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Philip Roth por Adriano Schwartz
Linguagem da carne
Se os tempos fossem
outros, mais amenos por aqui, ou se
estivéssemos em
outros lugares, sem
as censuras ou os atos institucionais tão usuais nestes intermináveis anos 60, talvez
se pudesse dizer que "Carnovsky", quarto livro do sr.
Nathan Zuckerman, é do
c***.
E a referência ao órgão sexual masculino, aqui pudicamente apenas sugerida, não
teria somente o seu sentido
vulgar, tão usual em conversas adolescentes ou discussões de botequim.
Existe na obra, afinal, uma
obsessão por essa parte do
corpo que faz com que ela tudo domine, transgredindo até
mesmo a posse suposta que o
autor tem de sua criação: este
não é, não pode ser, nunca será um romance do sr. Zuckerman; é um romance escrito
pelo sr. Zuckerman para a definitiva materialização do falo (transfiguração do silêncio
em fala), para a "carnalização" do c***.
A linguagem é carne.
"Não aguento a hipocrisia.
O pudor. A negação do c***. A
disparidade entre a vida que
eu vivi na esquina da rua, que
era sexo e punheta, e pensar o
tempo todo em b***, e as pessoas que dizem que não devia
ser assim. Como conseguir
uma -essa era a grande pergunta. Era a única pergunta.
Era a maior pergunta do
mundo. E ainda é."
Best-seller
Se os tempos fossem outros, menos dogmáticos, talvez se pudessem explorar as
relações existentes entre vida
e obra no texto sem ser acusado de fazer análise biográfica
a partir de premissas do século 19.
Quando foi lançado nos
EUA há poucos meses, "Carnovsky" virou instantaneamente best-seller, e seu criador, uma celebridade: para muita gente, a força principal
do livro está no fato de os
acontecimentos, o ambiente
e as relações sociais e religiosas do protagonista serem
muito parecidas com as do sr.
Nathan Zuckerman.
Para ele, isso é absurdo ("A
questão de que escrever seja
um ato de imaginação parece
deixar todo mundo perplexo
e furioso"), mesmo que seu
personagem tenha, ou pudesse ter, uma impressão distinta ("Para mim, é muito mais
interessante a literatura do
que a vida. Em primeiro lugar, porque possui uma forma
muito mais elegante; e porque é uma experiência muito
mais intensa").
Mas a verdade é que, a despeito dos perigos desse tipo
de crítica se reduzir a uma espécie de fofoca intelectual
ilustrada, com o instrumental
analítico adequado ela poderia (quem sabe daqui a 30 ou
40 anos...) adquirir grande
rendimento.
Realismo, adequação?
Se os tempos fossem outros, um comentarista não teria dito que "já os judeus representados em "Educação
Superior" [primeiro livro de
Zuckerman] eram deformados até à desumanização por
uma imaginação deliberadamente vulgar, indiferente à
exatidão social e às tendências da ficção realista (...)
Nunca tinham existido judeus como os de Zuckerman,
senão em caricaturas".
E também não seria tão dolorido que, logo no início deste romance, Gilbert Carnovksy, aos 14 anos, houvesse gritado à sua irmã, em meio a
uma discussão histérica na
qual ele procurava se desvencilhar de sua condição aparentemente incontornável de
minoria, que os judeus deveriam "enfiar no c*** o seu sofrimento histórico".
Estamos muito próximos
da tragédia para tratá-la desse jeito. Será, por outro lado,
que, ao refletir sobre uma
obra de arte, faz sentido pensar em "realismo" ou, mais
ainda, em "respeito" ou "adequação"?
Em resumo, se os tempos
fossem outros e eu fosse instado a contribuir com idéias a
respeito deste volume tão
inusitado, talvez fossem esses
os pontos (a erotização avassaladora, as relações complicadas entre a vida e a arte e as
condições de representação
de um controverso personagem judeu na literatura após
um evento traumático como a
Segunda Guerra Mundial) sobre os quais valesse a pena algum aprofundamento.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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