São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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Ponto de fuga

Alma russa

Jorge Coli
especial para a Folha

No parque Ibirapuera, em São Paulo, a exposição "500 Anos de Arte Russa" apresenta uma amostra do acervo que pertence ao Museu Russo de São Petersburgo. Ela agrupa alguns núcleos. Nenhum se pretende exaustivo. Uns são mais densos, como o dos ícones e da vanguarda. Outros são mais rarefeitos, como o da arte produzida nos últimos 20 anos. O romantismo e o realismo foram ignorados: ficaram de fora, assim, alguns artistas importantes para a formação da moderna arte russa.
As obras estão dispostas de modo discreto, sem nenhuma extravagância museográfica, e se deixam ver tranquilamente. Há apenas um senão maior. Enormes painéis do tempo de Stálin foram pensados, em sua concepção de origem, para serem expostos na vertical e, mais ainda, ao que parece, para se estenderem numa superfície recurvada. No pavilhão do parque Ibirapuera encontram-se sobre suportes quase rentes ao chão, de superfície plana. Isto lhes retira o efeito de "trompe-l'oeil" que pressupõem e, pior, provoca deformações nas imagens.
Porém o que de fato importa é o poder de revelação contido nessa mostra. Ela traz uma arte não muito conhecida entre nós, salvo por alguns nomes maiores que a ilustraram. Ora, o conjunto é esplêndido, feito de obras muito fortes. Mesmo aquelas submetidas ao realismo socialista e a serviço da mais ignóbil propaganda política demonstram uma elevada qualidade pictural. Em tudo, desde os velhos ícones, perpassa uma energia construtiva, apoiada na complexidade geométrica e no gosto pelo colorido generoso.

Boleado - Boris Kustodiev (1878-1927) foi um pintor que soube conjugar multiplicação de minúcias, sentido monumental e delicadeza de atmosfera. Dois de seus quadros encontram-se na mostra russa do Ibirapuera.
Um deles é o formidável retrato de Chaliapin, lendário cantor de ópera. Outro mostra a mulher de um mercador tomando chá. Sua beleza é opulenta. Tem pele alva e luminosa, olhos azuis que se perdem em contemplação. Tudo, na tela, se arredonda: o rosto, o decote; sobre a mesa a melancia, maçãs, uvas; de cada lado a silhueta sinuosa do samovar e do gato luzidio. Data de 1918. No mesmo ano, Rotchenko (1891-1956) pintava seu "Círculo Branco", em que duas formas circulares simples, com apoio do escuro e do claro, do vermelho e do azul, travam um jogo de superposição, de poético eclipse. Tão diversos em sua aparência imediata, o "Círculo Branco" e "A Mulher do Mercador" convergem na fluência sedutora e misteriosa das curvas.

Opulência - O mundo dos ícones, em que as imagens se renovam sobre os cânones da arte religiosa; as tensões vivas nas telas de Malevich (ou Maliévich, na ortografia um pouco afetada do catálogo); o estrépito criador dos construtivistas propõem, na mostra do Ibirapuera, uma beleza esperada. Outros artistas, dentre os mais bem representados, surpreendem na continuidade de suas obras. Petrov-Vodkin (1878-1939) é um deles. Pintou meninos angulosos, talhados por um contorno implacável; retratou Anna Akhmatova de modo contido e comovedor; figurou operários em discussão veemente.
Há também um grande número de telas de Filonov (1883-1941), admiráveis de invenção, de experiências, ricas de colorido, que se terminam dolorosamente por um inquietante retrato de Stálin. As obras do realismo socialista recobrem algo de angustioso na sua incessante proclamação de uma felicidade coletiva. Dentre os artistas oficiais, Samokhavalov multiplicou sólidas trabalhadoras irradiando erotismo: sua "Operária do Metrô com Broca", de 1937, parece uma precursora comunista da "Rosie the Riveter", que Norman Rockwell criaria em 1943. Mas, na mostra, é preciso estar atento à sequência de cada autor, já que as obras individuais foram distribuídas e dispersas em categorias genéricas.

Pompa - O catálogo "500 Anos de Arte Russa" custa R$ 280 e pesa 4,5 kg. Com sua abundância de margens e generosa espessura de papel, é um "coffee-table book", kitsch e incômodo. As notas dos especialistas russos são discretas. Foram traduzidas para um inglês correto e para um português bastante maluco. Em ambas, não raro, o sentido diverge.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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