São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 1999

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AUTORES
Crise brasileira decorre mais da própria economia do que da oscilação dos mercados internacionais
O real explica tudo

ALAIN TOURAINE
especial para a Folha

A ameaça que pesa sobre o Brasil tem de ser superada, pois uma crise aguda da economia brasileira seria transmitida a toda a América Latina e provocaria uma catástrofe nos Estados Unidos, que destinam 20% de suas exportações a essa região. A Europa, evidentemente, também não seria poupada por uma crise geral da economia. Foi menos o futuro do Brasil do que o medo de uma tal crise mundial que mobilizou uma ajuda internacional considerável para livrar o país dos apuros. Mas, claro, tal apoio internacional não significa que os males do capital especulativo tenham sido compensados e que tudo tenha retornado à ordem. As causas da crise residem na própria economia brasileira, mais do que no movimento internacional dos capitais.
A bem da verdade, tudo decorre do Plano Real, cujo sucesso foi notável, pondo termo à inflação e melhorando as condições de vida das classes populares, mas que acarretou acentuadas distorções. O real, atrelado ao dólar, foi rapidamente sobrevalorizado, tendo sido necessário elevar as taxas de juros para reter os capitais que fugiam desse desequilíbrio. Ao mesmo tempo, as importações foram aumentando num volume muito superior às exportações e, além disso, as empresas, sob dificuldades, substituíram a mão-de-obra qualificada, rara e dispendiosa, pelas máquinas, reduzindo o emprego nas indústrias.
Esse breve esboço é suficiente para formular a pergunta mais urgente: era preciso deixar a moeda flutuar, à maneira mexicana, para restabelecer certos equilíbrios fundamentais? Muitos economistas estrangeiros vêem nessa medida uma necessidade absoluta. Há muito o governo brasileiro exprimiu sua oposição enfática a tal medida, que arriscaria reacender a inflação e criar uma grave crise de confiança. A posição do governo brasileiro, que ele foi incapaz de manter, é compreensível por razões que levam a propor uma análise da economia e da sociedade brasileiras diferente daquela que propõem certos economistas.
O enfraquecimento real da moeda decorre sobretudo do peso excessivo do setor público e de seu déficit sobre a economia do país. Este se encontra numa situação comparável àquela da Itália três anos atrás, quando o déficit orçamentário chegava a 7% ou 8% do PIB e o sistema de aposentadorias do setor público era ainda mais desorganizado e oneroso do que aquele do Brasil.
Trata-se, hoje como ontem, de saber se um país pode participar ativamente da economia mundial carregando tamanho fardo. Os italianos pagaram muito caro sua recuperação, pressuposto de seu ingresso na Europa monetária não somente pela criação de um imposto suplementar, mas sobretudo pela diminuição do crescimento, que hoje é o menor da Europa. Mas os sindicatos, tal como as empresas e a maioria da opinião pública italiana, tiveram razão em apoiar essa política, que visava a eliminar os obstáculos cada vez mais insuportáveis ao desenvolvimento da economia e à integração da sociedade. O que foi verdadeiro para a Itália é verdadeiro para Brasil, que deve utilizar a ajuda internacional prioritariamente para estabelecer o que é ainda mais fundamental do que uma boa taxa de câmbio: as relações entre o Estado e a sociedade, ou seja, a capacidade de o Estado agir no interesse geral da sociedade, e não como um setor que pesa excessivamente sobre os demais.
Mas, se esse objetivo geral é fácil de definir, difícil é compreender como se pode chegar a ele. Esse problema não é específico do Brasil; a França, por exemplo, não logrou resolvê-lo, e a maioria de seus conflitos sociais se produzem num setor público que, protegido do desemprego e oferecendo hoje salários melhores e aposentadorias mais seguras do que o setor privado, sente-se ameaçado pelas políticas de desregulamentação.
Há duas respostas a essa resistência previsível dos assalariados do setor público. A primeira é melhorar o crescimento e, assim, as condições gerais de emprego e salário. Essa é provavelmente a solução mais adaptada a um país europeu, onde as desigualdades sociais, embora aumentem dia-a-dia, são relativamente baixas. Mas uma política econômica de oferta é dificilmente suportável para um país como o Brasil. Este, aliás, foi o grande mérito do Plano Real, responsável por elevar claramente o nível das classes populares e das regiões pobres, o que permitiu ao presidente obter a sua reeleição. Tal fato ressalta que essa política, tantas vezes acusada de vítima da direita, foi efetivamente aprovada pelos eleitores como uma política de esquerda, diminuindo as desigualdades.
A situação atual, porém, é diversa daquela do início do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique, uma vez que hoje as consequências negativas da criação do real se fazem sentir mais abertamente, o que explica a desvalorização considerada como inevitável por tantos economistas. Esta não desencadeará necessariamente a inflação, mas é preciso agir de maneira mais drástica, por meio de medidas sociais mais ativas.
No nível simbólico, uma resposta positiva aos sem-terra é importante. No nível econômico geral, ao já mencionado reequilíbrio dos gastos públicos é preciso acrescentar uma luta contra o dualismo extremo do mercado de trabalho, que concede vantagens anormais a certas categorias de técnicos altamente qualificados e mantém o setor informal numa situação muitas vezes insuportável. É preciso lutar mais ativamente contra a exclusão e a marginalidade, que constituem a principal fonte da violência, tanto popular quanto pública.
O Brasil tem de eleger como prioridade máxima uma política de educação popular, pois nesse domínio o país se acha numa posição de inferioridade a muitas nações da América do Sul. A reação defensiva dos assalariados do setor público é compreensível, mas não se pode admitir que continue a paralisar o país; a retomada da produção não será imediata, ainda que a Bolsa esteja eufórica; é preciso, portanto, buscar medidas sociais que, amanhã, acarretem o mesmo benefício propiciado ontem pela queda da inflação.
Se tais medidas não forem implementadas, o apoio popular ao governo diminuirá rapidamente, como já mostraram certos resultados das últimas eleições. Nada, em termos políticos, opõe-se a tais medidas, pois é um equívoco dizer que o presidente é um prisioneiro de seus aliados. Agora é preciso, no entanto, criar uma nova confiança, transferindo a renda para as categorias menos favorecidas. O Brasil, apesar da grave crise, dispõe de uma certa liberdade de manobra. É desejável que ele faça bom proveito dela para adotar medidas capazes de alargar o mercado interno e aplainar as desigualdades. A prioridade deve passar das finanças para a economia real.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e publicou no Brasil, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (Vozes). Ele escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.




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