São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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REGIÃO

Zulmira Ribeiro Tavares

A região é conhecida por Jardins.
Onde não há nenhum. A não ser que algum marqueteiro do lugar chame Jardins Suspensos o alto das árvores das ruas da Consolação e arredores balançando nos dias ventosos suas copas de lá para cá como grandes perucas ou espanadores arrepiados. Muitas das árvores estão tomadas por cupim. Seja pelos cupins, ou por sua velhice, ou pela violência do céu, ou por tudo junto, por vezes tombam elas sobre carros, transformadores, fios elétricos, e quantos mais, nas furiosas sessões de raios e trovoadas das chuvas de verão. Nessa época a guia da rua da Consolação, no trecho que desce do alto da avenida Paulista, o limite norte da região, até a Estados Unidos, o limite sul, converte-se em uma forte corredeira. A água vem ladeira abaixo roncando com as pororocas que forma para espraiar-se ao chegar ao asfalto plano da Estados Unidos.
Do lado de lá ficam os bairros do Jardim América e Europa: um verde forte que se interrompe com brusquidão na Estados Unidos; como um mar represado. Do lado de cá, nos andares mais altos dos prédios mais altos erguidos perto dessa linha divisória, o olhar avança então, sem limites, para além, para a rede curvilínea dos jardins dos Jardins, onde não existem prédios. A vista é mag-ní-fi-ca.
Dizem. Porque eu nunca a vi. Sou um habitante do solo. E mais; um sem-teto ocasional. No momento estou de guarda em uma casinhola térrea desalugada que já teve tempos melhores quando, pintada de fresco (de amarelo-ovo, para sermos precisos), era uma bonita loja de venda de cristais, desses que espalham energia positiva, ao que dizem. Também eu já tive tempos melhores e outro ganha-pão. Daí ter sido capaz de usar há pouco a palavra "curvilínea" (e quantas mais...). Saiu-me com a maior naturalidade. Eu sou assim, palavra escolhida a dedo não é comigo; tem de ser natural, "orgânica".
Quando a noite cai acendem-se as luzes da região, as vitrines das melhores lojas da melhor rua de comércio fino, uma das muitas que cortam a Consolação, exibem, com iluminação superior à do dia, mostruários e manecas. (Aprecio muito as manecas sem cabeça. Antes eram poucas, porém nessa estação voltaram com tudo; por que será?, me pergunto. Já as outras, com seus rostinhos estreitos e esverdeados, seu ar de nojo e de fastio, me dão medo.) Nessa hora do lusco-fusco sacos de lixo rapidamente amontoam-se, muitos formando grandes pirâmides negras, ainda mais impressionantes e de maior brilho se lavadas pela água da chuva. Mas a chuva que as lava é a mesma que dá força ao cheiro pestilento sempre pronto a se desprender de tanta imponência. A vida é assim. Nem tudo são alegrias. Mesmo de nariz molestado, com a chegada da noite gosto de passear assobiando por entre essas belas arquiteturas.
Gosto também de observar os que pesquisam no lixo, com grande zelo, surpresas. Tenho para mim que mesmo nas noites de resultado zero não pensam em desistir. Parecem sempre tomados por aquela febre persistente dos fiéis das loterias, das romarias, dos garimpos exaustos. Com discrição e muita ordem, e principalmente muita rapidez, vão desembrulhando e reembrulhando o que encontram pela frente como fazem as comerciárias da região nos fins de ano agitando as mãozinhas diante dos montes de mercadorias para troca. Continuo andando, assobiando e disfarçando.
Foi no começo do outono, quando fazia esse meu tour, que conheci Orfília saindo de uma das lojas da melhor rua de comércio fino da região. Não sou de ficar cobiçando roupa em vitrine. Mas como ali havia uma maneca sem cabeça, me deu gosto notar como o seu lindo pescoço erguia-se para o ar, para o teto, sem nenhum compromisso de sustentação com o que pudesse pesar sobre ele; já que sobre ele não pesava nada. Pude assim deixar os meus olhos escorregarem em liberdade pescoço seu abaixo para vir a firmá-los nos dois pequenos seios duros e perfeitos sobressaindo no tecido. Depois, meu olhar continuou descendo. Escutei ao lado uma vozinha fina. Esclarecia que a vitrine já estava pronta para a nova coleção de outono. Ah, respondi eu. Era ela.
Pequena, moreninha, e tão menina. Mas sua voz estava trêmula e me pareceu muito assustada. Trabalhava na loja há quatro meses, foi me contando enquanto caminhávamos juntos pela rua de comércio fino em direção à sua condução na Nove de Julho. Morava longe, para os lados da estrada de Guarapiranga. Sua família era gente de Catende, Pernambuco. Havia sido trazida à loja por uma amiga que nela trabalhava. Ficou primeiro como dobradeira, começou dobrando o que os fregueses provavam e punham de lado.Um trabalho sem fim. Depois foi promovida quando uma colega resolveu ir embora sem dar aviso. Agora atendia às freguesas. Outras é que dobravam. Muito bem, aplaudi eu, mas não tive coragem de perguntar o porquê do seu medo.
Tomei o costume de esperá-la depois do seu expediente na loja, pouco antes de começar o meu na casinhola desocupada, que um dia, pintada de fresco, chegara a oferecer energia positiva a preços acessíveis. Logo ficamos íntimos; ou quase, pois sempre virava a cabeça quando eu lhe perguntava sobre aquele seu jeito assustado de quando a conheci.
A primeira noite em que combinamos dormir juntos ela avisou à mãe que iria passar o fim de semana com uma colega. Eu por minha vez lhe disse que de forma alguma a levaria para a casinhola de pintura descascada. Negociei duas noites de troca da guarda com um vendedor de redes que faz ponto em uma esquina da rua Augusta. E partimos.
O tempo estava lindo. Descemos de mãos dadas a Consolação e atravessamos a Estados Unidos para aqueles lados tão verdes e ondulados que causa espanto sua existência bem na fronteira da região; um mar de ondas, barrado.
Andamos, não muito, pelas suas curvas, eu balançando uma trouxa, ela sua cesta. Diante de um muro comprido e alto, coberto por hera e sem portão, existe uma sombra grande e densa projetada por uma árvore frondosa cuja galharia avança além do muro. Era ali. O lugar em que sempre dormi em muitas noites de outono. Desdobramos o colchonete, pusemos a cesta com as comidinhas e latas de cerveja de lado e nos deitamos bem agarrados, esperando a chegada da noite alta. Conversávamos aos cochichos. Quando escutávamos passos, emudecíamos. Gente levando cachorrinho e criança por vezes parava e espiava de longe. Muitos desconfiavam que dentro daquele amontoado, só entrevisto na sombra por quem já trazia o olho acostumado pelo escuro, havia gente dentro. Emudeciam também eles, e apressavam o passo. Naquela noite um homem chegou a nos cutucar com uma bengala dizendo para a mulher: Mas o que é isso!? O que é isso Marieta!? A mulher foi rápida: Passa reto e não fustiga!
Custou mas chegou a noite alta de céu liso e brilhante sem nenhum crespo de nuvem. Valeu o tempo de espera para o céu de festa que foi o da nossa. Depois, naquela moleza dos fins de encontros festeiros bem espichados, veio a hora das confidências. Eu falei pouco. Meu pai, aposentado como almoxarife de uma faculdade, foi quem me incentivou a ter como meta "antes um pouco de leitura que muito de falatório"; principalmente não esquecesse verbete de dicionário e as palavras cruzadas, pois "desenvolviam a perspicácia", era o que sempre dizia. Nada disso falei a Orfília, mas com a perspicácia afiada por longos anos de disciplina percebi que ela queria me contar alguma coisa de sério. Fala, Orfília! -exigi com autoridade. Minha menina começou por me fazer estranha pergunta, se eu sabia o que era um bode. O macho da cabra! -respondi de pronto. E um bode preto? -retornou. Meu espanto aumentou, contudo não parei para refletir e de novo fui rápido: O macho preto da cabra! -Só isso?, e os lábios de Orfília tremiam. "Quer mais conhecimento?", pensei impaciente, "Pois tome", e fui em frente: Ruminante cavicórneo, o macho preto da cabra! Mas, para pasmo meu, Orfília, que me parecia confusa, ainda uma vez se queixou em voz muito fraca, só isso?
Parei para pensar. Debrucei-me sobre a palavra bode como sobre um verbete do velho dicionário, aquele mesmo que meu saudoso pai me dedicara com suas palavras-guia: "Antes um pouco de leitura que muito de falatório". Depois cruzei a palavra bode com a palavra preto. Sintonizei. Ativei minha perspicácia: Bode preto é também um dos nomes do diabo!


Bode preto! -repetiu. Bo-de pre-to! Não senhora, não tem, respondeu por fim Orfília baixinho


E ainda enriqueci a informação: Ele tem um monte! Diante do quê, Orfília deu um pequeno grito angustiado e colocou a mão sobre minha boca: Não diga o nome! -Digo então qual? Estava estupefato.
Conheci afinal o porquê daquele ar assustado que havia mostrado da primeira vez em que a vi. Ele era a causa. Contudo, já a começar dali enquanto me narrava o caso do bode preto, o nome verdadeiro dele não circulou nunca mais entre nós. Para falar dele ela usava outros, bode preto mesmo ou maligno -que dizia com muita graça, lentamente, malino, espichando o beiço cor-de-rosa como se a palavra exibida fosse um piercing. Já eu, graças ao meu finado pai, tinha um monte de disfarces à minha disposição para pôr no lugar do nome do capiroto, do mofento, do rabudo; como se vê, logo entrei na coisa.
O caso foi que naquela noite, conforme me contou, já no fim do expediente da loja chegou até ela uma mulher alta, de olhos maus, vestida de preto, e que foi logo lhe perguntando se ali tinha bode preto. Orfília ficou imóvel por um momento, apavorada, e nada respondeu. Fingiu que ainda vivia os seus tempos de dobradeira e começou com lentidão infinita a dobrar uma blusa abandonada em um provador aberto. Mas a mulher alta de olhos maus foi até ela e insistiu se tinha, porque se não tinha, dissesse logo. Bode preto! -repetiu. Bo-de pre-to! Não senhora, não tem, respondeu por fim Orfília baixinho. Quando a mulher saiu ainda continuou a dobrar a blusa por um bom tempo até suas mãos deixarem de tremer. Não falou nada para ninguém, muito menos na loja. Sua mãe sempre lhe contava de uma lojinha de ferragem em Catende e que nos fundos dela havia... um outro tipo de serviço, e Orfília se benzeu três vezes.
Acalmei Orfília assegurando a ela que tudo aquilo era pura bobagem (Tudo aquilo o quê?.. e Orfília me olhou torto). Suspirei, e depois de pensar mais um pouco tomei outro rumo explicando-lhe que ali na região as coisas se passavam tal qual em Catende na lojinha de ferragem (como também pelo Brasil, desconfiava eu, e por que não no mundo...). Quem sabe essa madama havia se atrapalhado e entrara na loja errada sem atinar. Claro, não procurava um bode preto de fato (nesse ponto Orfília começou a tremer e precisei sacudi-la com força para que parasse), havia querido na certa comprar apenas um bonequinho do bode preto. Por aqui se vendem às dúzias figurinhas de duendes, sabe o que é? Orfília não sabia. Mas sabia o que eram fadas, anjos, gente que lê o futuro, os astros, que faz cirurgia "pelo espírito" sem abrir nenhum corte na barriga. Pois é, eu continuei, e tem muito, muito mais disso na região, por exemplo a energia positiva dos cristais, lembra quando falei deles para você? (E dão choque? -perguntou Orfília interessada.) Não, Orfília, respondi com desânimo. E pode me acreditar quando digo que todos juntos têm menos força do que uma única lâmpada de 60 watts; mas são bonitos. Orfília sorriu. Levantamos acampamento. A madrugada chegava. Meu pai me perdoasse, eu já havia falado demais. E em vão.
Resolvi então tomar ainda outro rumo; a partir de um ponto de vista oposto, concreto. Ir mostrando a Orfília, sem muita conversa, as coisas existentes de fato no lugar; para que ela entendesse a região e se distraísse. Os prédios e as casinholas-lojas. E as lojinhas de ferragem (não é só em Catende, Orfília...), e sapatarias, e isso e aquilo. E os mendigos variando: os que se fingiam de estátua sentada, botavam uma cuiazinha entre as pernas e não moviam um músculo quando nela pingava uma moeda. (Por isso tinha passante que se arrependia no ato, assim que a moeda caía e fazia plim e depois nada.); e os mendigos que caprichavam no ar molambento (para meter medo e dar pena, tudo junto, preste atenção Orfília no artista; sacou aquele trapinho ali?). E lhe apontei as lojas superfinas, espalhadas na virada de certa rua, em uma outra esquina, e mais para lá, ... (nunca prestou atenção, Orfília? Não quero fazer pouco da sua, mas aprecie) ... de tipo diferente; e que sossego. Parecia que ninguém por elas entrava ou saía. Engano. Nunca se davam mal. E o ar-condicionado também super-regulado escapando de suas altas portas era como vindo de outras esferas. Uns encasacados de escuro andavam à volta da entrada pisando no chão com passos de lã, falando baixo entre si, sorrindo, mas muito contidos. Por vezes alguns preços do que nela se vendiam me caíam no ouvido. Raramente se mostravam nas vitrines. Que altura. Que imensidão. Provocavam vertigens. Entusiasmavam.
(Nesse tempo de caminhadas ao lado de Orfília fiz novas e curiosas observações sobre as manecas; que guardei para mim.)
Achavam-se as coisas nesse pé quando eis que um dia chegou à loja de Orfília uma mulher gorda com nada dos olhos maus da outra, muito ao contrário os tinha de ovelha conforme concluí pela descrição que me fez, e que por um tempo ficou parada à porta balançando o corpo de leve, nem se adiantava nem saía. Atraída pelo jeito manso e tonto da freguesa (em que por certo, sem o saber, reconhecia o seu), e com o caminho livre já que as outras vendedoras pareciam não enxergá-la, caminhou Orfília rapidamente em sua direção e lhe perguntou na sua vozinha fina em que poderia servi-la. Ao que a mulher, subitamente aproximando muito o rosto do dela, não sem antes olhar para os lados como se temesse alguma interferência, em voz baixa, todavia sorrindo, segredou-lhe que estava já há bem uma hora atrás de um bode preto. Com o coração disparado, mas procurando se fazer de forte e recordando minhas explicações tão sensatas (o adjetivo vai por minha conta), preparava-se minha menina para lhe dizer que em outra loja não muito longe dali, em que se vendiam duendes, incensos, figas, anjos, fadas, baralhos, livretos, búzios, fitinhas, ela encontraria com certeza o seu bodezinho preto -quando escutou quase no seu ouvido a terrível palavra: grande.
Sim, foi o que Orfília ouviu e depois me repetiu gritando: GRANDE! A mulher não deixava dúvida quanto ao pedido: Um bode preto grande! -insistiu.
Diante do que Orfília perdeu de todo a cabeça e olhou para os lados a pedir socorro. Mas as colegas iam de lá para cá como se não existisse freguesa alguma perto da entrada com o rosto grudado no seu. Mais gorda fosse a freguesa, mais invisível ficaria, afirmei a Orfília para seu espanto na noite desse dia fatal, desanimado quando ela teimou -e isso apesar de tudo o que se seguiu e vim a saber- que a mulher tinha mesmo qualquer coisa de "malino". Pacientemente fiz-lhe ver que quanto maior o diâmetro de uma freguesa, mais complicado encontrar manequim com o seu número nesses tempos tão tristes de mulheres desprovidas de carnes, moda que infelizmente parecia ter vindo para ficar. (Minha garota de Catende, moreninha e rechonchuda, nem percebeu a homenagem light que disfarçadamente acabava de lhe prestar.) E completei: as outras vendedoras deixaram o abacaxi para você, Orfilinha.
E deu no que deu. Tomada de aflição e com a mulher sempre no seu encalço, Orfília foi até a gerente e lhe disse que uma freguesa a vinha perseguindo com um pedido muito feio; sobre o que seria a gerente nem podia imaginar, um bode preto grande, por acaso teria a loja feição de terreiro? Nesse exato momento a mulher, que se não tinha os olhos maus da outra já havia perdido há muito os seus de ovelha, exigiu a despedida imediata daquela estúpida.
Porém Orfília não foi despedida, apenas rebaixada ao antigo cargo de dobradeira. Contudo, o que não suportou foram os risos. Naquele mesmo dia, e no seguinte, agitaram-lhe as companheiras alegremente diante dos olhos vários tipos de corpetes, com e sem mangas, de muitas cores, principalmente pretos, ela estava cansada de os ver por ali, afirmavam, e que de agora em diante iria ter muito, muito tempo para do-brar! Body em inglês é corpo, Orfília, não sabia? -Mas ela já não queria saber nem aprender nada da região. E se foi. Ontem foi a última vez que a acompanhei até sua condução na Nove de Julho; e de cabeça baixa. Eu tinha falhado. Não me lembrei de cruzar verbete em português com verbete em inglês. Morador antigo que sou da região! E com sale, sale, sale, sale, pespegado de lá para cá nas vitrines! Paciência; a perfeição não é para o gasto do diário.
Mas penso que fiz bonito quando reafirmei a Orfília que o "bode preto de Catende", como o episódio ficou conhecido na loja, não era propriedade da gente de Catende coisa nenhuma e nenhum motivo de vexame para ela. E lhe contei como crescia na região a "confraria do bode preto" (confraria!?). E tive ainda o prazer de lhe explicar, com cuidado para que não viesse a ter dor de cabeça, tão delicada a menina, o sentido da palavra (uma das mais prezadas por meu pai em seus dias de almoxarife da faculdade). E como na confraria os membros se davam bem. Os que produziam, os que vendiam, os que compravam; começando pelos cristais e vai-se lá saber onde parando. Um negócio forte, seguro, do outro mundo! Tão garantido quanto o dos corpetes com todas as cores do arco-íris, uma cor para cada gosto, pretos os preferidos; bodys que apertavam o corpo das mulheres cada vez mais, com os fabricantes competindo loucamente entre si até vir o dia de suas donas simplesmente deixarem de respirar e se mover (dá licença, Orfília, de eu também ter minha horinha de vidente?)... como as manecas.
As manecas.
Voltei a pensar nelas agora, deitado em meu território de sombra produzido pela grande árvore do outro lado do muro, aqui, boiando de leve nessa água tão verde dos verdadeiros jardins. Ontem foi que me despedi de Orfília. E metade do que lhe falei também foi de dentro de um território de sombra: de mim para comigo. Nem ela ficou sabendo que já não durmo na casinhola desocupada, um dia tão fresca em sua cor amarelo-ovo. Meu substituto na troca de guarda, o vendedor de redes com ponto na Augusta, traiu e somou: ficou com as redes e a guarda. Não estou nem aí. Enquanto não chegar o inverno não vou me trancafiar em nenhum cômodo malcheiroso. De resto, para os meus dias tenho algumas economias e meus contatos.
A despedida de Orfília. Procuramos os dois fingir que não era para sempre, mas sei que não vou bater pernas para os lados da estrada de Guarapiranga e duvido que ela venha de novo a pôr os pés por aqui. Sabedor de que pretendia voltar a trabalhar no largo Treze com os seus amigos camelôs, diante do ônibus que chegava mal parando, fiz apenas duas coisas para lhe levantar a moral: dei-lhe um tapinha forte no bumbum animando-a a subir rápido e soberba, e um conselho:
- Fique esperta!
Agora, deitado no escuro, continuo recordando e refletindo; menos sobre Orfília, que já mal distingo se apagando na luz do dia indo embora. O cheiro forte dos jasmineiros no verão ainda me chega nessas noites de outono. E de novo, em vão, indago como serão as raízes e o tronco da grande árvore do outro lado do muro, que me dá sombra e tempo para pensar no que bem quiser até vir o sono. Mas algumas coisas novas soube e anotei; sobre manecas, por exemplo. A de que algumas das sem cabeça perdiam o seu ar desempenado e livre de quem teve a cabeça decepada por vontade própria, ao trazerem, no corte do pescoço, pequenas chapas metálicas semelhantes às tampas que fecham garrafas de leite. O que me dá a sensação perturbadora de que tais arremates ou molduras bregas seriam na verdade o pretexto para a sua função verdadeira, a de reprimir cabeças, impedindo-as de escapar pelos pescoços, como o leite das garrafas. Já outras manecas, de forma surpreendente, mostraram-me no lugar das antigas e familiares cabeças, novas e pequenas cabeças ovóides, destituídas de feições e cabelos, absolutamente lisas, algumas levemente translúcidas como as ovas de certos animais marinhos.
E o que concluir de tudo isso?
Leva tempo.
Por ora, o que adianto é o meu palpite de que estão espiritualizando as vitrines cada vez mais. Um truque, bem entendido. Os membros de certa confraria é que iriam ficar impressionados caso fossem capazes como eu de cruzar pensamentos com o desembaraço com que as palavras cruzadas se combinam. (Meu saudoso pai.) Pois se algumas vitrines já nem mais manecas têm, apenas cabides, e que mal são percebidos com o vestuário por cima. Com o avanço da ciência aplicada ao comércio acredito que dia virá em que as vitrines se assemelharão ao interior de uma nave espacial exibindo roupas sem suporte estampadas no espaço; de frente para os compradores, de costas para a gravidade do mundo.
A gravidade do mundo.
Maior dificuldade em chamar o sono. Será o frio da estação aumentando a cada marca no calendário. Ouço, vindos de longe, os silvos noturnos da região separada de mim pela linha divisória da Estados Unidos. São alarmes que disparam orquestrados e se prolongam por muito tempo já com a noite plena... uá, uá, uá..., alguns avançando madrugada adentro, uá, uá, uá... E são as sirenes de ambulâncias e carros de polícia crescendo vários decibéis acima dos alarmes para logo mais diminuir se distanciando uá, uá, uá, um arco vibrando na friagem do céu.
Sei ainda de um silvo estridente que não me chega daqui onde estou a não ser no sonho ou na lembrança, e que já ouço. Sai de algum buraco da noite, ouvido com maior frequência na proximidade das festas de fim de ano e que anuncia aquele que caminha arrastando sua vitrine consigo, seu mostruário repleto de colares, contas, signos, figas, guizos, búzios, anjos... pendurados pelo corpo e misturados às roupas coloridas sobrepostas, formadas por muitas tiras soltas que ao movimento do corpo farfalham juntas com o mostruário. O ambulante traz ainda na cabeça um chapéu com chifres e quando sopra o seu apito na escuridão este ressoa como mais um alarme disparado ou sirene dando aviso de urgências desconhecidas.
Tenho os pés tão frios que preciso esfregá-los um no outro como na infância fazia atritando duas pedras. As pedras iam se aquecendo tal como agora já sinto meus pés distribuindo calor pelo corpo. E zás! uma centelha nas idéias me lembra a faísca que arrancava das pedras para fazer fogo. Aceso e animado, enfim sei. Vou ser vitrinista! Uma decisão para os próximos meses. Já não passarei assobiando no lusco-fusco. Irei sim apreciar de outro ângulo, do interior das vitrines, os que passam assobiando. Não estarão desmaterializados como as manecas, nem como elas jogando charme com suas cabeças decepadas ou reprimidas. Desfilarão os passantes à minha frente pesados e por inteiro, cabeça, tronco e membros. Soprarão vento pelas narinas e marolas de palavras pela boca, excretarão pelos poros os restos de sua matéria inútil. Nos dias em que as vitrines forem desmanteladas como nos desmanches de carro roubado e ficarem escondidas por grandes tiras de papel para uma nova nascer da velha, meu lugar no mundo, tenho certeza, será tão imprevisível quanto o de um espia de alta patente. É ali porém que vou estar. Esquadrinhando do anonimato, pelas brechas do papel-tapume, o vaivém das ruas. Mesmo de gatinhas, ajeitando algum tecido aqui e ali, estarei alerta para o desfile ao rés do chão de saltos finos altíssimos e metálicos, tênis opulentos como bolos gordos emborrachados, pés no chão de humanos em ziguezague e patas de cão voando no empuxo das coleiras. Excitação e variedade me esperam. Uma nova maneira de me orientar na região e ativar a perspicácia. Aquecido, já começo a relaxar. Ainda não é o sono. E é quase a alegria.

Zulmira Ribeiro Tavares é escritora, autora, entre outros, de "O Nome do Bispo" (Brasiliense) e "Cortejo em Abril" (Cia. das Letras).


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