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Ponto de Fuga
O império dos sentidos
"Império dos
Sonhos" abala uma convicção simples, mas tão falsa: a
de que a memória é constituída por experiências verdadeiras
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
É fácil encontrar nas obras
de arte, com mais evidência naquelas que desenvolvem narrativas, uma separação entre o que é real e o que não é. Ela deriva da experiência
mais imediata de cada um: este
copo d'água que a mão pega e
leva à boca é real; o copo d'água
desejado e imaginado não é
real; o copo d'água que aparece
no sonho também não.
Nas artes um copo d'água pode ser real, imaginado ou sonhado. Os cineastas sempre jogaram com tais definições: "Fellini Oito e Meio", de Fellini
[1920-93], é um exemplo vertiginoso dessa prática. Mas um
copo d'água real num quadro,
numa narração, num filme não
é de fato real, pois é impossível
beber dele.
No entanto o espectador assume sua realidade, e o distingue daquilo que aparece como
imaginado ou sonhado.
A arte é o que impõe uma ficção como realidade: eis uma
definição que teria agradado a
Magritte [1898-1967]. Ele pintou um cachimbo numa tela e
escreveu embaixo: "Isto não é
um cachimbo". O supremo ilusionismo dos artistas cria a
convicção do real.
Ela é percebida "em suspenso": o espectador se angustia,
se emociona porque acredita
que o copo é verdadeiro, que
pode conter veneno, que o herói da história pode beber, pode morrer.
Quando as luzes da sala se
acendem, tudo retorna para o
lugar certo: o copo foi "sentido"
como real durante o tempo do
filme, mas, depois, voltou para
o domínio da arte, do fictício.
O último filme de David
Lynch, "INLAND EMPIRE"
(assim, com maiúsculas, como
exige o diretor; no Brasil, o título "Império dos Sonhos" é poético, mas restrito) traz, entre
outras muitas coisas, uma experiência extrema sobre os instrumentos da criação cinematográfica como fabricantes de ficções.
Desagregar
Na trama de "Império dos
Sonhos", há um filme atual que
está sendo feito e um filme antigo que foi abortado. Ambos se
misturam, assim como a vida
"real" da atriz principal é levada a se misturar com a "ficção".
Não porque uma contamine a
outra, mas porque o cineasta
afirma, com insistência, que tudo é manipulação artística.
Ele não distancia o espectador da verdade emotiva contida
em cada cena, bem ao contrário. Atinge com isso uma camada muito profunda e incerta do
vivido e da memória em que a
ficção adquire existência.
"Império dos Sonhos" [que
estréia no Brasil em 2/11] abala
uma convicção simples, mas
tão falsa: a de que a memória é
constituída por experiências
verdadeiras. Como se o cérebro
fosse um receptor neutro; como se ele, continuamente, não
transformasse as sensações e
lembranças num nexo fictício.
Lynch expõe, ao contrário, o
descontínuo de percursos em
territórios interiores, descompassados, feito de tempos simultâneos, que encontram sua
coerência por trás da coerência,
além das razões lógicas. Como
um quebra-cabeça formando
figuras disparatadas em que o
sentido se encontrasse não numa aparência fácil, mas no encaixe das peças.
Fluxo
A metáfora do quebra-cabeça
é estática e, por isso, imperfeita. Seria necessário imaginar
um quebra-cabeça em que as
peças mudassem constantemente de forma, provocando
novos encaixes sem parar.
Caçada
Lynch costuma semear, e em
"Império dos Sonhos" sobretudo, signos, sinais, pistas. São intensos de poderes invisíveis, remetem-se uns aos outros, profetizam, anunciam, retornam
insistentes. Quanto mais aparecem, porém, menos revelam.
Porque seus sentidos não podem ser atingidos ou porque
não existem. O que termina
sendo, em fim de contas e de
metafísica, a mesma coisa.
jorgecoli@uol.com.br
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