São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

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A memória ficcional de Pedro Nava

VILMA ARÊAS
especial para a Folha

Antes de mais nada devo dizer que o ensaio de Joaquim Alves de Aguiar possui um tom especial que pode interessar vivamente (pelo menos a mim interessa), pois, escrevendo sobre um "texto da experiência", isto é, o memorialismo de Nava, o ensaísta partilha com ele o mesmo método, que consiste em "ordenar de um modo novo coisas que em algum momento foram vivas". Essa escolha exige afastamento do objeto para que se exerça o espírito crítico.
Mas aí é que está a graça, ou o grão de sal, pois o distanciamento, imprescindível para se alcançar o que se oculta como objetividade, isto é, para interpretar e não apenas descrever, vem colorido pela subjetividade do ensaísta. Lendo Joaquim, sabemos do que gosta e não gosta, com o que se irrita, o que o desconsola ou anima. Embora de naturezas diversas, há um "tremblor crítico" tão estimulante quanto o decantado "tremblor poético". Isto posto, vamos ao livro.
Confessadamente o ensaísta não abandona as linhas de força anteriormente traçadas por Antonio Candido e Davi Arrigucci Jr., que, em ensaios notáveis sobre Nava, estabeleceram os aspectos fundantes dessa prosa: a transfiguração que o tratamento ficcional imprime à narrativa, abrindo-se esta do núcleo biográfico a esferas de grande generalidade; seus recursos de expressão e estruturação; a complexidade da efabulação, que inclui gêneros diversos, ficcionais ou não; e suas matrizes textuais. Esses são pontos sensíveis no ensaio de Aguiar, que não obstante recorta de forma distinta o mesmo material: espacializa o tempo, obedecendo à interdependência dos dois conceitos e, dividindo-o em quatro espaços (casa-escola-trabalho-rua), retraça o caminho do narrador-Nava.
Com isso, Aguiar lê as memórias como um romance de formação, correspondendo os espaços a estações da vida: infância, adolescência, juventude e maturidade. Como não poderia deixar de ser, a morte assombra esses lugares, encontrando no baú (de ossos) sua metáfora mais fiel. Este seria o eixo estruturante da obra, vazada sempre na exuberância barroca de um estilo que visivelmente incomoda o ensaísta ("ao cabo da leitura, ficamos com a impressão de que a obra poderia ter resultado mais enxuta" ou "seu estilo exuberante nem sempre consegue suprir o desinteresse da matéria").

A OBRA
Espaços da Memória - Joaquim Aguiar. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374, 6º andar, Cidade Universitária, CEP 05508-900, SP, tel. 011/813-8837). 224 págs. R$ 15,00.



A divisão espacial aparentemente sumária está entretanto longe disso.O ensaísta não esquece matizes da preparação intelectual do escritor, seu equilíbrio tenso entre memória e esquecimento, a relação de mão dupla entre médico e memorialista, o convívio com as artes plásticas e com a poesia, recursos modernos de composição aliados a antigos. Da casa à rua, mais do que acompanharmos o desdobramento de uma vida particular, compreendemos de modo exemplar a formação do "homem burguês" tupiniquim que, nas estruturas selvagens do Brasil, nada como peixe n'água, apesar de alguns aborrecimentos.
Ousaria dizer que se localiza aí a tensão mais aguda do ensaio e o mal-estar do analista: de um lado, Joaquim percebe seu autor como um artista excepcional, de outro, surpreende o homem que se solidariza com valores às vezes discutíveis, sem maiores contradições.
Numa interpretação sofisticada, Aguiar vê nesse apaziguamento a causa de certos traços estilísticos como "a paixão de aumentar o miúdo". Tendo-se Nava em alta conta, "a viagem até as origens serve para mostrar um traço de distinção que permanece, não obstante a decadência da estirpe".
Podemos reclamar que o ensaísta não se interessou em entrar na roda da discussão sobre o lugar do intelectual no jogo das classes, sua natureza cambiante e contraditória tão bem analisada por tantos ensaístas. Não entrou porque não quis, pois não lhe falta competência. Quanto a Nava, esta é uma boa briga a que muitos não se furtarão e que pode vaticinar vida longa e animada a esses "Espaços".


Vilma Arêas é professora de literatura brasileira da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).



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