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Poema em 33 cantos de Hans Magnus Enzensberger trata de modo rico
e exigente o desgastado tema da decadência da civilização ocidental
A sinfonia do Titanic
Marcelo Coelho
da Equipe de Articulistas
Como ensaísta, Hans Magnus Enzensberger sempre é provocativo,
quando não desesperado e bombástico.
Em "Mediocridade e Loucura" (Ed. Ática, 1995), há um texto intitulado "Crepúsculo dos Resenhistas" em que se afirma que a crítica jornalística de literatura
deixou de ter qualquer importância; para Enzensberger, "o público forma suas
opiniões de maneira independente do
blablablá das resenhas". Estas foram
substituídas, na prática, pelas orelhas de
livros, pelas listas de best sellers, pela pura propaganda.
Diante de um diagnóstico tão cabal,
seu poema em 33 cantos, "O Naufrágio
do Titanic", corre o risco -e não por razões estritamente corporativas- de ser
tratado com frieza pelos resenhistas que
se disponham a atravessá-lo.
Nada pareceria mais óbvio do que tomar o naufrágio do Titanic como pretexto poético para um discurso sobre a decadência da civilização ocidental. A confiança ironicamente desmentida nas infalibilidades da técnica (supunha-se que
o transatlântico era "inafundável"), o espetáculo dos grandes salões de luxo indo
a pique, os porões da terceira classe... um
material desse tipo, nas mãos de um poeta de esquerda, que não recua diante de
avaliações apocalípticas, tem muito para
deixar o leitor desconfiado.
Mas não há obviedades neste livro de
Enzensberger. Mais do que ser a metáfora direta de uma "crise da civilização", o
destino do navio assume, ao longo deste
poema, significações entrecruzadas,
sempre cambiantes e imprevistas.
"O Naufrágio do Titanic" começou a
ser escrito em Havana, no ano de 1969.
Enviado de Cuba para a Alemanha, o
manuscrito se perdeu na travessia. O texto que temos, de 1977, é fruto de uma
"operação de salvamento", é o resgate de
um poema que, ele próprio, naufragara.
Temos assim um duplo
naufrágio. No quarto canto, por exemplo, o poeta
procura lembrar-se de como começava a sua obra:
"Eu acreditava em cada/
palavra do que escrevia, e
escrevia "O Naufrágio do
Titanic"./ Era um bom
poema./ Recordo exatamente/ como ele começava, com um ruído./ (...) É,/ começava assim, eu acho/ assim ou coisa parecida.".
A ironia se desdobra, porque não só o
poema já é outro, mas seu autor também
está às voltas com o que, intimamente,
perdeu: o canto três fala em "perder os
cabelos, o controle,/ entendem o que eu
digo, o tempo precioso (...)/ perder, sempre só perder, inclusive/ as ilusões há
muito perdidas(...)".
Descrevendo Cuba e as intermináveis
discussões marxistas em torno da "derrocada final do capitalismo", o poema de
Enzensberger vai se tornando a cada momento mais ambíguo. Trata-se do fim do
capitalismo ou, justo ao contrário, do
fim das utopias socialistas? A ilha de Castro se assemelha, já em 1977, a um transatlântico a ponto de
afundar...
Náufragos e sobreviventes, por outro lado, não
são só os que se salvaram
do Titanic, mas os que escaparam dos campos de
concentração nazistas,
que parecem surgir nos
últimos cantos do livro.
Quem é quem, e o que é o que, são perguntas com as quais o poema joga sem
cessar; a própria identidade de quem fala, em cada verso, é problematizada.
Dito assim, "O Naufrágio do Titanic"
parece ser excessivamente complicado e
obscuro. Ao contrário, é difícil encontrar
uma poesia que seja tão rica e exigente e
ao mesmo tempo tão acessível, agradável
-e até engraçada. O que mais atrai no livro é a extraordinária imaginação de Enzensberger. A cada canto, mudam-se os
ângulos, o registro, o espírito do livro: do
noticiário publicado no dia da tragédia
ao cardápio da primeira classe, da canção popular à elegia, o autor usa, ou "salva", o que quer que possa dar concretude
e densidade de significados ao tema.
O silêncio do iceberg, a certeza inicial
de que "nada aconteceu", as mesas do
salão de jogos boiando no mar, as cenas
imaginárias de um filme sobre a catástrofe, os conflitos dentro de um bote salva-vidas, os pormenores vívidos ("as luzes no casco apagaram-se, ninguém consulta o relógio"), tudo vai se sucedendo
para compor, quase "sinfonicamente",
um livro que -se valem os juízos de um
resenhista- não hesitaríamos em qualificar de obra-prima.
O Naufrágio do Titanic
121 págs., R$ 18,00
de Hans Magnus Enzensberger.
Trad. José Marcos Macedo.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72,
CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/
11/866-0801).
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