São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

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LIVROS
Em terreno minado


Sai no Brasil"Um Campo Vasto", romance de Günther Grass que ataca a unificação alemã


ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

O livro causou muita celeuma. Publicado em 1995, mereceu capa da revista "Der Spiegel": uma fotografia do conceituado crítico Marcel Reich-Ranicki rasgando o volume ao meio. Outros leitores tiveram reações menos destemperadas, mas não muito mais positivas. O que se anunciava como o grande romance alemão do fim de século, o maior trabalho do maior escritor alemão vivo, permanece até agora motivo de polêmica, não propriamente de respeito. É de se esperar que a reação no Brasil seja mais equilibrada: nem celeuma, nem admiração; mais provavelmente desinteresse por este livro gigantesco, estranho, instigante e moroso.
O motivo da polêmica é menos literário do que político. Grass, que tem um histórico de envolvimento político (incluindo alguns anos como "ghost writer" do líder do partido social-democrata, Willy Brandt), é um dos adversários mais eloquentes da unificação alemã, que ele prefere chamar de anexação. "A unificação alemã é sempre a unificação dos vigaristas e gananciosos", diz uma das personagens, num bordão que se repete, com variantes, ao longo do livro. As formas de reação encenadas no vasto campo do romance são bastante incomuns; e essas formas, no sentido literário do termo, são mais contundentes do que o conteúdo.
"Só o que foi completamente perdido exige ser nomeado, infinitamente: há uma obsessão de chamar a coisa perdida até que volte", escreveu Grass no ensaio "Losses", em "Granta" nš 42, 1992. Seu livro, obsessivo e quase infinito, não é outra coisa, talvez, se não essa tentativa de nomear e resgatar o que se perdeu. E o que se perdeu, para ele, certo ideal humano de vida, encarnado na palavra "Prússia" e até certo ponto preservado na cultura socialista da ex-Alemanha Oriental - é isto o que ele encontra na obra de Theodor Fontane (1819-1898), o maior ficcionista de língua alemã na segunda metade do século passado. Não há uma página de "Um Campo Vasto" que não faça referência explícita ou implícita a "Effi Briest", "L'Adultera", "Irrungen Wirrungen" (Erros e Trapalhadas), "Der Stechlin" (O Espinhozinho) e outras obras de Fontane.
De certo modo, todo o livro de Grass é um romance de Fontane na segunda potência. Não se trata de pastiche, mas de uma sobreposição de estilos e eventos, todo o maquinário de diálogos, descrições, cadências, citações e comentários, a coreografia verbal de um romance naturalista transportada (inclusive "conscientemente" pela personagem principal) para os anos da queda do Muro de Berlim. O livro está dentro, ou vem de dentro de outros: tudo é pensado de dentro da obra de outro autor e de dentro de um outro estilo.

A OBRA
Um Campo Vasto - Günter Grass. Tradução de Lya Luft. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 616 págs. R$ 65,00.



"Um Campo Vasto" está muito distante do humor fantástico ou grotesco de "O Tambor" (1959) e "O Linguado" (1977), dois outros romances vastos de Grass. A dicção conquistada do novo livro é uma espécie de estilo do estilo -algo que se perde, necessariamente, em tradução, mas cuja perda, assim como a das referências literárias e culturais, só faz redobrar a incompreensibilidade do mundo antigo, que vem ser nomeado infinitamente nas dobras do novo.
Fontane está para a literatura alemã como Balzac para a francesa, Dickens para a inglesa, Galdós para a espanhola, Eça de Queiroz para nós. Sua ironia afetuosa, combinada a uma certa melancolia e resignação, se reproduz aqui em cenário inusitado (um McDonald's junto ao Portão de Brandenburgo, ou os escritórios da Treuhand Anstalt, a agência de privatização da nova Alemanha), num romance quase sem trama, um livro quase só de observações e descrições, e centenas de páginas do que Fontane chamava "Plauderei": conversa fiada.
O texto de Grass parece um museu vivo dos romances de Fontane, como se não fosse mais possível a espontaneidade de uma invenção livre; e, analogamente, também não há qualquer representação da consciência individual, exceto de modo indireto, entreouvido nesses "diálogos de romance em tom coloquial". O estilista "extrai seu estilo do tema tratado": "Escreve laconicamente sobre o que é grande e largamente sobre o pequeno". O livro desfia um tempo próprio, que já é, em si, outra forma de protesto.
Personagens, relato, trama: o que se pode dizer? O que se lê é um "retrato duplo" do arquivista Theo Wuttke -mais conhecido como Fonty, por conta de sua paixão por Fontane- e de sua Sombra Diuturna, o espião Talhover, que duplica anagramaticamente a figura do espião oitocentista Ludwig Hoftaller. Fonty foi informante de guerra e co-piloto da Luftwaffe, mas também ajudou a Resistência francesa; há muitos anos trabalha arquivando processos na Casa dos Ministérios, hoje sede da Sociedade Fiduciária (Treuhand).
Fonty e Talhover formam um par indissolúvel, como Holmes e Watson, ou Vladimir e Estragon, ou, num exemplo mais próximo, Mason e Dixon (no novo romance de Thomas Pynchon). Mas o que é indissolúvel, sugerindo "sempre novos esboços", assume, em Grass, conotações entre alegóricas e políticas. A traição, para ele, é "uma parcela integral da condição alemã" ("The Times", 21/6/95).
No romance, como em seus desenhos e gravuras (Grass é um artista plástico experiente), a atenção mais delicada ao detalhe pode gerar resultados monstruosos, como bem apontou Michael Hamburger ("The European Magazine", 24-30/8/95). Certa tendência à parábola, explorada ao extremo por um cineasta como Volker Schlondorf ("O Tambor"), se vê contrabalançada, agora, pela simples massa de palavras, a enxurrada de conversa da qual vão emergindo personagens e idéias. Curiosamente, a prosa de Grass, como a de seu ancestral Fontane, se afasta da referência direta.
Fredric Jameson exagera ao sugerir que "Um Campo Vasto" possa atingir, no próximo meio século, uma condição de prestígio e influência comparável à de "Dr. Faustus", de Thomas Mann, nesses últimos 50 anos ("London Review of Books", 17/10/96). Mas tem razão ao apontar as formas de representação indireta da experiência -no caso, da vida na Alemanha Oriental- como uma realização suprema de Grass, uma capacidade única de "fazer com que os recessos íntimos da mente (e da sensibilidade) venham à tona na linguagem, na esfera pública".
"No final, um velho morre e dois jovens se casam, e isso é mais ou menos tudo, num livro de 500 páginas", comenta Fonty sobre "Der Stechlin". A trama deste livro é diferente, mas poderia ser resumida numa frase do mesmo tipo. O livro diz mais, porém, sobre esse país "no qual Buchenwald estará sempre perto de Weimar".
A despeito da resposta irada de boa parte dos resenhadores, o livro de Grass é menos cheio de certezas e mais rico de ambiguidades do que parece. O próprio título, que vem do "Effi Briest" de Fontane ("Isto é um campo vasto demais para se chegar a uma conclusão"), ecoa por todo o romance espalhando ironia e incerteza: "A verdade é um campo vasto", "nosso material se espalha por um campo vasto demais", "a culpa é um campo vasto", "o casamento é um campo vasto". Como diz Fonty, num de seus discursos caseiros, "permanecer cético é melhor do que se tornar cínico", lição que vale para a leitura do livro também.
A leitura do livro em português acarreta problemas de outra natureza. O que fazer frente a uma frase como esta: "Se não fosse a idolatria da honra, Crampas ainda estaria vivo"; ou esta, na voz de Fonty: "Eu queria alguma coisa escocesa... deve ter um toque escocês"? Para quem leu "Effi Briest" e conhece a biografia de Fontane, as frases são cheias de significado. Mas será que existem no brasil 350 leitores representativos dos 350 mil que compraram o livro na Alemanha, onde Fontane é tão conhecido como Machado de Assis entre nós? Será que há leitores capazes de se orientar pela floresta de referências a Hauptmann, Müller, Celan, Bachman ou Hrabal? E não é disso mesmo -da dificuldade de se orientar, agora, nesse mundo- que o livro trata? A boa tradução de Lya Luft também não pode fazer nada diante das sutilezas da linguagem coloquial prussiana ou berlinense, ilegíveis noutra língua. O esforço de avançar por essas 612 páginas não é pequeno; e a recompensa pode não estar à altura da energia gasta.
"A era das belas frases acabou", dizia Fontane, citado por Fonty. A implicação era a de que agora chegava o tempo da franqueza. Franqueza e beleza vão se tramando aqui, suspensas um pouco acima do chão da literatura, espraiadas em "monstros verbais genitivamente encadeados". O par Fonty/Talhover se deixa dobrar na sombra do próprio autor e de cada leitor desse livro sem nenhuma alegria. Agora que acabou "todo o alarido repugnante do triunfalismo" ("Losses"), um livro assim vem, quem sabe, criar seus leitores num outro espaço.
Mas "Um Campo Vasto " é um campo vasto demais, por enquanto, para se chegar a uma conclusão; e só a passagem do tempo poderá ensinar se o romance de Grass é um resgate ou uma perda, uma nomeação infinita, ou uma obsessão vazia. Enquanto isso, "os dois amargurados poetas, para quem o mundo barulhento lá fora envenenava a poesia... procuravam consolo nessas historinhas e outras mais..."


Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), autor de "Ironias da Modernidade" (Ática) e organizador de "Riverrun - Ensaios sobre James Joyce" (Imago), entre outros.



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