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AUTORES
Crise brasileira decorre mais da própria economia do que da oscilação dos
mercados internacionais
O real explica tudo
ALAIN TOURAINE
especial para a Folha
A ameaça que pesa sobre o Brasil
tem de ser superada, pois uma crise aguda da economia brasileira
seria transmitida a toda a América
Latina e provocaria uma catástrofe
nos Estados Unidos, que destinam
20% de suas exportações a essa região. A Europa, evidentemente,
também não seria poupada por
uma crise geral da economia. Foi
menos o futuro do Brasil do que o
medo de uma tal crise mundial
que mobilizou uma ajuda internacional considerável para livrar o
país dos apuros. Mas, claro, tal
apoio internacional não significa
que os males do capital especulativo tenham sido compensados e
que tudo tenha retornado à ordem. As causas da crise residem na
própria economia brasileira, mais
do que no movimento internacional dos capitais.
A bem da verdade, tudo decorre
do Plano Real, cujo sucesso foi notável, pondo termo à inflação e
melhorando as condições de vida
das classes populares, mas que
acarretou acentuadas distorções.
O real, atrelado ao dólar, foi rapidamente sobrevalorizado, tendo
sido necessário elevar as taxas de
juros para reter os capitais que fugiam desse desequilíbrio. Ao mesmo tempo, as importações foram
aumentando num volume muito
superior às exportações e, além
disso, as empresas, sob dificuldades, substituíram a mão-de-obra
qualificada, rara e dispendiosa,
pelas máquinas, reduzindo o emprego nas indústrias.
Esse breve esboço é suficiente
para formular a pergunta mais urgente: era preciso deixar a moeda
flutuar, à maneira mexicana, para
restabelecer certos equilíbrios
fundamentais? Muitos economistas estrangeiros vêem nessa medida uma necessidade absoluta. Há
muito o governo brasileiro exprimiu sua oposição enfática a tal
medida, que arriscaria reacender a
inflação e criar uma grave crise de
confiança. A posição do governo
brasileiro, que ele foi incapaz de
manter, é compreensível por razões que levam a propor uma análise da economia e da sociedade
brasileiras diferente daquela que
propõem certos economistas.
O enfraquecimento real da moeda decorre sobretudo do peso excessivo do setor público e de seu
déficit sobre a economia do país.
Este se encontra numa situação
comparável àquela da Itália três
anos atrás, quando o déficit orçamentário chegava a 7% ou 8% do
PIB e o sistema de aposentadorias
do setor público era ainda mais
desorganizado e oneroso do que
aquele do Brasil.
Trata-se, hoje como ontem, de
saber se um país pode participar
ativamente da economia mundial
carregando tamanho fardo. Os italianos pagaram muito caro sua recuperação, pressuposto de seu ingresso na Europa monetária não
somente pela criação de um imposto suplementar, mas sobretudo pela diminuição do crescimento, que hoje é o menor da Europa.
Mas os sindicatos, tal como as empresas e a maioria da opinião pública italiana, tiveram razão em
apoiar essa política, que visava a
eliminar os obstáculos cada vez
mais insuportáveis ao desenvolvimento da economia e à integração
da sociedade. O que foi verdadeiro
para a Itália é verdadeiro para Brasil, que deve utilizar a ajuda internacional prioritariamente para estabelecer o que é ainda mais fundamental do que uma boa taxa de
câmbio: as relações entre o Estado
e a sociedade, ou seja, a capacidade de o Estado agir no interesse geral da sociedade, e não como um
setor que pesa excessivamente sobre os demais.
Mas, se esse objetivo geral é fácil
de definir, difícil é compreender
como se pode chegar a ele. Esse
problema não é específico do Brasil; a França, por exemplo, não logrou resolvê-lo, e a maioria de
seus conflitos sociais se produzem
num setor público que, protegido
do desemprego e oferecendo hoje
salários melhores e aposentadorias mais seguras do que o setor
privado, sente-se ameaçado pelas
políticas de desregulamentação.
Há duas respostas a essa resistência previsível dos assalariados
do setor público. A primeira é melhorar o crescimento e, assim, as
condições gerais de emprego e salário. Essa é provavelmente a solução mais adaptada a um país europeu, onde as desigualdades sociais, embora aumentem
dia-a-dia, são relativamente baixas. Mas uma política econômica
de oferta é dificilmente suportável
para um país como o Brasil. Este,
aliás, foi o grande mérito do Plano
Real, responsável por elevar claramente o nível das classes populares e das regiões pobres, o que permitiu ao presidente obter a sua
reeleição. Tal fato ressalta que essa
política, tantas vezes acusada de
vítima da direita, foi efetivamente
aprovada pelos eleitores como
uma política de esquerda, diminuindo as desigualdades.
A situação atual, porém, é diversa daquela do início do primeiro
mandato do presidente Fernando
Henrique, uma vez que hoje as
consequências negativas da criação do real se fazem sentir mais
abertamente, o que explica a desvalorização considerada como
inevitável por tantos economistas.
Esta não desencadeará necessariamente a inflação, mas é preciso
agir de maneira mais drástica, por
meio de medidas sociais mais ativas.
No nível simbólico, uma resposta positiva aos sem-terra é importante. No nível econômico geral,
ao já mencionado reequilíbrio dos
gastos públicos é preciso acrescentar uma luta contra o dualismo
extremo do mercado de trabalho,
que concede vantagens anormais a
certas categorias de técnicos altamente qualificados e mantém o setor informal numa situação muitas vezes insuportável. É preciso
lutar mais ativamente contra a exclusão e a marginalidade, que
constituem a principal fonte da
violência, tanto popular quanto
pública.
O Brasil tem de eleger como
prioridade máxima uma política
de educação popular, pois nesse
domínio o país se acha numa posição de inferioridade a muitas nações da América do Sul. A reação
defensiva dos assalariados do setor público é compreensível, mas
não se pode admitir que continue
a paralisar o país; a retomada da
produção não será imediata, ainda
que a Bolsa esteja eufórica; é preciso, portanto, buscar medidas sociais que, amanhã, acarretem o
mesmo benefício propiciado ontem pela queda da inflação.
Se tais medidas não forem implementadas, o apoio popular ao
governo diminuirá rapidamente,
como já mostraram certos resultados das últimas eleições. Nada, em
termos políticos, opõe-se a tais
medidas, pois é um equívoco dizer
que o presidente é um prisioneiro
de seus aliados. Agora é preciso,
no entanto, criar uma nova confiança, transferindo a renda para
as categorias menos favorecidas.
O Brasil, apesar da grave crise, dispõe de uma certa liberdade de manobra. É desejável que ele faça
bom proveito dela para adotar
medidas capazes de alargar o mercado interno e aplainar as desigualdades. A prioridade deve passar das finanças para a economia
real.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola
de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e
publicou no Brasil, entre outros, "A Crítica da
Modernidade" (Vozes). Ele escreve mensalmente na
Folha, na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.
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