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Ponto de Fuga
Além da lupa e do cachimbo
Sonho radical de um positivismo sem freios, diante de Sherlock Holmes ninguém pode ter segredos; todos revelam os recessos
de uma subjetividade incapaz de se esconder
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Guy Ritchie foi marido de
Madonna e dirigiu para
ela "Destino Insólito"
("Swept Away", 2002). Os fãs
da cantora, o público e a crítica
não gostaram, embora o filme
tenha certo encanto.
Seu atual "Sherlock Holmes"
possui também "certo encanto". Momentos de luta, esplêndido cenário da Londres vitoriana, algumas passagens inertes, história obscura e retorcida. Estilo em malabarismos
vistosos, faz pensar em Baz
Luhrmann [diretor de "Moulin
Rouge"], um Baz Luhrmann
que fosse meio tímido, meio
morno. É um filme de ação, não
de dedução.
São fãs de Sherlock que, desta vez, se decepcionam. O detetive torna-se mais físico que
mental e não tem a infalibilidade de seu modelo literário.
Um dos fios mais interessantes na trama é o afeto que liga
Holmes a Watson; seus poderes se abalam ao sentir-se
abandonado porque o amigo
vai se casar. Seria um belo filão
(dependência e ciúmes entre
homens), desde que explorado
a fundo; desmontaria o princípio maior que impõe, com força, o personagem.
Todos os leitores de romances policiais se lembram do
momento em que Sherlock e o
dr. Watson se conhecem, no livro "Um Estudo em Vermelho"
[de Arthur Conan Doyle]. Sem
que nada aparentemente o indique, o detetive descobre de
imediato que seu futuro comparsa esteve no Afeganistão.
São procedimentos divinatórios que fazem parte da mitologia do detetive e servem para
surpreender, de tempos em
tempos, de modo divertido, o
leitor. No filme, porém, a máquina perturbada funciona
mal. Durante a cena do jantar,
em que Holmes deduz o passado da noiva de Watson, seu método termina em desastre.
Devassa
Infalibilidade é o atributo
sem o qual Sherlock não existe.
A sociedade industrial se quer
ordenada e controlada. Nela,
porém, crimes e transgressões
se multiplicam. Em tal quadro,
Sherlock Holmes provoca um
primeiro sentimento, evidente,
de segurança, e um segundo, íntimo, de desconforto.
Submetidos aos seus raciocínios, nenhuma ação, nenhum
sentimento ou pensamento pode mais ficar escondido. Aquela
mente superior pressupõe, ou
antes, dispõe, um mundo sem
segredos. Nada se oculta ao
olhar de Sherlock.
Transparência
Sonho radical de um positivismo sem freios, diante de
Holmes ninguém pode ter segredos. Todos revelam os recessos de uma subjetividade
desvendada, incapaz de se esconder. O controle do detetive
é implacável: Sherlock Holmes/Big Brother possui efetivamente imenso poder. Poder
que emana não de um método,
que é secundário, mas de uma
inteligência, que é primordial.
Nesse sentido, Sherlock é
claramente superior à polícia e
a seus arquivos, seus sistemas
classificatórios, seus métodos,
dentro dos quais atuam vários
agentes. No primeiro caso,
mais vale a inteligência individual. No segundo, são os procedimentos, as técnicas de caráter objetivo que primam. A polícia chega até o crime; Sherlock vai além dele.
Volta
A lucidez racionalista de Holmes depende, porém, de seus
lados obscuros. O filme não toca neste ponto. Conan Doyle, o
inventor do personagem, sabe
que não há luz sem sombra e
que há um avesso e um direito
no mundo vitoriano.
O detetive não é só a máquina
de deduzir: é humano e pode
cair em depressão.
Busca então, do jeito que pode, um equilíbrio. Guy Ritchie,
ainda mais tendo um ator com
a biografia de Robert Downey
Jr., poderia ter pensado nisso.
Mas se esquece de que são tão
importantes para os processos
dedutivos de Sherlock Holmes
tanto o rigor do raciocínio
quanto o violino e a cocaína.
jorgecoli@uol.com.br
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