que
todo homem, enquanto ser vivo, possui virtualmente: é
essa potência que será reativada.
Ritual para o fim do milênio, quando surfar na desterritorialização tornou-se indispensável para constituir
um abrigo na nova paisagem em que vivemos, com suas
velozes mutações tecnológicas e sua globalização, que
expõem o corpo vibrátil a toda espécie de outro, e tudo
mistura na subjetividade de cada habitante do planeta.
Suely Rolnik é psicanalista e professora titular da Pontifícia Universidade
Católica (PUC-SP), co-autora, com Félix Guattari, de "Micropolítica - Cartografias do Desejo" (Ed. Vozes), entre outros.
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