São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

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Italo Calvino por Ivo Barroso

História sem fim

Insatisfeito com a leitura das histórias lineares, você, leitor, vai ao restaurante "Le Vrai Gascon", na rue du Bac, 82, em Paris, e lá encontra um grupo onde estão seus velhos conhecidos Raymond Queneau, Georges Perec e Italo Calvino.
Como você, eles também estão interessados numa hipertextualidade que possa englobar todos os livros.
Queneau já dera um passo em direção a esse livro inexistente publicando, em 1947, seus "Exercícios de Estilo" [ed. Imago], em que apresenta a mesma história (curta) escrita de 99 formas diferentes.
O arrepiado cruzadista-enxadrista-palindromista Georges Perec terminou em 1978 seu livro "Vida, Modo de Usar" [Cia. das Letras], a que deu o subtítulo de "Romances", no qual explora uma estrutura intrincada de superposições e, ao mesmo tempo, se exercita nas inúmeras formas estilísticas da narrativa.

Não é bem assim
Estão quase chegando lá. Calvino publica, no ano seguinte, "Se um Viajante numa Noite de Inverno", em que essas experiências se sublimam: as narrativas têm início (nem sempre convencional), mas nunca chegam ao fim: elas se interrompem, se multiplicam, se diversificam, dando a impressão de que você está num labirinto por cuja entrada não passou e cuja saída jamais encontrará.
Que tal começar por aí?
Você inicia a leitura e logo descobre que não é bem esse o livro que você quer ler, e sim, o outro, homônimo, que o leitor do livro (também você) está lendo e se chama precisamente "Se um Viajante numa Noite de Inverno".
Embutido, encartado no livro homônimo de Calvino, é ele que você se dispõe a resenhar.
Para tanto, é preciso conhecer, além do estilo e da estrutura, pelo menos uma parte do assunto (já que é precipitado falar em enredo).
De início, você estranha que o título não seja "Se numa Noite de Inverno um Viajante" (ordem das palavras no original italiano) e fica se perguntando o porquê da inversão.
Logo percebe que esse livro-dentro-do-livro não difere muito de seu invólucro; como se, em sua infiltração, em sua inseminação, Calvino se valesse de uma técnica matriochka, de introduções subseqüentes da mesma coisa, de um jogo de espelhos que propiciasse uma reprodução infinita de imagens ou daquelas composições arbitrárias que surgem na cristalografia dos calidoscópios.

Trem que não vem
A partir de um início claro e preciso -no estilo antigo, mas que já se contamina, ao finalizar, das imprecisões do surreal-, você atravessa as cerca de 30 páginas iniciais em que se relata a chegada de misterioso personagem a uma estação ferroviária; ele deve trocar com outro passageiro (o qual não aparece) a maleta que arrasta até o bar da estação, onde um mafioso delegado o aconselha a tomar o próximo trem (que -o viajante sabe- não virá nem pára ali).
Sem mais, no livro de Calvino, a história é substituída (ou completada) por dez outras narrativas, de caráter e estilos diferentes, num efeito de protelação-Sherazade, prendendo sua atenção até o fim do volume, que termina com a menção de que o personagem principal (você) está acabando de ler o livro (que você está lendo agora).
Mas e o livro inexistente, aquele que é, de fato, o motivo de seu interesse, de sua análise, de sua resenha?
Não estando disponível em linguagem linear, cursiva, você só pode alcançá-lo mediante a virtualidade da telinha, clicando a profusão de links que lhe permitirá uma visão cosmológica do hipertexto, navegando por esse espaço cibernético em que estão disponíveis todas as coisas existentes e mesmo projetos e prospecções de itens ainda por vir.
Pois lá está: o viajante volta à estação puxando sua maleta; é uma noite de inverno, e, em vez do trem, surge um cavalo branco que conduz o novo paladino por um denso bosque até um castelo que dá refúgio a quantos a noite haja surpreendido no caminho. No salão, aquecido por enorme lareira, reina o silêncio e, ao que parece, o anfitrião é mudo.

Luneta invertida
Sobre a mesa oval, um baralho de cartas de tarô irá permitir ao viandante comunicar-se com seu hospedeiro. Este lhe ordena ir em busca das cidades invisíveis. A viagem segue sob a luz de um lácteo plenilúnio; a Lua prenhe está amojando, e seu ventre quase toca a crista das águas; basta uma simples escada para chegar a ela e ordenhá-la. Nosso audaz leva consigo uma luneta de tão grande alcance que lhe permitiria tocar os astros em redor.
Mas ele, insatisfeito, volta a lente ao contrário e se põe a observar as coisas ínfimas da Terra: os grãos de areia, as nervuras das folhas, os microrganismos que se contorcem... Analisando a precisão do estilo, a adequação vocabular ao espectro fabulatório das narrativas, você descobre que está diante de um rebento, ou seja, desse fruto embrionário que nasce abortado dentro de outro fruto. O livro virtual ainda inexistente, que lateja dentro desse livro atual de papel, é na verdade a gêmula, a plântula dos livros de Calvino. E, para resenhá-lo, seria preciso resenhá-los todos.


IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor, autor de "A Caça Virtual" (ed. Record).


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