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André Gide por Silviano Santiago
Clima de dança
O resumo de "Os
Moedeiros Falsos"
(1926), de André
Gide, virou lugar-comum na crítica
literária. O romancista escreve
o livro que deveria ter sido escrito por Édouard, seu personagem. O romance inacabado
de Édouard é apenas parte do
romance acabado de Gide, mas
ambos levam o mesmo título.
Por meio de Édouard, o romancista dramatiza os percalços e frustrações do escritor
moderno.
O lugar-comum não revela o
desígnio maior do projeto gidiano. No embate entre a concepção e a realização da obra literária, sobressai a noção de sacrifício. Os impasses na criação
sabotam a ambição do artista.
A escrita romanesca oscila
entre o possível e o factível. É
desastre. Abandonam-se anotações, projetos e planos. Descobrem-se ou se redescobrem
soluções pobres e rentáveis.
Afinal, a escrita romanesca é
Ícaro: "Quis subir muito alto e
contou demais com as próprias
forças". É fracasso. Quando o
crítico Guy Michaud comenta
as primeiras páginas de "Os
Moedeiros Falsos" escritas por
Édouard, observa que o personagem está apenas "fazendo
um pastiche de Gide".
Fracasso dos dois?
Por terem julgado que o resultado final se perde entre
extremos, alguns críticos consideraram "Os Moedeiros Falsos" um romance fracassado
("manqué"). Gide reagiu: "Dizia-se a mesma coisa de "A Educação Sentimental", de Flaubert. O que hoje se deprecia no livro serão exatamente as suas qualidades". Comenta Claude-Edmonde Magny: "Não se estranhe
que romancistas conscientes
terminem sempre num beco
sem saída".
Heráldica literária
Do ponto de vista retórico, a
estrutura de "Os Moedeiros
Falsos" se inspira -e desde
1891 Gide estava consciente
disso- na composição de brasões. A peça de nobreza pode
trazer no seu interior, em miniatura, o desenho global. O todo se confunde com a parte. A
parte se confunde com o todo.
Questão de perspectiva. Em
heráldica, a técnica se chama
"em abismo".
Em retórica pop, o procedimento se encontra na lata de
aveia Quaker. Um religioso vestido a caráter mostra uma lata
de aveia. Nesta, está estampado
um religioso que mostra a mesma lata de aveia.
E assim infinitamente.
A estrutura em abismo é comum nas obras de arte do Ocidente. Apenas os historiadores
a desconheciam até a anotação
de Gide no próprio diário íntimo. Lembremos alguns exemplos. "Hamlet", de Shakespeare, em que há uma peça dentro da peça, "As Meninas", de Velásquez, em que a pintura retrata o ato de pintar, e ainda "O
Primo Basílio", em que o personagem Ernestinho escreve
uma peça sobre adultério, em
tudo semelhante à trama criada por Eça de Queirós.
Em todas as obras citadas
ressalte-se um fascinante jogo
de espelhos. Obras em aberto?
Obras reduplicadas? Umberto
Eco e Michel Foucault serão
sensíveis a elas e semelhantes.
Como disse Guimarães Rosa:
"Através dos espelhos parece
que o tempo muda de direção e
de velocidade".
Os efeitos de profundidade
não se encontram na narrativa
intimista, em primeira pessoa,
típica dos "romans d'analyse"
(romances de análise psicológica), cuja tradição remonta ao
célebre "A Princesa de Clèves"
(1678). Advêm da multiplicidade de situações semelhantes, da
repetição de uma mesma cena
ou de um mesmo episódio e
ainda de personagens análogos.
Nas duplicações operadas
pelos espelhamentos, matizes
distintos e enriquecedores da
prosa aparecem ao leitor. A
profundidade nasce dos reflexos de uma narrativa sobre ela
mesma, de um personagem sobre ele mesmo, de um ponto de
vista sobre outro semelhante.
Enfim, a profundidade depende da repetição em diferença, como no romance "O Ciúme" (1957), de Alain Robbe-Grillet.
Charles Du Bos foi o crítico
mais contundente dessa estética. Apelou à distinção entre
"complexidade" (etimologia
"plectere", tecer) e "complicação" (etimologia "plicare", dobrar), para chegar à conclusão
de que o autor de "Os Moedeiros Falsos" não era um romancista complexo, apenas complicado. Cheio de dobras. Barroco,
diria Gilles Deleuze.
Uma visão menos parcial da
questão nos é dada por Magny:
"Uma vez mais, Gide manifesta essa "leveza" quase física,
de que falou Ramon Fernandez, e a que ele próprio, em algum lugar, chama de sua "elasticidade". Depois dos contatos brutais com a vida, é ela que o
faz recomeçar, sem nunca explorar a fundo -qualquer que
seja a ocasião oferecida- as
profundezas nas quais não conseguiu se manter."
"Aliás, uma parte do encanto
de "Os Moedeiros Falsos" vem
desse clima superficial, e Gide
certamente desejou -entre outras coisas- escrever um romance dançante, saltitante, em
suma, um romance-lúdico."
SILVIANO SANTIAGO é crítico literário, autor
de, entre outros livros, "As Raízes e o Labirinto
da América Latina" (ed. Rocco).
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