São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Impregnado da leitura de Freud, Norbert Elias discutiu a passagem do padrão de comportamento medieval, expresso pela cortesia, para o de civilidade, durante o Renascimento e os tempos modernos

História das boas maneiras

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

As boas maneiras fazem parte da chamada "cultura das aparências", a que se referiu o historiador Peter Burke, em artigo publicado no Mais! de 16/ 10, tratando das vestimentas. O tema é vasto e comporta, entre outros tópicos, a análise de gestos, de falas, de atitudes adequadas à mesa de refeição, quase sempre estabelecendo um recorte de grupo ou de classe entre formas de comportamento refinados, comuns ou grosseiros.


Até o século 17, o garfo era ainda basicamente um artigo de luxo da classe alta


Fico aqui com as posturas adequadas à mesa, tomando como referência o livro iluminador do sociólogo alemão Norbert Elias, publicado em alemão, na Suíça, em 1939, e editado em português em 1990, com o título de "O Processo Civilizador" (ed. Jorge Zahar).
O propósito de Elias, como sabem os que leram sua obra, vai muito além do aspecto selecionado, pois constitui uma análise da passagem de um padrão de comportamento medieval, expresso pelo conceito de cortesia, para outro que ele rotula de civilidade, coincidente com o Renascimento e o surgimento dos tempos modernos.
Essa mudança, ao mesmo tempo reflexo e mola propulsora de novas aspirações e costumes, esteve confinada de início às classes privilegiadas, espraiando-se, pouco a pouco, para círculos sociais mais amplos.

Civilidade x saúde
Embora alterações de sensibilidade não possam ser datadas como batalhas ou a morte de reis, Elias localiza um momento de transição entre o que era considerado um comportamento adequado na Idade Média -ele mesmo em processo de mudança- e o que passaria a sê-lo na época moderna.
Trata-se da publicação em 1530 de um pequeno tratado, em latim, escrito por Erasmo de Roterdã com o título de "Da Civilidade nas Crianças". Ele trata de um tema que estava maduro para discussão, como demonstra o fato de que teve mais de 130 edições, sendo traduzido para o inglês, o alemão, o tcheco e o francês.
O comportamento conveniente à mesa tem um lugar especial no texto de Erasmo, destinado à boa educação de meninos nobres. Em muitas passagens, ao falar das boas maneiras, ele as contrapõe aos hábitos de um camponês: "Deixe para os camponeses enfiar os dedos no caldo" ou "mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês".
Embora prescreva uma série de regras da boa etiqueta, Erasmo surpreende pela ousadia ao criticar "os tolos que valorizam mais a civilidade do que a saúde", ao recomendar que os meninos "retenham os ventos à mesa, comprimindo a barriga" ou evitem vomitar, "quando é mais prejudicial reter o vômito na garganta do que lançá-lo em público".
A mudança que se estendeu e se consolidou ao longo do tempo, entre outros pontos, consistiu no uso, generalização ou mudança de função de instrumentos que funcionam como intermediários entre a boca e os alimentos: garfos, facas, colheres.
Até o século 17, o garfo era ainda basicamente um artigo de luxo da classe alta, feito quase sempre de prata ou de ouro.
A faca, pelo contrário, era muito utilizada, e a única antiga restrição a seu uso referia-se ao hábito de com ela limpar-se os dentes. Pouco a pouco, foi sendo domesticada, a princípio como uma marca distintiva, até chegar à aversão generalizada que provoca a visão de alguém introduzindo uma faca na boca.

Civilização e repressão
A partir desses exemplos, verificamos que, quando comparamos as maneiras à mesa mais comuns na Idade Média -mesmo sabendo-se que não se pode tomar esse longo período como um conjunto homogêneo- e as dos tempos modernos, destaca-se o maior controle emocional e corporal no último caso. Como nota Elias, bom conhecedor de Freud, o processo civilizador envolveu crescente repressão, característica que se estendeu a outros campos da vida social.
Com variações de país a país ou mesmo de região a região, Elias identifica uma curva geral, a partir da Idade Média. Primeiro, um certo clímax da sociedade feudal e cortês, assinalado pelo hábito de comer com as mãos. Em seguida, uma fase de movimento e mudança relativamente rápidos, abrangendo aproximadamente os séculos 16 a 18, na qual a compulsão por uma conduta tida como refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção.
Depois, uma fase que permanece no padrão atingido, mas em que vão se operando lentas mudanças.
Pelo menos duas questões significativas afloram no tratamento do tema. O processo civilizador, no exemplo das boas maneiras à mesa, representou um claro progresso? Como as boas maneiras não são um dado da natureza, que mudanças vêm se operando na sua importância e na sua forma?
Tendemos a responder afirmativamente à primeira pergunta. Montanhas de carne à mesa, dedos engordurados que se limpam nas toalhas, escarros e ventos nos parecem francamente inconvenientes. Mas, quando entramos no terreno do comparativo, fica difícil afirmar que culturas como a árabe ou a japonesa, que utilizam as mãos com tanta destreza e nos ensinam a fazê-lo, são inferiores à nossa.
Quanto à segunda questão, Elias aponta para o fato de que a mercantilização cada vez mais acentuada das relações humanas, com a conseqüente valorização de quem tem dinheiro, vem fazendo com que certos sinais distintivos de refinamento de grupo ou de classe percam importância. Talvez o que venha ocorrendo seja uma troca de sinais: por exemplo, as boas maneiras à mesa, que exigem aprendizado, tendem a ser superadas por signos mais visíveis, como a posse de carros de determinadas marcas, iates e outras grifes de luxo.

O animal e o prato
Outro aspecto que Elias assinala é o da crescente tendência a distanciar, no caso das carnes, a relação entre o animal vivo e o produto servido à mesa, como se um nada tivesse a ver com o outro. Mas há ainda muita gente que se delicia antegozando o prazer de trinchar um leitão ou um peixe de grandes proporções, estendido tristemente sobre a mesa. Numa nota pessoal, gostaria também, num futuro que não verei, que desaparecessem das nossas vistas as postas cruas de animais sacrificados, penduradas em ganchos nos açougues. Mas, como em matéria de sensibilidades o relativismo se impõe, talvez isso nunca venha a acontecer.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


Texto Anterior: Vidas secas
Próximo Texto: Fé e suspeita em Freud
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.