São Paulo, domingo, 30 de abril de 2000


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+ cultura
Nos últimos 40 anos, os avanços tecnológicos provocaram um retrocesso nas artes e na música
Adeus ao século 20

Julio Medaglia
especial para a Folha

Oséculo 20 foi a era das invenções, a mais criativa da história da humanidade. Se uma exposição fotográfica recente nos mostrava uma São Paulo no início dos 1900 sem luz elétrica e ainda na década de 30 os românticos lampiões a gás em pleno uso no centro da cidade, torna-se difícil imaginar a velocidade das transformações ocorridas nesses poucos anos quando hoje se vê, numa reportagem televisiva, um chip de computador do tamanho de uma aspirina, com capacidade para armazenar em sua micromemória todos os filmes produzidos no século. Os valores se sucederam com incrível velocidade e não apenas na área da tecnologia, mas também na cultural. Já nos primórdios do século 20 conhecíamos mais "ismos" nas artes que em milênios anteriores. O curioso é que esse período, que ficará marcado na história como o mais revolucionário, apresenta em seus extremos características opostas. Refiro-me aos acontecimentos e às expectativas culturais e tecnológicas no momento das viradas do século 19 para o 20 e do 20 para o 21.

Aventuras científicas
O grande frenesi que caracterizava a passagem do século 19 para o 20 era mais de natureza cultural e comportamental que tecnológica. Os grandes feitos da revolução industrial, já com 150 anos, estavam acomodados, e os novos conceitos de industrialização, com sua astronômica velocidade, que iriam ocorrer no século com o uso da eletricidade e da eletrônica, não eram nem sequer vislumbrados naquele momento, mesmo com a presença de algumas descobertas sensacionais. As invenções não se caracterizavam pela frieza científica que conhecemos hoje, arquitetadas por grandes equipes anônimas, mas possuíam um tom de aventura, de criação individual semelhante à artística. Não raro, eram apresentadas ao público em forma de happenings, como foi o caso de Santos Dumont, por exemplo. Seu engenho voador não foi exibido num campo de provas próximo a um laboratório de pesquisas, mas em torno da "Torre Eifel", sob as vistas e aplausos do grande público. Paris, aliás, era o excitante epicentro cultural europeu, fonte da "art nouveau" e das grandes transformações comportamentais. Em todos os grandes centros europeus o delírio, sob mil formas de manifestações artísticas, não era menor, o que justificava a sigla de belle époque para aquele momento. Por outro lado, aqueles que acreditavam numa era tecnológica tão brilhante como a artística, que tiveram a genialidade de ousar e antever o turbilhão que se aproximava, não eram levados a sério. Ao solicitar financiamento à presidência de um grande banco para seus projetos de produção em linha, Henry Ford teve de ouvir, em tom de deboche, a seguinte frase: "O automóvel é uma novidade passageira. O cavalo está aqui para ficar". Nos mesmos Estados Unidos, país líder no século exatamente por ter compreendido e executado essa "segunda revolução industrial", os irmãos Wright, que tanto se empenharam em fazer o ser humano sair do solo, chegaram a declarar em 1910, quatro anos antes do bem-sucedido feito de Dumont em Paris, que o homem não voaria nos próximos mil anos... E um Prêmio Nobel de Física advertia, ainda na segunda década do século, que o homem nunca seria capaz de liberar o poder do átomo. Os irmãos Lumière, apesar de viverem na delirante Paris do fin-de-siècle e do sucesso alcançado com a projeção da imagem em movimento numa parede, chegaram a declarar que aquele "invento" não tinha o menor futuro. E Meliès, que fez experiências no sentido de uma linguagem dramatúrgica para o novo veículo -Lumière acreditava no máximo numa função documental para o cinema-, acabou seus dias vendendo balas numa gare de Paris...

Músicas transparentes
Permanecendo só na área musical, podemos afirmar que nunca houve uma época tão excitante e diversificada de tendências quanto a da passagem do século 19 para o 20. Satie, com suas transparentes e etéreas "Gymnopedies", havia induzido Debussy a desarmar o "pathos" romântico e a manipular a cor sonora em razão de meras impressões, "desconteudizando" a composição, rompendo assim com inúmeros códigos do linear discurso tradicional da música no Ocidente. De uma hora para outra, os timbres pareciam flutuar, a absorção musical ganhava um certo distanciamento e serenidade, bem diversos daquele subjetivismo envolvente, que transformava cada obra quase num microtestamento do autor. Schönberg, ao contrário, levava esse subjetivismo -e o trágico que previa o final de uma era- às últimas consequências. Seu romantismo exacerbado tornou-se cada vez mais neurotizante, conduzindo a linguagem musical ao expressionismo e à explosão das harmonias -estas, as bases gramaticais da música do Ocidente.
A diluição da tonalidade levou ao atonalismo e ao serialismo. Stravinsky, por seu turno, barbarizou a doce arte dos sons. Provocado por Diaghilev, o maior produtor cultural da época, criou os balés "Pássaro de Fogo", "Petrusca" e sobretudo a "Sagração da Primavera", um efetivo Massacre du Printemps, verdadeira cacofonia incendiária que aparentava o próprio apocalipse musical no momento.
Na América do Norte, Charles Ives desafinava pianos para fazer música, misturava sons de banda de província com os de uma refinada sinfônica, fazia experiências atonais, bitonais, dodecafônicas, estereofônicas, cacofônicas, polirítmicas, aleatórias, happeningianas antes de qualquer compositor europeu. No Brasil, Villa-Lobos recolhia instrumentos "bárbaros", como berimbaus, cuícas, reco-recos, apitos e roncadores, mesclando-os com o sofisticado som dos Stradivarius, para desespero das finas platéias européias. Além desses revolucionários, poderíamos lembrar dezenas de outros que tornaram aquela virada de século o mais delirante caleidoscópio sonoro da história. O curioso é que esse excesso de imaginação criadora agitou o panorama musical até o segundo pós-guerra. Os acontecimentos marcantes dos anos 50 foram a recuperação de uma técnica composicional dos anos 20/ 30, o dodecafonismo de Schönberg, que transformou-se no serialismo, as experiências da música concreta e eletrônica de Schaeffer (Paris) e Stockhausen (Colônia) e, no início dos 60, a música aleatória e o happening.

Avanços e retrocessos
A partir de então, ocorreu um fato curiosíssimo. Se, com a descoberta da inteligência artificial -o transistor-, a tecnologia disparou em velocidade ainda maior, atingindo os mais inusitados setores da atividade humana, na área artística, ou musical, houve um efetivo retrocesso. Desapareceu o espírito da vanguarda e o da aglutinação de idéias em torno de estilos ou tendências. Nos últimos 40 anos a criação musical tornou-se uma coisa inteiramente aleatória e subjetiva, na base do "cada um na sua", e não surgiram idéias com a importância das que ocorreram na primeira metade do século. Tudo passou a ser possível -até escrever com o velho dó maior... E, se a tecnologia prestou um enorme serviço à humanidade, estabelecendo uma cadeia de comunicação na qual todo o planeta está à disposição de qualquer indivíduo ao simples toque de botões, essa genial máquina, na área artística, propiciou uma chamada indústria cultural que, em sua volúpia mercantilista, passou a prestar um desserviço à sensibilidade humana. Para manter a velocidade de suas turbinas sempre a mil, perdeu-se inteiramente o pudor e, em vez de aprender a trabalhar em novas bases com o talento humano, preferiram, seus próprios "managers", criar modelitos de consumo simplórios para correr mundo afora em rápida conquista e manutenção de mercados. Se, de um lado, a agilidade das comunicações não contribuiu para que um repertório de melhor qualidade chegasse ao ouvinte comum, por outro a violência mercadológica dessas máquinas, com seus valores, passou como um trator sobre as manifestações espontâneas e localizadas, ignorando e inibindo as milhares de cores das culturas regionais. Quando se falava em "delírio" da virada de século anterior, imaginava-se uma legião de artistas em ação, intercambiando e polemizando idéias, provocando a imaginação das pessoas, partícipes daquele momento psicodélico. Hoje, quem não desviar, por iniciativa própria e esforço cavalar, seu trajeto para fora desse frenético rolo compressor de comunicação e entretenimento, procurando o alto repertório cultural em espaços específicos, vai ficar à mercê dos Rambos, Xuxas, Michael Jacksons, Ratinhos, exterminadores do futuro, Xitãozinhos e Tchans, raps-funks, punks e rocks, Ana-Maria-Bregas e outros. E, quando estiver cansado do massacre desses ídolos que lhe foram impostos, estará condenado a masturbar-se com seus fliperamas .

Pseudo-humanismos
Outra experiência surpreendente ocorrida no século 20 foi a sociológica.
Na segunda década deste século, a partir da Revolução de Outubro, iniciou-se uma inédita tentativa de se reorganizar a sociedade em outras bases, diversa da capitalista e burguesa que se conhecia. Um sexto da população da Terra havia aderido e, depois da Segunda Guerra, um terço. É evidente que o projeto era ousado demais e, com o tempo, a velha ganância humana e a lei do domínio do mais forte sobre o mais fraco, que ocorre no mundo animal, mas que o homem, que se julga dotado de "inteligência", pretendia reverter, acabaram prevalecendo. O sistema ruiu na penúltima década do século.
O insucesso dessa tentativa de ver o homem solidário e não-competitivo deveu-se sobretudo, a meu ver, à incompetência das lideranças que tomaram os poderes da Europa Oriental. Ao verem alguns problemas básicos resolvidos, se sentiram verdadeiros deuses olímpicos, esquecendo-se de modernizar, dinamizar o processo, estabelecer vínculos com o resto do mundo, democratizar a máquina etc. Ao contrário, "cacarregravam" intermináveis pseudo-humanismos, transformando-se em comandos decadentes e oportunistas. Se essas mesmas figuras tomassem o poder aqui no Ocidente, levariam o capitalismo à ruina em muito menos tempo...
Mas estes são outros 500 (anos, até uma nova experiência social dar certo...).


Julio Medaglia é maestro.


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