São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

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George Orwell por Otavio Frias Filho

Uma questão de classe

Sobre a oportunidade desta reedição do clássico estudo atribuído a Emmanuel Goldstein, "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico", basta dizer que ela preenche literalmente uma lacuna. Durante gerações, tudo o que se conhecia daquela obra eram trechos, pinçados pelo escritor George Orwell e transcritos em seu romance "1984".
O livro mesmo permaneceu envolto nas brumas da clandestinidade e, mais tarde, do simples esquecimento.
Houve, decerto, outras edições do ensaio, mas que circularam em condições precárias e sob o mais estrito sigilo, naquelas décadas terríveis da segunda metade do século 20. Se algum desses exemplares ainda existe, é relíquia pessoal de colecionador. Do volume não constará o nome do editor, nem do autor. Muito se tem especulado sobre a identidade de Goldstein.
Teria sido ele o rival derrotado pelo Grande Irmão nas lutas pelo poder, convertido depois em líder da Fraternidade, organização subversiva cuja existência seria tão duvidosa quanto a de seu fantasmagórico chefe? Essa a versão oficial, o que parece suficiente para desacreditá-la.
O verdadeiro autor seria porventura o agente O'Brien, arguto intelectual a serviço da Polícia do Pensamento, que Orwell descreve em seu livro? Seria talvez o próprio Grande Irmão, interessado em forjar, com seu doentio senso de humor, um inimigo imaginário que justificasse a mais total tirania?

Dissidências contínuas
Se o pensamento de Goldstein agora se revela ao leitor ávido por compreender melhor o sombrio século 20, sua identidade permanece um mistério.
Chegou-se a especular que ele seria Leon Trótski, literato e revolucionário russo assassinado a mando de Stálin em 1940. Hipótese descabida, pois há sólidas razões para estabelecer que o livro de Goldstein foi escrito em data nunca anterior a 1948.
Não será exagero afirmar que as passagens transcritas por Orwell oferecem apenas um vislumbre do ambicioso panorama que a filosofia da história de Goldstein pretende descortinar.
Em resumo, ele diz que as sociedades humanas sempre estiveram divididas em três classes -alta, média e baixa-, sendo seu antagonismo irreconciliável. De tempos em tempos a classe média depõe a alta e toma seu lugar. Mas logo surge uma dissidência, uma nova classe média, destinada a depor a alta e assim sucessivamente.
Com o advento da máquina, pela primeira vez a humanidade passou a dispor de meios para garantir subsistência a todos. Estava aberta a possibilidade de abolição das classes sociais. A classe que assumira o poder no século 20 em nome do proletariado precisava, portanto, de uma estratégia que perpetuasse a miséria da maioria, para perpetuar também seu domínio sobre as demais classes. Essa estratégia foi a da guerra sem fim.
Três potências repartem o globo e se combatem de forma tão permanente quanto fútil, pois nenhuma pode nem deseja vencer. O propósito é justificar o Estado totalitário vigente em cada uma delas. Na base se acham os "proles", proletários tornados párias. Uma camada acima, os membros do Partido Externo, que vivem no limiar da miséria, sob disciplina e vigilância implacáveis. No topo, o Partido Interno, uma elite privilegiada que governa em nome do Grande Irmão.
É possível que até mesmo o ditador fosse figura inventada pela propaganda, já que a essência do regime era seu caráter coletivo e impessoal. Pelo uso científico da mentira e da intimidação, pelo controle dos comportamentos e pela manipulação até da linguagem, o Partido se tornara indestrutível. O enfoque do livro é analítico, mas o tom é de um extremo pessimismo, admitindo como única esperança, ainda assim remota, que algum dia os "proles" viessem a se revoltar.

Pensamento marxista
No livro de Goldstein convergem e se entrelaçam as correntes intelectuais que convulsionaram o século 20. A influência de sociólogos conservadores como Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto fica patente na sua versão peculiar de "circulação de elites". Já a ditadura do Partido parece inspirada nas concepções de Robert Michels.
Mas Goldstein, por dissidente que tenha sido, pensa como marxista. Adota o postulado de que a luta de classes é o motor da história. Contra Malthus e como Marx, ele acredita que a tecnologia seria capaz de gerar abundância irrestrita de recursos e prover toda a população. Sua "guerra permanente" é tributária de teóricos do imperialismo, como Lênin e o próprio Trótski.
Conforme sabemos, porém, o inexpugnável edifício descrito por nosso autor ruiu num sopro. O tempo demonstrou que a perenidade do Partido e as demais profecias de Goldstein estavam redondamente equivocadas. O Leviatã é um animal enjaulado, a liberdade voltou, o mundo prospera. Influente no passado a ponto de ser referida simplesmente como "o Livro", sua imaginativa obra fica hoje relegada à galeria de excentricidades de um século aberrante.
Em nossos dias, ninguém mais está sob vigilância ou tem seus dados pessoais monitorados por alguma entidade invisível. Não existem blocos geopolíticos em confronto permanente, nem alguma rede clandestina dedicada a destruir as instituições em escala mundial.
A propaganda e a televisão foram banidas de forma espontânea. Toda a população do planeta vive em condições adequadas, e os governantes já não mentem mais.


OTAVIO FRIAS FILHO é diretor de Redação da Folha.


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