São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

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Ponto de Fuga

Além da lupa e do cachimbo


Sonho radical de um positivismo sem freios, diante de Sherlock Holmes ninguém pode ter segredos; todos revelam os recessos de uma subjetividade incapaz de se esconder


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Guy Ritchie foi marido de Madonna e dirigiu para ela "Destino Insólito" ("Swept Away", 2002). Os fãs da cantora, o público e a crítica não gostaram, embora o filme tenha certo encanto.
Seu atual "Sherlock Holmes" possui também "certo encanto". Momentos de luta, esplêndido cenário da Londres vitoriana, algumas passagens inertes, história obscura e retorcida. Estilo em malabarismos vistosos, faz pensar em Baz Luhrmann [diretor de "Moulin Rouge"], um Baz Luhrmann que fosse meio tímido, meio morno. É um filme de ação, não de dedução.
São fãs de Sherlock que, desta vez, se decepcionam. O detetive torna-se mais físico que mental e não tem a infalibilidade de seu modelo literário. Um dos fios mais interessantes na trama é o afeto que liga Holmes a Watson; seus poderes se abalam ao sentir-se abandonado porque o amigo vai se casar. Seria um belo filão (dependência e ciúmes entre homens), desde que explorado a fundo; desmontaria o princípio maior que impõe, com força, o personagem.
Todos os leitores de romances policiais se lembram do momento em que Sherlock e o dr. Watson se conhecem, no livro "Um Estudo em Vermelho" [de Arthur Conan Doyle]. Sem que nada aparentemente o indique, o detetive descobre de imediato que seu futuro comparsa esteve no Afeganistão.
São procedimentos divinatórios que fazem parte da mitologia do detetive e servem para surpreender, de tempos em tempos, de modo divertido, o leitor. No filme, porém, a máquina perturbada funciona mal. Durante a cena do jantar, em que Holmes deduz o passado da noiva de Watson, seu método termina em desastre.

Devassa
Infalibilidade é o atributo sem o qual Sherlock não existe. A sociedade industrial se quer ordenada e controlada. Nela, porém, crimes e transgressões se multiplicam. Em tal quadro, Sherlock Holmes provoca um primeiro sentimento, evidente, de segurança, e um segundo, íntimo, de desconforto.
Submetidos aos seus raciocínios, nenhuma ação, nenhum sentimento ou pensamento pode mais ficar escondido. Aquela mente superior pressupõe, ou antes, dispõe, um mundo sem segredos. Nada se oculta ao olhar de Sherlock.

Transparência
Sonho radical de um positivismo sem freios, diante de Holmes ninguém pode ter segredos. Todos revelam os recessos de uma subjetividade desvendada, incapaz de se esconder. O controle do detetive é implacável: Sherlock Holmes/Big Brother possui efetivamente imenso poder. Poder que emana não de um método, que é secundário, mas de uma inteligência, que é primordial.
Nesse sentido, Sherlock é claramente superior à polícia e a seus arquivos, seus sistemas classificatórios, seus métodos, dentro dos quais atuam vários agentes. No primeiro caso, mais vale a inteligência individual. No segundo, são os procedimentos, as técnicas de caráter objetivo que primam. A polícia chega até o crime; Sherlock vai além dele.

Volta
A lucidez racionalista de Holmes depende, porém, de seus lados obscuros. O filme não toca neste ponto. Conan Doyle, o inventor do personagem, sabe que não há luz sem sombra e que há um avesso e um direito no mundo vitoriano. O detetive não é só a máquina de deduzir: é humano e pode cair em depressão.
Busca então, do jeito que pode, um equilíbrio. Guy Ritchie, ainda mais tendo um ator com a biografia de Robert Downey Jr., poderia ter pensado nisso. Mas se esquece de que são tão importantes para os processos dedutivos de Sherlock Holmes tanto o rigor do raciocínio quanto o violino e a cocaína.

jorgecoli@uol.com.br


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