São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

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Ponto de Fuga

O império dos sentidos



"Império dos Sonhos" abala uma convicção simples, mas tão falsa: a de que a memória é constituída por experiências verdadeiras

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

É fácil encontrar nas obras de arte, com mais evidência naquelas que desenvolvem narrativas, uma separação entre o que é real e o que não é. Ela deriva da experiência mais imediata de cada um: este copo d'água que a mão pega e leva à boca é real; o copo d'água desejado e imaginado não é real; o copo d'água que aparece no sonho também não.
Nas artes um copo d'água pode ser real, imaginado ou sonhado. Os cineastas sempre jogaram com tais definições: "Fellini Oito e Meio", de Fellini [1920-93], é um exemplo vertiginoso dessa prática. Mas um copo d'água real num quadro, numa narração, num filme não é de fato real, pois é impossível beber dele.
No entanto o espectador assume sua realidade, e o distingue daquilo que aparece como imaginado ou sonhado.
A arte é o que impõe uma ficção como realidade: eis uma definição que teria agradado a Magritte [1898-1967]. Ele pintou um cachimbo numa tela e escreveu embaixo: "Isto não é um cachimbo". O supremo ilusionismo dos artistas cria a convicção do real.
Ela é percebida "em suspenso": o espectador se angustia, se emociona porque acredita que o copo é verdadeiro, que pode conter veneno, que o herói da história pode beber, pode morrer.
Quando as luzes da sala se acendem, tudo retorna para o lugar certo: o copo foi "sentido" como real durante o tempo do filme, mas, depois, voltou para o domínio da arte, do fictício.
O último filme de David Lynch, "INLAND EMPIRE" (assim, com maiúsculas, como exige o diretor; no Brasil, o título "Império dos Sonhos" é poético, mas restrito) traz, entre outras muitas coisas, uma experiência extrema sobre os instrumentos da criação cinematográfica como fabricantes de ficções.

Desagregar
Na trama de "Império dos Sonhos", há um filme atual que está sendo feito e um filme antigo que foi abortado. Ambos se misturam, assim como a vida "real" da atriz principal é levada a se misturar com a "ficção".
Não porque uma contamine a outra, mas porque o cineasta afirma, com insistência, que tudo é manipulação artística.
Ele não distancia o espectador da verdade emotiva contida em cada cena, bem ao contrário. Atinge com isso uma camada muito profunda e incerta do vivido e da memória em que a ficção adquire existência.
"Império dos Sonhos" [que estréia no Brasil em 2/11] abala uma convicção simples, mas tão falsa: a de que a memória é constituída por experiências verdadeiras. Como se o cérebro fosse um receptor neutro; como se ele, continuamente, não transformasse as sensações e lembranças num nexo fictício.
Lynch expõe, ao contrário, o descontínuo de percursos em territórios interiores, descompassados, feito de tempos simultâneos, que encontram sua coerência por trás da coerência, além das razões lógicas. Como um quebra-cabeça formando figuras disparatadas em que o sentido se encontrasse não numa aparência fácil, mas no encaixe das peças.

Fluxo
A metáfora do quebra-cabeça é estática e, por isso, imperfeita. Seria necessário imaginar um quebra-cabeça em que as peças mudassem constantemente de forma, provocando novos encaixes sem parar.

Caçada
Lynch costuma semear, e em "Império dos Sonhos" sobretudo, signos, sinais, pistas. São intensos de poderes invisíveis, remetem-se uns aos outros, profetizam, anunciam, retornam insistentes. Quanto mais aparecem, porém, menos revelam.
Porque seus sentidos não podem ser atingidos ou porque não existem. O que termina sendo, em fim de contas e de metafísica, a mesma coisa.


jorgecoli@uol.com.br

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