São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

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André Gide por Silviano Santiago

Clima de dança

O resumo de "Os Moedeiros Falsos" (1926), de André Gide, virou lugar-comum na crítica literária. O romancista escreve o livro que deveria ter sido escrito por Édouard, seu personagem. O romance inacabado de Édouard é apenas parte do romance acabado de Gide, mas ambos levam o mesmo título.
Por meio de Édouard, o romancista dramatiza os percalços e frustrações do escritor moderno.
O lugar-comum não revela o desígnio maior do projeto gidiano. No embate entre a concepção e a realização da obra literária, sobressai a noção de sacrifício. Os impasses na criação sabotam a ambição do artista.
A escrita romanesca oscila entre o possível e o factível. É desastre. Abandonam-se anotações, projetos e planos. Descobrem-se ou se redescobrem soluções pobres e rentáveis.
Afinal, a escrita romanesca é Ícaro: "Quis subir muito alto e contou demais com as próprias forças". É fracasso. Quando o crítico Guy Michaud comenta as primeiras páginas de "Os Moedeiros Falsos" escritas por Édouard, observa que o personagem está apenas "fazendo um pastiche de Gide".
Fracasso dos dois?
Por terem julgado que o resultado final se perde entre extremos, alguns críticos consideraram "Os Moedeiros Falsos" um romance fracassado ("manqué"). Gide reagiu: "Dizia-se a mesma coisa de "A Educação Sentimental", de Flaubert. O que hoje se deprecia no livro serão exatamente as suas qualidades". Comenta Claude-Edmonde Magny: "Não se estranhe que romancistas conscientes terminem sempre num beco sem saída".

Heráldica literária
Do ponto de vista retórico, a estrutura de "Os Moedeiros Falsos" se inspira -e desde 1891 Gide estava consciente disso- na composição de brasões. A peça de nobreza pode trazer no seu interior, em miniatura, o desenho global. O todo se confunde com a parte. A parte se confunde com o todo. Questão de perspectiva. Em heráldica, a técnica se chama "em abismo".
Em retórica pop, o procedimento se encontra na lata de aveia Quaker. Um religioso vestido a caráter mostra uma lata de aveia. Nesta, está estampado um religioso que mostra a mesma lata de aveia. E assim infinitamente.
A estrutura em abismo é comum nas obras de arte do Ocidente. Apenas os historiadores a desconheciam até a anotação de Gide no próprio diário íntimo. Lembremos alguns exemplos. "Hamlet", de Shakespeare, em que há uma peça dentro da peça, "As Meninas", de Velásquez, em que a pintura retrata o ato de pintar, e ainda "O Primo Basílio", em que o personagem Ernestinho escreve uma peça sobre adultério, em tudo semelhante à trama criada por Eça de Queirós.
Em todas as obras citadas ressalte-se um fascinante jogo de espelhos. Obras em aberto? Obras reduplicadas? Umberto Eco e Michel Foucault serão sensíveis a elas e semelhantes. Como disse Guimarães Rosa: "Através dos espelhos parece que o tempo muda de direção e de velocidade".
Os efeitos de profundidade não se encontram na narrativa intimista, em primeira pessoa, típica dos "romans d'analyse" (romances de análise psicológica), cuja tradição remonta ao célebre "A Princesa de Clèves" (1678). Advêm da multiplicidade de situações semelhantes, da repetição de uma mesma cena ou de um mesmo episódio e ainda de personagens análogos.
Nas duplicações operadas pelos espelhamentos, matizes distintos e enriquecedores da prosa aparecem ao leitor. A profundidade nasce dos reflexos de uma narrativa sobre ela mesma, de um personagem sobre ele mesmo, de um ponto de vista sobre outro semelhante. Enfim, a profundidade depende da repetição em diferença, como no romance "O Ciúme" (1957), de Alain Robbe-Grillet.
Charles Du Bos foi o crítico mais contundente dessa estética. Apelou à distinção entre "complexidade" (etimologia "plectere", tecer) e "complicação" (etimologia "plicare", dobrar), para chegar à conclusão de que o autor de "Os Moedeiros Falsos" não era um romancista complexo, apenas complicado. Cheio de dobras. Barroco, diria Gilles Deleuze.
Uma visão menos parcial da questão nos é dada por Magny: "Uma vez mais, Gide manifesta essa "leveza" quase física, de que falou Ramon Fernandez, e a que ele próprio, em algum lugar, chama de sua "elasticidade". Depois dos contatos brutais com a vida, é ela que o faz recomeçar, sem nunca explorar a fundo -qualquer que seja a ocasião oferecida- as profundezas nas quais não conseguiu se manter."
"Aliás, uma parte do encanto de "Os Moedeiros Falsos" vem desse clima superficial, e Gide certamente desejou -entre outras coisas- escrever um romance dançante, saltitante, em suma, um romance-lúdico."


SILVIANO SANTIAGO é crítico literário, autor de, entre outros livros, "As Raízes e o Labirinto da América Latina" (ed. Rocco).


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