São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

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Philip Roth por Adriano Schwartz

Linguagem da carne

Se os tempos fossem outros, mais amenos por aqui, ou se estivéssemos em outros lugares, sem as censuras ou os atos institucionais tão usuais nestes intermináveis anos 60, talvez se pudesse dizer que "Carnovsky", quarto livro do sr. Nathan Zuckerman, é do c***.
E a referência ao órgão sexual masculino, aqui pudicamente apenas sugerida, não teria somente o seu sentido vulgar, tão usual em conversas adolescentes ou discussões de botequim.
Existe na obra, afinal, uma obsessão por essa parte do corpo que faz com que ela tudo domine, transgredindo até mesmo a posse suposta que o autor tem de sua criação: este não é, não pode ser, nunca será um romance do sr. Zuckerman; é um romance escrito pelo sr. Zuckerman para a definitiva materialização do falo (transfiguração do silêncio em fala), para a "carnalização" do c***.
A linguagem é carne.
"Não aguento a hipocrisia. O pudor. A negação do c***. A disparidade entre a vida que eu vivi na esquina da rua, que era sexo e punheta, e pensar o tempo todo em b***, e as pessoas que dizem que não devia ser assim. Como conseguir uma -essa era a grande pergunta. Era a única pergunta.
Era a maior pergunta do mundo. E ainda é."

Best-seller
Se os tempos fossem outros, menos dogmáticos, talvez se pudessem explorar as relações existentes entre vida e obra no texto sem ser acusado de fazer análise biográfica a partir de premissas do século 19.
Quando foi lançado nos EUA há poucos meses, "Carnovsky" virou instantaneamente best-seller, e seu criador, uma celebridade: para muita gente, a força principal do livro está no fato de os acontecimentos, o ambiente e as relações sociais e religiosas do protagonista serem muito parecidas com as do sr. Nathan Zuckerman.
Para ele, isso é absurdo ("A questão de que escrever seja um ato de imaginação parece deixar todo mundo perplexo e furioso"), mesmo que seu personagem tenha, ou pudesse ter, uma impressão distinta ("Para mim, é muito mais interessante a literatura do que a vida. Em primeiro lugar, porque possui uma forma muito mais elegante; e porque é uma experiência muito mais intensa").
Mas a verdade é que, a despeito dos perigos desse tipo de crítica se reduzir a uma espécie de fofoca intelectual ilustrada, com o instrumental analítico adequado ela poderia (quem sabe daqui a 30 ou 40 anos...) adquirir grande rendimento.

Realismo, adequação?
Se os tempos fossem outros, um comentarista não teria dito que "já os judeus representados em "Educação Superior" [primeiro livro de Zuckerman] eram deformados até à desumanização por uma imaginação deliberadamente vulgar, indiferente à exatidão social e às tendências da ficção realista (...) Nunca tinham existido judeus como os de Zuckerman, senão em caricaturas".
E também não seria tão dolorido que, logo no início deste romance, Gilbert Carnovksy, aos 14 anos, houvesse gritado à sua irmã, em meio a uma discussão histérica na qual ele procurava se desvencilhar de sua condição aparentemente incontornável de minoria, que os judeus deveriam "enfiar no c*** o seu sofrimento histórico".
Estamos muito próximos da tragédia para tratá-la desse jeito. Será, por outro lado, que, ao refletir sobre uma obra de arte, faz sentido pensar em "realismo" ou, mais ainda, em "respeito" ou "adequação"?
Em resumo, se os tempos fossem outros e eu fosse instado a contribuir com idéias a respeito deste volume tão inusitado, talvez fossem esses os pontos (a erotização avassaladora, as relações complicadas entre a vida e a arte e as condições de representação de um controverso personagem judeu na literatura após um evento traumático como a Segunda Guerra Mundial) sobre os quais valesse a pena algum aprofundamento.


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.


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