São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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+ sociedade

Para ensaísta alemão, a cultura popular norte-americana deve ser vista à luz de um longo processo de individualização

Promessa de modernidade

Winfried Fluck
especial para a Folha

O espectro da "americanização" assombra o mundo. Suas consequências são demonizadas por toda a parte, às vezes indo longe a ponto de utilizar a metáfora do (devo dizer norte-americano) filme de ficção científica "Invasores de Corpos" [de Don Siegel (1956)", no qual alienígenas hostis imperceptivelmente tomam controle de nossos corpos e de nossas mentes. Mas a retórica hiperbólica a respeito de invasões deixa passar a complexidade da mudança cultural que ocorre à nossa volta.
Nenhum lado no debate sobre americanização oferece uma explicação convincente para o fenômeno. Aqueles que argumentam que a americanização é uma forma virulenta de "imperialismo cultural" aparentemente a vêem como um produto de uma crescente dominação por parte dos negócios de mídia norte-americanos. Entretanto muitas corporações que são gigantes culturais -a japonesa Sony, a canadense Seagram, o império de Rupert Murdoch ou a Bertelsmann, da Alemanha- não são mais norte-americanas, ainda que promovam modelos culturais norte-americanos.
Mesmo que as mídias fossem norte-americanas, é fácil demais dizer que os consumidores de cultura mundo afora não são mais do que barro nas mãos de habilidosos especialistas em marketing. Faz mais sentido assumir que há elementos de gratificação social, psíquica e estética que explicam a ressonância dos modelos culturais norte-americanos e provêm para a sua utilidade comercial.
O outro lado no debate sobre americanização enfatiza o poder liberador e antiautoritário da cultura norte-americana popular. Há momentos em que isso é adequado: na Alemanha dos anos 50, por exemplo, a cultura jovem norte-americana tinha um forte componente antiautoritário que ajudou a minar o autoritarismo e contribuiu para o processo de democratização pós-guerra.
Apenas raramente, entretanto, a cultura popular inspirada na norte-americana possui explicitamente essa dimensão. Mais frequentemente, seus ataques contra a autoridade tomam a forma de provocações premeditadas ou representações cada vez mais desinibidas e gráficas de violência. Outras vezes, o apelo refrescantemente antiautoritário de programas como "Os Simpsons" é explorado comercialmente para fortalecer impérios da mídia globais, como o de Rupert Murdoch. Em outras palavras, o antiautoritarismo também não é toda a história.
Precisamos olhar com mais nuanças a marcha adiante da cultura norte-americana, em vez de demonizá-la como uma forma crua de imperialismo ou meramente celebrar o seu potencial libertador. Em particular, a cultura popular norte-americana deve ser vista sob a luz do extenso processo histórico de modernização cultural.
No passado a cultura se encontrava ligada a privilégios e riqueza. Até o século 18, livros eram comparativamente caros; sua posse era estritamente limitada às classes proprietárias. Além disso, certos fundamentos educacionais (como um conhecimento de latim ou grego) eram necessários para compreender a maioria dos objetos culturais.
"Cultura popular" é nossa palavra para uma forma de cultura que gradualmente aboliu essas restrições. Sua manifestação mais primitiva, o romance, auxiliada pelas novas tecnologias de impressão, criou um mercado que permitia um acesso muito mais amplo à literatura. Conhecimento de métrica ou de poetas clássicos não era mais necessário. O romance tornou-se a literatura da classe média, e o "dime novel", "romance abreviado" que custava dez centavos e era cortado para caber em uma revista, expandiu a leitura para os estratos inferiores da sociedade, em especial aos leitores adolescentes.
O desenvolvimento de uma "cultura de entretenimento" por volta da virada para o século 20, incluindo o teatro de variedades, parques de diversão, uma mania de dança disparada pela domesticação de danças negras provenientes das "plantations" e o cinema mudo, reduziu ainda mais os pré-requisitos para o entendimento cultural. A invenção do rádio e da TV aumentou ainda mais a audiência dessa nova cultura "de massa", e a mudança para uma priorização de filmes e música criou uma linguagem "universal", não limitada a uma comunidade em particular.
Por uma série de motivos, os EUA estavam à frente dessa revolução cultural. Devido à sua composição multiétnica e multicultural, especialmente nos anos de formação da moderna cultura de entretenimento, por volta de 1900, a cultura popular norte-americana encarou o desafio de um mercado que antecipava o atual mercado global, em uma escala menor. Isso levou ao desenvolvimento de modos de atuação amplamente compreensíveis e não-verbais, contando preferivelmente com formas de expressão visuais e auditivas. Antes que a americanização de outras sociedades pudesse ocorrer, a própria cultura norte-americana teve de ser "americanizada".
Qual é o sentido e o significado cultural desse processo de "americanização"? A constante redução de pré-requisitos para a compreensão da cultura pode confirmar a visão de que os consumidores da cultura de massa são passivos. A música popular, em particular, é altamente eficaz em se insinuar ao ouvinte de maneira quase imperceptível; não é necessário nenhum processamento intelectual de seu conteúdo, porque ela não tem pretensão de informar. Em vez disso, estados de ânimo são criados por efeito subliminar.
A forma característica pela qual a música ativa a imaginação é por meio de curtas evocações de imagens fora de contexto ou por uma difusa sensação de falta de laços, sem que ambos os modos precisem ser integrados em algum contexto significativo. Ouvintes de música popular não precisam "merecer" sua experiência estética por meio da participação. Ao contrário de formas visuais de expressão cultural anteriores, incluindo os filmes, não há mais uma necessidade de continuidade no fluxo de imagens; ao contrário do que ocorre em um romance, não é necessária uma tradução mental, porque o efeito sensual da música cria associações que não são formadas por narrativa, mas sim por ânimos.
O desenvolvimento da cultura popular a partir do romance, passando pela imagem, até o triunfo da música popular e a "descentralizada" heterogeneidade da televisão criou formas de expressão cultural que são singularmente úteis para os propósitos de auto-expansão imaginária e autorização de si próprio. O resultado é uma crescente separação entre elementos expressivos e contextos morais, sociais e até mesmo narrativos. Eis aqui o triunfo dos "ânimos sobre as morais". A americanização de fato é levada pela promessa de aumento da auto-realização imaginária para indivíduos que são libertos dos laços de normas sociais e de tradições culturais.
Americanização, então, não pode ser vista como uma tomada de poder engendrada tácita e ocultamente, mas como um processo no qual a individualização é a força motriz. Esse processo é mais avançado nos EUA por uma série de razões. A promessa de uma forma de individualização particular provê a explicação sobre por que a cultura popular norte-americana encontra tanta ressonância em outras sociedades, nas quais ela se inseriu quase sem encontrar resistência (levada principalmente por uma geração jovem que tentava fugir da tradição).
A americanização cultural é portanto parte de um processo de modernização. A americanização não é uma forma de imperialismo cultural, mas a encarnação da promessa da modernidade, de auto-realização indolor para cada indivíduo, em contraste com as demandas feitas por conceitos mais tradicionais de emancipação.
A globalização, que frequentemente aparece como o triunfo da padronização cultural, na realidade mina a padronização. Nenhuma única cultura nacional é a força motriz, em vez disso a globalização é impulsionada por um individualismo incansável baseado no crescente repertório de símbolos de massa. Então, não estamos sendo americanizados. Nós "americanizamos" a nós mesmos.


Winfried Fluck é professor de cultura na Universidade Livre de Berlim. Copyright do Project Syndicate and Instituto para Ciências Humanas.
Tradução de Victor Aiello Tsu.


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