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George Orwell por Otavio Frias Filho
Uma questão de classe
Sobre a oportunidade
desta reedição do
clássico estudo atribuído a Emmanuel
Goldstein, "Teoria e
Prática do Coletivismo Oligárquico", basta dizer que ela
preenche literalmente uma lacuna. Durante gerações, tudo o
que se conhecia daquela obra
eram trechos, pinçados pelo escritor George Orwell e transcritos em seu romance "1984".
O livro mesmo permaneceu
envolto nas brumas da clandestinidade e, mais tarde, do
simples esquecimento.
Houve, decerto, outras edições do ensaio, mas que circularam em condições precárias e
sob o mais estrito sigilo, naquelas décadas terríveis da segunda metade do século 20. Se algum desses exemplares ainda existe, é relíquia pessoal de colecionador. Do volume não
constará o nome do editor,
nem do autor.
Muito se tem especulado sobre a identidade de Goldstein.
Teria sido ele o rival derrotado pelo Grande Irmão nas lutas
pelo poder, convertido depois
em líder da Fraternidade, organização subversiva cuja existência seria tão duvidosa quanto a de seu fantasmagórico chefe? Essa a versão oficial, o que
parece suficiente para desacreditá-la.
O verdadeiro autor seria porventura o agente O'Brien, arguto intelectual a serviço da Polícia do Pensamento, que Orwell
descreve em seu livro? Seria
talvez o próprio Grande Irmão,
interessado em forjar, com seu
doentio senso de humor, um
inimigo imaginário que justificasse a mais total tirania?
Dissidências contínuas
Se o pensamento de Goldstein agora se revela ao leitor
ávido por compreender melhor
o sombrio século 20, sua identidade permanece um mistério.
Chegou-se a especular que ele
seria Leon Trótski, literato e revolucionário russo assassinado
a mando de Stálin em 1940. Hipótese descabida, pois há sólidas razões para estabelecer que
o livro de Goldstein foi escrito
em data nunca anterior a 1948.
Não será exagero afirmar que
as passagens transcritas por
Orwell oferecem apenas um
vislumbre do ambicioso panorama que a filosofia da história
de Goldstein pretende descortinar.
Em resumo, ele diz que as sociedades humanas sempre estiveram divididas em três classes
-alta, média e baixa-, sendo
seu antagonismo irreconciliável. De tempos em tempos a
classe média depõe a alta e toma seu lugar. Mas logo surge
uma dissidência, uma nova
classe média, destinada a depor
a alta e assim sucessivamente.
Com o advento da máquina,
pela primeira vez a humanidade passou a dispor de meios para garantir subsistência a todos. Estava aberta a possibilidade de abolição das classes sociais. A classe que assumira o
poder no século 20 em nome do
proletariado precisava, portanto, de uma estratégia que perpetuasse a miséria da maioria,
para perpetuar também seu domínio sobre as demais classes.
Essa estratégia foi a da guerra
sem fim.
Três potências repartem o
globo e se combatem de forma
tão permanente quanto fútil,
pois nenhuma pode nem deseja
vencer. O propósito é justificar
o Estado totalitário vigente em
cada uma delas. Na base se
acham os "proles", proletários
tornados párias. Uma camada
acima, os membros do Partido
Externo, que vivem no limiar
da miséria, sob disciplina e vigilância implacáveis. No topo, o
Partido Interno, uma elite privilegiada que governa em nome
do Grande Irmão.
É possível que até mesmo o
ditador fosse figura inventada
pela propaganda, já que a essência do regime era seu caráter coletivo e impessoal. Pelo
uso científico da mentira e da
intimidação, pelo controle dos
comportamentos e pela manipulação até da linguagem, o
Partido se tornara indestrutível. O enfoque do livro é analítico, mas o tom é de um extremo
pessimismo, admitindo como
única esperança, ainda assim
remota, que algum dia os "proles" viessem a se revoltar.
Pensamento marxista
No livro de Goldstein convergem e se entrelaçam as correntes intelectuais que convulsionaram o século 20. A influência
de sociólogos conservadores
como Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto fica patente na sua
versão peculiar de "circulação
de elites". Já a ditadura do Partido parece inspirada nas concepções de Robert Michels.
Mas Goldstein, por dissidente que tenha sido, pensa como
marxista. Adota o postulado de
que a luta de classes é o motor
da história. Contra Malthus e
como Marx, ele acredita que a
tecnologia seria capaz de gerar
abundância irrestrita de recursos e prover toda a população.
Sua "guerra permanente" é tributária de teóricos do imperialismo, como Lênin e o próprio
Trótski.
Conforme sabemos, porém, o
inexpugnável edifício descrito
por nosso autor ruiu num sopro. O tempo demonstrou que
a perenidade do Partido e as demais profecias de Goldstein estavam redondamente equivocadas. O Leviatã é um animal enjaulado, a liberdade voltou, o
mundo prospera. Influente no
passado a ponto de ser referida
simplesmente como "o Livro",
sua imaginativa obra fica hoje
relegada à galeria de excentricidades de um século aberrante.
Em nossos dias, ninguém
mais está sob vigilância ou tem
seus dados pessoais monitorados por alguma entidade invisível. Não existem blocos geopolíticos em confronto permanente, nem alguma rede clandestina dedicada a destruir as
instituições em escala mundial.
A propaganda e a televisão foram banidas de forma espontânea. Toda a população do planeta vive em condições adequadas, e os governantes já não
mentem mais.
OTAVIO FRIAS FILHO é diretor de Redação da
Folha.
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