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Em "O Jogo da Amarelinha", agora reeditado, o argentino dá ao leitor a oportunidade de criar seu próprio modo de percorrer a obra
A escrita corrosiva de Cortázar
Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha
Romance notável de um contista consumado, "O Jogo da Amarelinha" ("Rayuela" no original) chamava a atenção à época do seu surgimento (meados dos
anos 60) pela novidade da sintaxe narrativa, bem expressa na hipótese de título alternativo com que trabalhou seu autor, "Mandala", jogo de armar e metáfora
adequada da intrincada riqueza de sua complexa mobilidade estrutural.
Esse livro labirinto avança e retrocede aos saltos, por
sobre um tabuleiro minado, lúdico, por certo, mas dividido entre passagens e impasses decisivos do ser, da arte, da história modernas, tal como apanhados na obra
enrodilhada de Julio Cortázar, mestre em, nas voltas
monótonas da realidade corriqueira, colher o que ainda
suscite assombro, por mais que encoberto e disfarçado.
Leitura fluvial
"O Jogo da Amarelinha" deixa-se
ler tanto de maneira fluvial, feito história habilmente
apresentada quase às antigas, na ordem natural dos capítulos (sem que esta se mostre, contudo, conclusiva,
mas antes circular), como também convida a um percurso irrequieto, em que um mapa de leitura em nova
sequência desvenda ao leitor outro encadeamento possível, incluindo capítulos antes autodenominados, não
sem certa ironia, "dispensáveis".
Neste segundo modo de pular a amarelinha, o curso
principal da narrativa passa a desaguar em afluentes,
que, sublinhando ecos e consequências antes discretos,
meramente insinuados, incorporam matéria vária (citações, cartas, breves episódios etc.) e reforçam o caráter ambíguo e irônico da história tal como já se apresentava à leitura convencional.
Como em toda obra de Cortázar, da qual "O Jogo da
Amarelinha" pode servir como sumo labiríntico, essa
duplicidade estrutural, abertura tensa
que não se resolve nem na franca divisão,
nem em nova unidade reconciliada, repercute nos mais diversos níveis de organização do romance.
Está no protagonista, Horacio Oliveira,
elemento de ligação entre os acontecimentos passados em Paris e as passagens
que se dão numa Argentina bloqueada, alegoricamente
reduzida a circo, hospício, e reino dos ínferos. Intelectual no desterro, Horacio busca um centro, um eixo em
torno do qual seu mundo aos pedaços, cindido entre
polaridades irreconciliáveis, se ordene em cosmos, como seus companheiros de exílio na Lutécia acolhedora,
os membros do Clube da Serpente, discutindo arte, filosofia e política, entre águas-furtadas baratas, "concièrges" e vizinhos rabugentos, contra o pano de fundo,
muito francês, da obsessão pelo jazz, pelos cineclubes,
pelo rescaldo do existencialismo.
Sua vocação para a escrita, paralisada e corroída pela
descrença na linguagem como instrumento viciado,
ineficaz para a investigação da realidade, a construção
da beleza, o apaziguamento moral, leva à busca de uma
passagem para o absoluto que se expresse para além das
palavras em arranjos ditados pela convenção, à elaboração de uma poética que postule uma arte que rasgue o
véu do hábito e encontre o que se esconde, tudo ou nada, por detrás das palavras, como dizia o jovem Beckett.
O signo da duplicidade e divisão
As diretrizes
desta poética o romance incorpora também sob o signo
da duplicidade e da divisão, assimilando-a na estrutura,
explicitando-a nas "morellianas", reflexões de uma personagem secundária (um velho escritor vítima de atropelamento presenciado por Horacio em momento de
crise). Vivida nas discussões entre o protagonista e seus
amigos, a preocupação estética ganha formulação aforismática e importância apenas nos capítulos incluídos
a posteriori, negando mais uma vez sua alegada dispensabilidade.
A mesma geografia desrealizada e alegorizante com
que o jovem Cortázar esquadrinhou Buenos Aires em
"O Exame Final" reaparece na Paris de "Rayuela", devedora do olhar descobridor e revolucionário dos surrealistas, submetido a uma redução cética e menos otimista. Se nem todo desrecalque resultou em verdadeira liberação, em realização desprogramada
do desejo, a aspiração persiste.
Ela repercute nas inúmeras implicações da imagem central ao romance, a
das perseguidas passagens, das pontes
evanescentes (herança surrealista, impregnação parisiense e idéia fixa de Cortázar), portas para além da banalidade
opaca da vida administrada, para a integridade da experiência e para o absoluto.
As pontes são a possibilidade da ascensão do inferno
da divisão do sujeito ao céu de uma unidade remota e
desejada. Surgem logo de chofre na apresentação direta
do narrador, em primeira pessoa, no episódio que abre
o romance. Cindido entre o tempo do retrospecto e a viva angústia do momento presente, confundidos intencionalmente, Horacio Oliveira erra pela pontes de Paris
na incerteza de manter um encontro marcado, ainda
que apenas pela intervenção do acaso objetivo, sem hora certa nem espaço definido para acontecer: "Encontraria a Maga?".
Harmonização do ser
A Maga é Lucía, caminho
vivo e mágico de harmonização do ser consigo próprio
e com o mundo, ela própria ponte fugidia capaz de unir
a razão ao desejo, o ideal à vida. Encontraria, mas apenas para perdê-la, e continuar a persegui-la, miragem e
memória do paraíso perdido, nos dois lados do Atlântico. Obra aberta por excelência, "O Jogo da Amarelinha"
não se encerra com o melancólico e necessário fracasso
de seu protagonista, mas se abre para novos lances de
dados que reordenem a arte e a sua contraparte combalida, a vida.
O Jogo da Amarelinha
640 págs., R$ 43,00
de Julio Cortázar. Tradução de
Fernando Castro Ferro. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171,
CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/
21/585-2047).
Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na Universidade
Estadual de Campinas e autor de "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de
Jorge de Lima" (Edusp).
Leia também:
O segundo volume da "Obra Crítica" (368 págs., R$ 38), de Julio Cortázar, que está sendo lançado pela Civilização Brasileira e traz, entre
outros, textos sobre John Keats, Rimbaud e Edgar Allan Poe.
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