|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Dezoito escritores reescrevem o início da mais famosa novela de Kafka, morto aos
40 anos em 1924
Metamorfoses da metamorfose
Folha Imagem
|
O escritor tcheco Frans Kafka, autor de "O Processo" e "O Castelo"
|
ADRIANO SCHWARTZ
Editor-adjunto do Mais!
A convite da Folha, 18 escritores aceitaram o desafio de reescrever o primeiro período de "A Metamorfose", a mais conhecida novela do escritor tcheco Franz Kafka, que morreu há
75 anos, no dia 4 de junho de 1924.
O texto, que tem uma das aberturas mais bem construídas
da história da literatura, foi escrito em 20 dias, entre 17 de
novembro e 7 de dezembro de 1912. É, de modo sintético, a
história do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que acorda um dia
transformado em um inseto e, subitamente, deixa de ser o
arrimo da família para se tornar um problema cada vez mais
incontornável para seus pais e sua irmã.
"A Metamorfose" foi publicada em uma revista em 1915 e
teve uma segunda edição -em livro- em 1918, ou seja, é um
dos trabalhos do autor que possui uma edição definitiva, ao
contrário de obras-primas como "O Processo" ou "O Castelo", que, lançadas postumamente, não chegaram a ter uma
forma final estabelecida pelo autor. São textos que, como
ocorreu com a maioria de seus escritos, o escritor tcheco pediu ao amigo Max Brod para queimar (leia na pág. 5-6 artigo
do crítico português Abel Barros Baptista sobre esse fato).
As 17 palavras do primeiro período da novela são, na tradução para o português de Modesto Carone: "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso". De acordo com Carone, essa abertura é praticamente
intraduzível "no significado mais profundo da expressão
"ungeheueres Ungeziefer" (inseto monstruoso), uma vez que
o adjetivo "ungeheuer", que quer dizer, etimologicamente,
aquilo que não é familiar, "infamiliaris", está diretamente relacionado com o substantivo "Ungeziefer", que indica não
apenas o inseto nocivo, mas também -do ponto de vista etimológico- o animal que, ao contrário dos que são domésticos, não se destina ao sacrifício pagão".
Isso torna plausível, segundo Carone, a suposição de que o
etimologista amador Kafka tenha, na frase, feito uma síntese
da própria história da novela, pois, "com a metamorfose,
Gregor Samsa passa de parasitado pela família a parasita dela,
o que o leva ao ostracismo dentro de casa e em seguida à sua
morte".
Além de Modesto Carone, participam do "jogo literário"
proposto pelo Mais!, com possíveis metamorfoses do início de
"A Metamorfose", os escritores Bernardo Ajzenberg, Bernardo Carvalho, Cristovão Tezza, Fernando Bonassi,
Jean-Claude Bernardet, João Gilberto Noll, Marcelo Coelho,
Marcelo Rubens Paiva, Moacyr Scliar, Paulo Lins, Rodrigo
Lacerda, Ronaldo Lima Lins, Rubens Figueiredo, Sérgio
Sant'Anna, Teixeira Coelho, Valêncio Xavier e Zulmira Ribeiro Tavares.
Metamorfose
TEIXEIRA COELHO
Quando certa manhã acordou
de um sono intranquilo, encontrou-se em seu canto metamorfoseado num ser humano. E, o
que lhe pareceu particularmente
monstruoso, já com um nome:
Gregor Samsa.
Teixeira Coelho, 55, vive em São Paulo, é autor de "As Fúrias da Mente" (Iluminuras) e "Niemeyer" (Geração Editorial).
Prognose
BERNARDO CARVALHO
Quando certa manhã Franz K. acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama com a idéia de uma história esdrúxula em que um bando de escritores de algum canto exótico do mundo, digamos o Brasil, quebrava a cabeça, inutilmente, para reescrever a primeira frase de uma história ainda mais esdrúxula e improvável, de um homem que acordava metamorfoseado num inseto monstruoso, por eles considerada um clássico da literatura mundial (embora K. dela nunca tivesse ouvido falar), e depois de rir muito do absurdo daquela idéia resolveu ele próprio, num exercício, só de brincadeira, tentar imaginar a frase que tentavam reescrever, inutilmente, os escritores do seu sonho.
Bernardo Carvalho, 38, vive em São Paulo, é autor de "Onze" e "Aberração" (Companhia das Letras).
Mentalmorfose
VALÊNCIO XAVIER
Saindo de pornográficos sonhos, Valêncio Xavier acordou certa manhã em sua cama virado num enorme
Convencido que não era um sonho, vi que ao mesmo tempo eu estava adiantado, pois estava marcando oito e meia, e também estava atrasado pois costumo acordar às cinco e meia para estar no trabalho às sete horas em ponto. E nesse tempo de desemprego não é aconselhável chegar atrasado.
Ahahah!!!
Slam!!!
Pelo grito assustado e o bater da porta imagino que minha irmã solteira nunca mais virá, rindo brincando, puxar meu pinto, me acordando, fazendo eu levantar para não perder o trabalho.
Nesse tempo de desemprego não posso perder o trabalho, mas também não posso só ficar pensando nisso, é tempo de pensar em outra coisa.
O que ocupa minha mente neste minuto é a minha nova situação... Quem vai me dar corda? E de que maneira eu vou me locomover até o trabalho? Relógio não anda, só marca as horas. E o que eu vou fazer lá? Já tem relógio de ponto e o grande relógio elétrico do escritório. Meus serviços certamente serão desnecessários...
Tento chamar minha irmã e vejo que perdi a fala. O pior é que também não sei a fala do relógio, e se devo dizer tic-tac ou
tac-tic. O melhor é dizer os dois ao mesmo tempo, assim ninguém verá se estou certo ou errado
Tic-tac Tic-tac Tic-tac Tic-tac Tic-tac Tic-tac
Tic-tac Tic-tac Tic-tac Tic-tac Tic-tac
Tic-tac Tic-tac Tic-tac Tic-tac
Tic-tac Tic-tac Tic-tac
Valêncio Xavier, 63, vive em São Paulo, é autor de "O Mez da Grippe" (Companhia das Letras) e "Meu 7º Dia, uma Novela-Rebus" (ed. Ciência do Acidente).
A bestiaga
JEAN-CLAUDE BERNARDET
Gregor Samsa, após sonho agitado, acorda de manhã. Ele se vê.
Na sua cama está um inseto
-monstruoso
Jean-Claude Bernardet, 63, vive em São Paulo, é autor de "A Doença" (Companhia das Letras) e "Brasil em Tempo de Cinema" (ed. Paz e Terra).
O início presumível de K. e Gregor
MODESTO CARONE
Alguém deve ter caluniado Franz K. pois ao acordar certa manhã de sonhos intranquilos encontrou-se em sua cama metamorfoseado em Gregor Samsa.
Modesto Carone, 62, vive em São Paulo, é autor de "Resumo de Ana" (Companhia das Letras) e "Dias Melhores" (Brasiliense).
Um dia depois do outro
MARCELO COELHO
Quando finalmente acordou de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num grande inseto. Suas costas, duras como couraça, não mais sentiam as ripas do estrado irregular que o haviam perturbado durante a noite. O ventre, marrom e dividido por nervuras arqueadas, pareceu-lhe definido e capaz de ágeis contrações. Suas numerosas pernas, movendo-se no ar com precisão, saudavam a luz da manhã. "Bem", pensou, "poderia ser pior".
Marcelo Coelho, 40, vive em São Paulo, é autor de "Jantando com Melvin" (ed. Imago) e "Gosto Se Discute" (ed. Ática).
O triste fim de Gregor Samsa
PAULO LINS
-Que porra é essa? pensou Gregor Samsa ao despertar dum sono turbulento; seu corpo, à luz da manhã e de seus olhos, não era mais humano.
Paulo Lins, vive no Rio de Janeiro, é autor de "Cidade de Deus" (Companhia das Letras).
Pelo ralo
BERNARDO AJZENBERG
Aquelas árvores além dos anexos da casa estavam carregadas
quando ele pulou o muro no começo do dia, invadiu o sítio à
sombra da nossa ausência e
prosseguiu devagarinho onde
antes havia o gado. Daqui da varanda lá é longe, sim. A distância, porém, para quem vem de lá,
é outra, diminuta e concentrada,
enxuta.
Barba por fazer, trazia olhos
assustados -pareciam três
olhos, lotados de ciscos e sonhos
turbulentos. Carapaça escura.
Subiu a escadaria de pedra varvito; à falta de corrimão, agarrou-se às flores, o calhorda. Contornou o laguinho, com seu ventre escuro e suas inúmeras patas
esquálidas. E foi aqui, a cinco
metros da casa, que o identifiquei.
Um pouco pela testa estreita,
um pouco pelos lábios deflorados, e pelo cheiro. Sim, o cheiro
do meu berço. Do nosso berço,
irmão. "Talquinho bom", a
mãe dizia, lembra? Mas principalmente pelo vapor do sangue
dela preso nas patas malditas
-"tem dó de mim, Gregor!",
rogava a mãe em vão, lembra?-, a ferida dela ainda agora
na casca suja dele.
Era outro e era o mesmo. Era o
pai, acredite. Caixeiro-viajante.
Fugitivo. A cinco metros da casa,
e logo dando as costas, rumo à
piscina. O corpanzil enferrujado
aos sobressaltos.
Corri mas falhei. Meus passos
foram menos do que os saltos
dele no gramado. Enfiou-se logo
à esquerda, o pai, ali onde antes
o verde dava frutas. Desapareceu
pelo ralo do quebra-ondas da
piscina de água imunda, o corpo
descorado pelo esgoto.
De novo ele abandonou os seus
e a casa. Nós. Sim. O velho Gregor, com mais uma de suas metamorfoses. Escroto Gregor. Frio
Gregor. Homicida.
Bernardo Ajzenberg, 40, vive em São Paulo, é autor de "Variações Goldman" (ed.Rocco) e "Efeito Suspensório" (ed. Imago).
Transplante
JOÃO GILBERTO NOLL
Ao entrar no quarto do hotel, centro de Porto Alegre, depois de uma prolongada ausência da cidade, notei que eu pisava sobre um envelope. Carta de uma certa Alba Alcântara. Confessava ter esperado anos pelo meu retorno. Não o retorno de um cidadão, digamos, mas de um sêmen particular, o meu. "Antes de seu ânimo ficar comprometido pela doença que o devastará em breve. Agradeço ao destino, você voltou a tempo." Eu ali não tinha mais dúvidas de estar a ponto de me transplantar para uma carne futura. Por enquanto desfaleceria no tapete. Até que a sombra se desprendesse de mim. E assumisse o risco de uma outra história.
João Gilberto Noll, 53, vive em Florianópolis, é autor de "Harmada" e "A Céu Aberto" (Companhia das Letras).
O Sonho e a vigília de Gregor Samsa
ZULMIRA RIBEIRO TAVARES
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos tranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em uma monstruosa criatura; porém muito humana. Seu quarto, um autêntico quarto humano, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas.
Todavia no correr da noite, enquanto dormia, este se mostrara um pouco pequeno demais. Na cama estava deitado sobre suas costas duras como uma couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. Teve a breve consciência de que já não era humano, a qual se desvaneceu com a mesma brevidade da noção de quão lastimável era a finura de suas numerosas pernas, assim como o desamparo com que tremulavam.
- O que aconteceu comigo? - Isso não se perguntou em sua carapaça de grande inseto sobre a cama. Nem de como levaria em frente sua profissão de caixeiro viajante. O seu olhar dirigiu-se então para a janela, e o tempo turvo -ouviam-se gotas de chuva batendo no zinco do parapeito- não lhe trouxe melancolia como das outras vezes. O que lhe trouxe? Mas sobre isso também não se perguntou. E nada perguntou a si mesmo ou a outrem na duração do sonho.
O alarme já havia soado há um bom tempo quando Gregor Samsa, desperto, suportou mal o início de um novo dia. Na trégua trazida pela noite com sua uniforme qualidade animal, desaprendera de vez tudo o que dizia respeito às reflexões a que era dado (e que então lhe voltavam desordenadas com redobrado peso), assim como a forma de escamotear o desassossego por elas trazido. A tal ponto que os seus, ao forçarem a porta vendo que passara em muito a hora de se dirigir ao trabalho, recuaram tomados de horror diante da monstruosidade com a qual teriam agora de conviver, dela cuidar e alimentar. Pois esta lhes parecia -na secreção viscosa e nunca estancada de suas indagações- mais do que sempre a eles ligada por antigos e irrecusáveis laços de parentesco.
Zulmira Ribeiro Tavares, 68, vive em São Paulo, é autora de "Cortejo em Abril" e "Café Pequeno" (Companhia das Letras).
Por que não uma pedra?
MARCELO RUBENS PAIVA
Numa certa manhã, um inseto
acordou metamorfoseado num
cidadão chamado Gregor Samsa.
Perdeu a habilidade de voar, de
andar sobre as paredes e ganhou
uma pasta preta, um chapéu e
documentos.
Seu ambiente restringiu-se à
fria Praga. E seu novo predador
era invisível: um saco com suas
próprias dúvidas. Cercado por
castelos que ditavam sua rotina,
passou a ser atormentado por
culpa e paranóia.
Antes, sentia apenas fome e sono. Uma série de perguntas começou a torturá-lo. Quem sou?
De onde vim? Antes, o que o
atormentava era uma penca de
lagartixas e sapos.
Essa é a tragédia do metamorfismo de um hexápode comum,
espécie que lamentou até o fim
da vida não ter se transformado
numa pedra.
Marcelo Rubens Paiva, 40, vive em São Paulo, é autor de "Feliz Ano Velho" (ed. Mandarim) e "Blecaute" (ed. Siciliano).
O prodígio
RUBENS FIGUEIREDO
Quando certa noite ela acordou
de sonhos feitos de fome, de sede
e do desejo de espalhar milhares
de ovos, encontrou-se em sua toca transformada em um sociável,
otimista e monstruoso ser humano.
Rubens Figueiredo, 43, vive no Rio de Janeiro, é autor de "As Palavras Secretas" (Companhia das Letras) e "Essa Maldita Farinha" (ed. Rocco).
Kafka em Curitiba
CRISTOVÃO TEZZA
Quando K. Pietoski acordou
aquela manhã gelada, depois de
um sonho esquisito, percebeu
-primeiro a ausência da mão,
depois a dureza na alma- percebeu que estava transformado
em alguma coisa desagradável
que lembrava um inseto. Não
exatamente um choque, porque
tudo se transformava com o corpo, até a memória -mas uma
curta aflição, quase uma apenas
pergunta: se conseguisse se erguer, alguém descobriria?
Cristóvão Tezza, 46, vive em Curitiba, é autor de "Trapo" e "Ensaio da Paixão" (ed. Rocco).
Redenção
SÉRGIO SANT'ANNA
Ele estava tão enredado como uma mosca presa numa teia, na angústia e opressão de seus laços -de família, do trabalho mesquinho e da própria vida que transcorria como uma gosma dentro dele-, que exprimir isso lhe surgia como uma necessidade urgente e absoluta para ter pelo menos a esperança de lavar seu cérebro daquela viscosidade de patas que se debatiam sem conduzi-lo a lugar nenhum. Mas o pior das palavras era que quanto mais você as escrevia, mais elas pareciam afugentá-lo da nitidez de um alvo.
O mais engraçado -provocando nele, em seu quarto de dormir, uma gargalhada parecendo guinchos, que enregelou a família na sala- é que foi justamente no momento em que entregou os pontos, desistindo de palavras ou pensamentos profundos, que ele entendeu que para escrever o que se passava dentro dele e ao seu redor não havia outra forma senão a mais rasteira e única possível:
"Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto."
Sérgio Sant"anna, 57, vive no Rio de Janeiro, é autor de "Um Crime Delicado" (Companhia das Letras) e "Confissões de Ralfo" (Relume-Dumará).
O milagre da multiplicação
RONALDO LIMA LINS
Quando Gregor Samsa despertou certa manhã, como se saísse de
um sonho, descobriu-se transformado em Borges. Tinha um rosto
pequeno, com fios brancos espalhados pelo queixo e pelas faces,
numa barba que devia ser escura.
Nada de semelhante com o escritor. Mesmo assim, era ele. Pela janela, a Grande Catedral, onde tantas vezes se recolhera atrás de serenidade, devolveu-lhe uma imagem corriqueira, abastardada,
com traços arquitetônicos espanhóis ou portugueses deformados
pelo vulgar. Onde estaria?
Olhou-se como pôde. De cima para baixo, na posição em que se colocara, surpreendeu-se: da barriga, do peito, das pernas, como
num enorme inseto, brotavam
braços flexíveis que o levavam a
toda parte e a lugar nenhum. Conservava, então, se o desejasse, a capacidade de se locomover. Um
prazer estranho, meio louco, desses que nascem sem cidadania ou
passaporte, assaltou-o de repente.
Queria refazer-se, reconstruir um
país, reescrever a História. Virou-se para o lado e devaneou. Alimentava uma ilusão ambígua como a glória dos traidores. A cabeça
lhe doeu a ponto de quebrar. Envergonhado, como se reconhecesse algo muito próximo e ao mesmo tempo distante, ouviu um sussurro: "Serei Borges?". Uma lágrima lhe brotou indecisa e lhe escorreu pela face, com a vontade de
matar-se ou de matá-lo. "O que
veio a ser de mim?"
Ronaldo Lima Lins, 57, vive no Rio de Janeiro, é autor de "Jardim Brasil: Conto" (ed. Record) e "As Perguntas de Gauguin" (ed. Francisco Alves).
Memorial de sonhos intranquilos
MOACYR SCLIAR
Estava clareando o dia, e os sonhos mostravam-se cada vez mais intranquilos. Daqui a pouco Gregor Samsa vai acordar, diziam, e quem sabe o que lhe acontecerá então? Não, ele não deve despertar, ele deve ficar entre nós, aqui está seguro, aqui nenhum perigo o ameaça -mas, como faremos para retê-lo, para impedir que abra os olhos? É tênue a matéria de que somos feitos, lamentavam-se os sonhos, é fraco o nosso poder, sobretudo por causa de nossa intranquilidade, essa intranquilidade que assusta o pobre Gregor Samsa, que o expulsa para o limiar da vigília onde ele fica, indeciso entre as sombrias visões da noite e a enigmática realidade com que em breve se verá confrontado. Seria bom se pudessem convocar uma assembléia de sonhos, intranquilos ou não; se pudessem discutir em profundidade as noites de Gregor Samsa e também seus dias; se pudessem estabelecer uma agenda de negociações, uma estratégia de ação, um programa de metas. Seria bom se constituíssem um cartel de sonhos, ou um consórcio de sonhos, ou uma holding de sonhos. Mas nem tinham tempo para isso, nem sabiam como fazê-lo.
Havia uma outra possibilidade: e se contassem uma história a Gregor Samsa? Uma história bem narrada, ainda que impressionante? Uma história que o convencesse de que não há nenhuma diferença entre sonho e realidade? Uma história que o mantivesse adormecido até que a felicidade reinasse soberana sobre a terra, ou alternativamente, até o Dia do Juízo?
Os intranquilos sonhos não sabiam, contudo, como contar esta história. Havia quem pudesse fazê-lo, alguém que conheciam bem: Franz Kafka. Mas Franz Kafka estava dormindo. Quando acordasse seria tarde demais.
Moacyr Scliar, 62, vive em Porto Alegre, é autor de "Sonhos Tropicais" (Companhia das Letras) e "O Centauro no Jardim" (ed. L&PM).
Virando bicho
FERNANDO BONASSI
Janta fria às 11 da noite, poça de gordura no bife, já não tinha deitado essas coisas. Mulher quis. Achou que tinha de fazer. Foi por cima. Acabou depressa. "Não deve ter dado tempo pra ela", pensou, e virou pro outro lado. O rádio relógio piscava roxo através das suas pálpebras. Pôs no chão, pra piscar pra parede. Sono foi buscar no laço, com dor nas costas, nariz escorrendo e estômago virado. Sonhou com caco de vidro, muros no meio de quintais, a mãe estendendo lençóis imaculados e estopa usada. Segundo consta, roncou de fininho, como se chorasse. Acordou na hora de sempre, mas dessa vez tinha finalmente virado bicho.
Fernando Bonassi, 36, vive em São Paulo, é autor de "Um Céu de Estrelas" (ed. Siciliano) e "Crimes Conjugais" (ed. Scritta).
Reconhecimento
RODRIGO LACERDA
Gregor Samsa acordou, mas não abriu os olhos. Acordou e ficou imóvel na cama. Pouco a pouco, foi reconstruindo mentalmente sua vida. Lembrou do trem que precisava tomar, do horário, do chefe, dos odiosos colegas de profissão, do dinheiro, da doença na família... Logo viriam tirá-lo do quarto. Escutou passos na casa. E, de repente, teve medo, muito medo. Quis enrolar-se nos cobertores e virar de lado, em posição fetal, como se ainda estivesse dormindo.
Foi quando viu.
O abdome voltado para cima, dividido em gomos ventrais nitidamente entalhados. Quatro pares de pernas, segmentadas em duas partes. Globosas e lisas no encaixe com o tronco; nas pontas, mais finas, tortas e serrilhadas. Não se mexia. As costas, embora pouco à mostra, eram pretas, rígidas e brilhantes. Uma casca, enfim. A pequena cápsula cefálica estava paralisada, atenta, sentindo o momento e o quarto a sua volta.
Gregor escutou o pai sendo levado ao banheiro pela mãe e, finalmente, a irmã abrindo a porta do quarto ao lado e juntando-se a eles. Ouviu um escarro matinal, e as secreções esverdeadas escorrendo lentamente na pia branca. Seu pai era doente e estava sempre rodeado pela mais fiel das platéias, a família. Todos os dias a mesma coisa. Todos os sons conhecidos.
A mandíbula se abriu, mas o grito veio diferente, impossível de entender. Num frêmito súbito, as asas tentaram escapulir por uma fresta da casca dorsal. Em vão. As antenas, cansadas e tontas, perambularam no ar, procurando já sem esperança algo em que as pernas se agarrassem. De barriga para cima, o mundo era muito diferente, e maior. O rodapé do quarto, as paredes, a cama...
Então o inseto viu.
Rodrigo Lacerda, 30, vive em São Paulo, é autor de "O Mistério do Leão Rampante" (Ateliê Editorial) e "A Dinâmica das Larvas" (ed. Nova Fronteira).
Texto Anterior: Brasil 500 d.c. - José Murilo de Carvalho: A liberdade dos pós-modernos Próximo Texto: Abel Barros Baptista: O corpo incompleto Índice
|