São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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Filosofia para as massas

ENSAÍSTAS APONTAM AS MELHORES E PIORES OBRAS INTRODUTÓRIAS, LANÇADAS NO BRASIL, ÀS IDÉIAS DE CINCO PENSADORES FUNDAMENTAIS; COLEÇÃO "90 MINUTOS", DE PAUL STRATHERN, É A MAIS CRITICADA

O TERREMOTO NIETZSCHE

Peter Pál Pelbart
especial para a Folha

Do trio de pensadores que distribuiu as cartas teóricas do século 20, Nietzsche continua, talvez à frente de Marx e até de Freud, como o mais pop. O que não significa que seja o mais lido entre os três ou nem sequer o mais compreendido. Daí, quiçá, a quantidade de livros que se pretendem "introduções" ao seu pensamento.
Da nova safra publicada no Brasil, sem dúvida o "Nietzsche" de Oswaldo Giacoia Jr. ocupa um lugar de destaque. Num texto sem concessões, curto (92 páginas!) e grosso, denso e leve, arguto e cristalino, o autor diz as coisas essenciais, sempre a partir das mais altas exigências que o filósofo se colocou a cada momento de seu trajeto. Nietzsche aparece, ao final, como um pensador da cultura e do seu destino, muito distante da imagem do bárbaro irracionalista ou de um leviano precursor do pós-moderno. Ao contrário, nenhum filósofo sentiu tamanha responsabilidade para com o contorno futuro do homem sobre a terra quanto o autor de "Zaratustra". Em vez de se deleitar com a fórmula "Deus está morto", esse livro evoca as articulações histórico-filosóficas que esclarecem seu alcance. A derrocada dos valores supremos e a perda de sentido contemporâneos aparecem como parte de um processo de "décadence" incontornável, mas que é preciso pensar também a partir de seu esgotamento e de sua viragem. Daí o mote da superação do niilismo, com a reapropriação da vontade de poder e o tema do além-do-homem. Não se trata de uma utopia pré-formatada, mas de um chamamento afirmativo, enraizado nas promessas que a história do homem não cumpriu. Donde o aspecto crítico em relação ao presente bem como as múltiplas referências ao potencial emancipatório ou inconformista do pensamento nietzschiano, com o que o autor nos devolve à tarefa que Nietzsche mesmo traçou para a filosofia, vital, prospectiva, liberadora e intempestiva.
Dois outros livros, muito menos bem-sucedidos, também se propõem como introduções ao pensamento de Nietzsche. "Nietzsche", de Ronald Hayman, vê o trajeto pessoal, estilístico e teórico do filósofo como uma tentativa de domar suas "vozes internas". O longo monólogo escrito por Nietzsche seria o resultado de um disciplinado esforço de auto-superação, sempre a partir das múltiplas vozes que o povoavam (desde a voz religiosa e moralizante do entorno familiar até as vozes libertária, profética ou didática que aparecem em sua obra), pondo em risco sua integridade psíquica.
Nesse flerte com a loucura, que o desqualificou aos olhos de seus contemporâneos, Nietzsche acabou, paradoxalmente, mais próximo de nossa sensibilidade. Como diz Barthes, que o autor cita, "a invenção de um discurso paradoxal é mais revolucionária do que a provocação". Infelizmente, com vários descuidos na interpretação filosófica e trivialidades biográficas, sem contar o excesso de citações (quase metade do livro é... de Nietzsche!), e apesar da esmerada tradução de Scarlett Marton, o livro fica muito aquém de sua intenção. Ademais, a letrinha miúda pede mais uma lupa do que um leitor.
Por último, num livro mais complexo e desigual, com alguns lances originais, Richard Beardsworth trata de retomar o conjunto do pensamento do filósofo a partir da idéia de tempo e de vida. Centrado numa interpretação "energético-técnica", levando em conta o campo de forças afetivo e histórico, o autor pensa poder resgatar Nietzsche de uma interpretação heideggeriana e aproximá-lo das preocupações do presente.
Apesar das diferenças de enfoque e qualidade, a recente safra de traduções e a já rica produção brasileira testemunham um interesse crescente por esse pensador sobre o qual se perguntou, com razão: será ele um sismógrafo ou o próprio terremoto?


Peter Pál Pelbart é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de, entre outros,"Vida Capital" (Iluminuras).

OS LIVROS
Nietzsche (coleção "Folha Explica"), de Oswaldo Giacoia Jr. Ed. Publifolha (al. Barão de Limeira, 401, 6º andar, CEP 01202-001, SP, tel. 0/ xx/11/3224-2196). 92 págs., R$ 14,90
Nietzsche (coleção "Grandes Filósofos"), de Ronald Hayman. Trad. Scarlett Marton. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/3242-7171). 56 págs., R$ 10,00
Nietzsche (coleção "Figuras do Saber"), de Richard Beardsworth. Trad. Beatriz Sidou. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3661-2881). 28 págs., R$ 22,00


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