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A memória ficcional de Pedro Nava
VILMA ARÊAS
especial para a Folha
Antes de mais nada devo dizer
que o ensaio de Joaquim Alves de
Aguiar possui um tom especial
que pode interessar vivamente
(pelo menos a mim interessa),
pois, escrevendo sobre um "texto
da experiência", isto é, o memorialismo de Nava, o ensaísta partilha com ele o mesmo método, que
consiste em "ordenar de um modo novo coisas que em algum momento foram vivas". Essa escolha
exige afastamento do objeto para
que se exerça o espírito crítico.
Mas aí é que está a graça, ou o
grão de sal, pois o distanciamento,
imprescindível para se alcançar o
que se oculta como objetividade,
isto é, para interpretar e não apenas descrever, vem colorido pela
subjetividade do ensaísta. Lendo
Joaquim, sabemos do que gosta e
não gosta, com o que se irrita, o
que o desconsola ou anima. Embora de naturezas diversas, há um
"tremblor crítico" tão estimulante quanto o decantado "tremblor poético". Isto posto, vamos
ao livro.
Confessadamente o ensaísta não
abandona as linhas de força anteriormente traçadas por Antonio
Candido e Davi Arrigucci Jr., que,
em ensaios notáveis sobre Nava,
estabeleceram os aspectos fundantes dessa prosa: a transfiguração que o tratamento ficcional imprime à narrativa, abrindo-se esta
do núcleo biográfico a esferas de
grande generalidade; seus recursos de expressão e estruturação; a
complexidade da efabulação, que
inclui gêneros diversos, ficcionais
ou não; e suas matrizes textuais.
Esses são pontos sensíveis no ensaio de Aguiar, que não obstante
recorta de forma distinta o mesmo
material: espacializa o tempo,
obedecendo à interdependência
dos dois conceitos e, dividindo-o
em quatro espaços (casa-escola-trabalho-rua), retraça o caminho do narrador-Nava.
Com isso, Aguiar lê as memórias
como um romance de formação,
correspondendo os espaços a estações da vida: infância, adolescência, juventude e maturidade. Como não poderia deixar de ser, a
morte assombra esses lugares, encontrando no baú (de ossos) sua
metáfora mais fiel. Este seria o eixo estruturante da obra, vazada
sempre na exuberância barroca de
um estilo que visivelmente incomoda o ensaísta ("ao cabo da leitura, ficamos com a impressão de
que a obra poderia ter resultado
mais enxuta" ou "seu estilo exuberante nem sempre consegue suprir o desinteresse da matéria").
A OBRA
Espaços da Memória - Joaquim Aguiar. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374,
6º andar, Cidade Universitária,
CEP 05508-900, SP, tel.
011/813-8837). 224 págs. R$
15,00.
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A divisão espacial aparentemente sumária está entretanto longe
disso.O ensaísta não esquece matizes da preparação intelectual do
escritor, seu equilíbrio tenso entre
memória e esquecimento, a relação de mão dupla entre médico e
memorialista, o convívio com as
artes plásticas e com a poesia, recursos modernos de composição
aliados a antigos. Da casa à rua,
mais do que acompanharmos o
desdobramento de uma vida particular, compreendemos de modo
exemplar a formação do "homem
burguês" tupiniquim que, nas estruturas selvagens do Brasil, nada
como peixe n'água, apesar de alguns aborrecimentos.
Ousaria dizer que se localiza aí a
tensão mais aguda do ensaio e o
mal-estar do analista: de um lado,
Joaquim percebe seu autor como
um artista excepcional, de outro,
surpreende o homem que se solidariza com valores às vezes discutíveis, sem maiores contradições.
Numa interpretação sofisticada,
Aguiar vê nesse apaziguamento a
causa de certos traços estilísticos
como "a paixão de aumentar o
miúdo". Tendo-se Nava em alta
conta, "a viagem até as origens
serve para mostrar um traço de
distinção que permanece, não
obstante a decadência da estirpe".
Podemos reclamar que o ensaísta não se interessou em entrar na
roda da discussão sobre o lugar do
intelectual no jogo das classes, sua
natureza cambiante e contraditória tão bem analisada por tantos
ensaístas. Não entrou porque não
quis, pois não lhe falta competência. Quanto a Nava, esta é uma boa
briga a que muitos não se furtarão
e que pode vaticinar vida longa e
animada a esses "Espaços".
Vilma Arêas é professora de literatura brasileira da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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