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Ponto de fuga
A máscara do outro
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O
desconhecido desenha sempre
uma cartografia do temor. Diante
da Europa, a cultura dos Estados
Unidos mantém constante relação de amor e medo. Walt Whitman celebrou a "athletic democracy" norte-americana. A palavra "atlético" supõe energias
jovens e força do corpo. Nela ecoa também
inocência e pureza diante do mundo.
É curioso constatar quantas vezes, na literatura e no cinema, americanos confiantes,
quando expostos à sofisticação cultural européia, descobrem também um mundo
torvo, doentio, perverso, impiedoso e tornam-se pobres vítimas indefesas.
Do "The American", (Penguin), escrito
por Henry James e publicado pela primeira
vez em 1877, a Diane Johnson com seu "Le
divorce" (1996, ed. Plume); de Edith Wharton (1862-1937) a Patricia Cornwell, com a
nefanda e deliciosa concocção de "Alerta
Negro" (Companhia das Letras), aquela situação se repete.
O filme "O Albergue", de Eli Roth, renova
esse tema. Os dois protagonistas, jovens, na
Europa, assinalam comportamentos específicos e proclamam sua nacionalidade; "Ei,
vocês não podem fazer isso, eu sou cidadão
americano!". Americanismo espalhafatoso
de um lado, antiamericanismo insidioso de
outro. Os garotos não parecem muito inocentes nem puros, já que encaram o tour
europeu como uma exploração de sexualidade e de drogas, num ambiente licencioso
ao qual não estão habituados.
Mas fica logo claro que são desprevenidos, incautos, iscas ingênuas para uma armadilha abominável. A Europa é uma teia
de aranha, com fios tecidos de Paris a Barcelona, Amsterdã ou Bratislava.
Hemácia
Na Eslováquia, criancinhas de seis ou sete
anos andam em bando, mais assustadores
do que em "A Cidade dos Amaldiçoados"
("Village of the Damned", filmado em 1960
por Wolf Rilla e refilmado em 1995 por
John Carpenter). São capazes de matar por
chiclete de bola. Na Eslováquia, as garotas
são todas lindas, todas querem transar com
o primeiro ianque surgido. Na Eslováquia,
quem tem dinheiro pode satisfazer suas
pulsões mais cruéis, mais abjetas, torturando seres humanos até a morte.
Há, em "O Albergue", uma deliqüescência dos prazeres fatigados, à maneira do
conde Zaroff (do filme de 1932 "Zaroff - O
Caçador de Vidas"): depois de experimentar tanta coisa, o desejo se radicaliza e a insatisfação quer cada vez mais.
O diretor diz que uma espectadora se
identificou com os torturadores, descobrindo, dentro de si, impulsos abjetos antes
ignorados. Talvez seja possível. Mas parece
difícil não se contagiar pelo sofrimento das
vítimas. A experiência, sem divisão de papéis, é, ao mesmo tempo, sádica e masoquista. Em fim das contas, faz explodir as
fronteiras nacionais; a teia se dilata numa
rede sem pátria, internacional, tecida pelo
poder do dinheiro. Realista e onírico, de fatura certeira e tão clássica, sólido, expositivo, sem sustos, "O Albergue" provoca muitas inquietações.
Bufunfa
O que fazem os figurões políticos com o
dinheiro roubado? Que prazeres têm eles?
A questão brota do filme "Brasília 18%", de
Nelson Pereira dos Santos. Senadores e deputados surgem em público em estilo florido, parnasiano; na intimidade são grossos,
boçais, gente que nenhum ser civilizado
gostaria como conviva num jantar.
Tudo, no poder, se resume ao dinheiro,
ensina o diretor de "Rio 40". Carlos Alberto Riccelli, que passa seu tempo entre vivas
e mortas, parece, ele próprio, meio zumbi.
Na verdade, todos ali, que vão e que vêm
naqueles carros pretos e funéreos, têm algo
de mortos-vivos. Talvez não seja mera
coincidência que um personagem se chame Georgesand Romero...
Mistério
É bem possível que o único prazer na política, tão forte, seja ganhar, ganhar e ganhar; roubar para ganhar. Um prazer de jogadores, que passam o tempo armando
arapucas para adversários e inimigos. Fora
disso, sobra pouco: jantares lautos, satisfações sexuais mais imediatas, conversas de
baixo calão sobre mulheres, vantagens contadas a respeito de proezas na cama. "Brasília 18%" é, em parte, na melhor parte, uma
crônica analítica de costumes. Tem ainda
um sabor de parábola inconclusa e desesperançada. Qualquer solução parece impossível já que, sem exclusões, tudo é feito
pelo dinheiro e se submete a ele.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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