São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

A máscara do outro

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O desconhecido desenha sempre uma cartografia do temor. Diante da Europa, a cultura dos Estados Unidos mantém constante relação de amor e medo. Walt Whitman celebrou a "athletic democracy" norte-americana. A palavra "atlético" supõe energias jovens e força do corpo. Nela ecoa também inocência e pureza diante do mundo.
É curioso constatar quantas vezes, na literatura e no cinema, americanos confiantes, quando expostos à sofisticação cultural européia, descobrem também um mundo torvo, doentio, perverso, impiedoso e tornam-se pobres vítimas indefesas.
Do "The American", (Penguin), escrito por Henry James e publicado pela primeira vez em 1877, a Diane Johnson com seu "Le divorce" (1996, ed. Plume); de Edith Wharton (1862-1937) a Patricia Cornwell, com a nefanda e deliciosa concocção de "Alerta Negro" (Companhia das Letras), aquela situação se repete.
O filme "O Albergue", de Eli Roth, renova esse tema. Os dois protagonistas, jovens, na Europa, assinalam comportamentos específicos e proclamam sua nacionalidade; "Ei, vocês não podem fazer isso, eu sou cidadão americano!". Americanismo espalhafatoso de um lado, antiamericanismo insidioso de outro. Os garotos não parecem muito inocentes nem puros, já que encaram o tour europeu como uma exploração de sexualidade e de drogas, num ambiente licencioso ao qual não estão habituados.
Mas fica logo claro que são desprevenidos, incautos, iscas ingênuas para uma armadilha abominável. A Europa é uma teia de aranha, com fios tecidos de Paris a Barcelona, Amsterdã ou Bratislava.

Hemácia
Na Eslováquia, criancinhas de seis ou sete anos andam em bando, mais assustadores do que em "A Cidade dos Amaldiçoados" ("Village of the Damned", filmado em 1960 por Wolf Rilla e refilmado em 1995 por John Carpenter). São capazes de matar por chiclete de bola. Na Eslováquia, as garotas são todas lindas, todas querem transar com o primeiro ianque surgido. Na Eslováquia, quem tem dinheiro pode satisfazer suas pulsões mais cruéis, mais abjetas, torturando seres humanos até a morte.
Há, em "O Albergue", uma deliqüescência dos prazeres fatigados, à maneira do conde Zaroff (do filme de 1932 "Zaroff - O Caçador de Vidas"): depois de experimentar tanta coisa, o desejo se radicaliza e a insatisfação quer cada vez mais.
O diretor diz que uma espectadora se identificou com os torturadores, descobrindo, dentro de si, impulsos abjetos antes ignorados. Talvez seja possível. Mas parece difícil não se contagiar pelo sofrimento das vítimas. A experiência, sem divisão de papéis, é, ao mesmo tempo, sádica e masoquista. Em fim das contas, faz explodir as fronteiras nacionais; a teia se dilata numa rede sem pátria, internacional, tecida pelo poder do dinheiro. Realista e onírico, de fatura certeira e tão clássica, sólido, expositivo, sem sustos, "O Albergue" provoca muitas inquietações.

Bufunfa
O que fazem os figurões políticos com o dinheiro roubado? Que prazeres têm eles? A questão brota do filme "Brasília 18%", de Nelson Pereira dos Santos. Senadores e deputados surgem em público em estilo florido, parnasiano; na intimidade são grossos, boçais, gente que nenhum ser civilizado gostaria como conviva num jantar.
Tudo, no poder, se resume ao dinheiro, ensina o diretor de "Rio 40". Carlos Alberto Riccelli, que passa seu tempo entre vivas e mortas, parece, ele próprio, meio zumbi. Na verdade, todos ali, que vão e que vêm naqueles carros pretos e funéreos, têm algo de mortos-vivos. Talvez não seja mera coincidência que um personagem se chame Georgesand Romero...

Mistério
É bem possível que o único prazer na política, tão forte, seja ganhar, ganhar e ganhar; roubar para ganhar. Um prazer de jogadores, que passam o tempo armando arapucas para adversários e inimigos. Fora disso, sobra pouco: jantares lautos, satisfações sexuais mais imediatas, conversas de baixo calão sobre mulheres, vantagens contadas a respeito de proezas na cama. "Brasília 18%" é, em parte, na melhor parte, uma crônica analítica de costumes. Tem ainda um sabor de parábola inconclusa e desesperançada. Qualquer solução parece impossível já que, sem exclusões, tudo é feito pelo dinheiro e se submete a ele.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Biblioteca básica - Muniz Sodré: Moby Dick
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.