São Paulo, domingo, 30 de abril de 2000


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Poema em 33 cantos de Hans Magnus Enzensberger trata de modo rico e exigente o desgastado tema da decadência da civilização ocidental
A sinfonia do Titanic

Marcelo Coelho
da Equipe de Articulistas

Como ensaísta, Hans Magnus Enzensberger sempre é provocativo, quando não desesperado e bombástico. Em "Mediocridade e Loucura" (Ed. Ática, 1995), há um texto intitulado "Crepúsculo dos Resenhistas" em que se afirma que a crítica jornalística de literatura deixou de ter qualquer importância; para Enzensberger, "o público forma suas opiniões de maneira independente do blablablá das resenhas". Estas foram substituídas, na prática, pelas orelhas de livros, pelas listas de best sellers, pela pura propaganda.
Diante de um diagnóstico tão cabal, seu poema em 33 cantos, "O Naufrágio do Titanic", corre o risco -e não por razões estritamente corporativas- de ser tratado com frieza pelos resenhistas que se disponham a atravessá-lo.
Nada pareceria mais óbvio do que tomar o naufrágio do Titanic como pretexto poético para um discurso sobre a decadência da civilização ocidental. A confiança ironicamente desmentida nas infalibilidades da técnica (supunha-se que o transatlântico era "inafundável"), o espetáculo dos grandes salões de luxo indo a pique, os porões da terceira classe... um material desse tipo, nas mãos de um poeta de esquerda, que não recua diante de avaliações apocalípticas, tem muito para deixar o leitor desconfiado.
Mas não há obviedades neste livro de Enzensberger. Mais do que ser a metáfora direta de uma "crise da civilização", o destino do navio assume, ao longo deste poema, significações entrecruzadas, sempre cambiantes e imprevistas.
"O Naufrágio do Titanic" começou a ser escrito em Havana, no ano de 1969. Enviado de Cuba para a Alemanha, o manuscrito se perdeu na travessia. O texto que temos, de 1977, é fruto de uma "operação de salvamento", é o resgate de um poema que, ele próprio, naufragara.
Temos assim um duplo naufrágio. No quarto canto, por exemplo, o poeta procura lembrar-se de como começava a sua obra: "Eu acreditava em cada/ palavra do que escrevia, e escrevia "O Naufrágio do Titanic"./ Era um bom poema./ Recordo exatamente/ como ele começava, com um ruído./ (...) É,/ começava assim, eu acho/ assim ou coisa parecida.".
A ironia se desdobra, porque não só o poema já é outro, mas seu autor também está às voltas com o que, intimamente, perdeu: o canto três fala em "perder os cabelos, o controle,/ entendem o que eu digo, o tempo precioso (...)/ perder, sempre só perder, inclusive/ as ilusões há muito perdidas(...)".
Descrevendo Cuba e as intermináveis discussões marxistas em torno da "derrocada final do capitalismo", o poema de Enzensberger vai se tornando a cada momento mais ambíguo. Trata-se do fim do capitalismo ou, justo ao contrário, do fim das utopias socialistas? A ilha de Castro se assemelha, já em 1977, a um transatlântico a ponto de afundar...
Náufragos e sobreviventes, por outro lado, não são só os que se salvaram do Titanic, mas os que escaparam dos campos de concentração nazistas, que parecem surgir nos últimos cantos do livro. Quem é quem, e o que é o que, são perguntas com as quais o poema joga sem cessar; a própria identidade de quem fala, em cada verso, é problematizada.
Dito assim, "O Naufrágio do Titanic" parece ser excessivamente complicado e obscuro. Ao contrário, é difícil encontrar uma poesia que seja tão rica e exigente e ao mesmo tempo tão acessível, agradável -e até engraçada. O que mais atrai no livro é a extraordinária imaginação de Enzensberger. A cada canto, mudam-se os ângulos, o registro, o espírito do livro: do noticiário publicado no dia da tragédia ao cardápio da primeira classe, da canção popular à elegia, o autor usa, ou "salva", o que quer que possa dar concretude e densidade de significados ao tema.
O silêncio do iceberg, a certeza inicial de que "nada aconteceu", as mesas do salão de jogos boiando no mar, as cenas imaginárias de um filme sobre a catástrofe, os conflitos dentro de um bote salva-vidas, os pormenores vívidos ("as luzes no casco apagaram-se, ninguém consulta o relógio"), tudo vai se sucedendo para compor, quase "sinfonicamente", um livro que -se valem os juízos de um resenhista- não hesitaríamos em qualificar de obra-prima.



O Naufrágio do Titanic
121 págs., R$ 18,00 de Hans Magnus Enzensberger. Trad. José Marcos Macedo. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/866-0801).




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