São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CAINDO NA REAL
O sociólogo Gabriel Cohn rebate tese do cientista político Leôncio Martins Rodrigues de que a oposição às reformas de FHC vai na contramão da história
Esquerdas e nova civilização

GABRIEL COHN
especial para a Folha

No caderno Mais! de 24 de janeiro Leôncio Martins Rodrigues arrola argumentos em favor da tese de que o governo Fernando Henrique Cardoso está, ou continua, no rumo certo da história, e de que a oposição de esquerda insiste em manter-se na contramão. O texto é exemplar, não só porque seu autor é representante eminente dessa posição, mas também pela clareza com que ela é apresentada, permitindo elevar o tom do debate. A alternativa proposta é simples e drástica. Ou se avança para o futuro, no rumo seguido pelo governo, ou se desperdiçam esforços na tentativa de voltar a um passado irrecuperável (e idealizado).
A aposta no fracasso das reformas de FHC é duplamente perdedora, sustenta Leôncio. Primeiro, porque ainda se apóia na crença em uma reversão plena do modelo neoliberal, quando na realidade não há mais volta: já foi dobrado o Cabo das Tormentas, ou da Boa Esperança. Não há mais como recuperar o mundo da sociedade industrial de massas, marcado pelo intervencionismo de um Estado dotado de uma tecnocracia poderosa e pelas políticas de bem-estar social. Segundo, porque, mesmo que isso ocorresse parcialmente (o que ainda não está fora de cogitações), representaria o retorno do pior legado getulista: o "modelo dirigista, burocrático, corporativo, nacionalista, antiliberal", no qual não faltam "traços fascistóides". Seria o pior legado, porque as condições que permitiriam dar-lhe sentido não mais existem, sobretudo no tocante à capacidade de investimento e de autonomia externa do Estado nacional.
Busca-se naquele artigo ir além das "contendas miúdas pró ou contra os projetos reformistas". Trata-se de identificar na sociedade brasileira hoje "combate mais fundamental e decisivo", entre as forças interessadas na conservação dos privilégios alojados na sociedade burocrática (mais vinculada ao Estado protetor) e as forças interessadas na mudança (mais vinculada ao mercado competitivo). É verdade que, por mais que convenha não enredar-se nelas, é difícil escapar das "contendas miúdas", principalmente quando se sabe que nem sempre são tão miúdas assim.
Num exemplo já um tanto batido, mas que toca em ponto importante da argumentação de Leôncio, quando fala da redução do poder do Estado nas condições atuais, a decisão de fazer caixa com os resultados da alienação de patrimônio nacional, ao invés de buscar recuperar capacidade de investimento do Estado não responde a qualquer exigência inelutável, mas é eminentemente política, e não é preciso ser um nacionalista caduco para contestá-la.
Além disso, Leôncio tem plena consciência de que, na apresentação sumária que faz, sua identificação e localização dos grupos de interesse é precária. Entretanto insiste em apoiar nessa base frágil muito da sua argumentação. Fica difícil dar corpo a essas entidades. Tomemos aquelas voltadas para a busca de proteção e de privilégios estatais. São setores da CUT? Ou do PT? Ou do PFL? São grupos empresariais dependentes de subsídios? São as miríades de entidades classificadas como filantrópicas, religiosas, ou simplesmente de "interesse público" (incluindo clubes atléticos e esportivos de elite)? São os detentores de concessões de serviços públicos como rádio e televisão? Afinal, onde termina a proteção burocrática estatal e começa a competição? Tudo indica que o corte é mais político do que sociológico. Importa a capacidade de cada grupo para defender seus interesses dentro do Estado, e não contra ele. E isto se aplica no mínimo tanto aos interesses privados competitivos quanto à clientela cativa dos fundos públicos, como o funcionalismo.
Já aqui aparece um problema sério nos argumentos de Leôncio sobre as posições da esquerda. É que, como ele mesmo demonstra, os grupos que apresenta como os mais ansiosos por manter as posições conquistadas (trabalhadores industriais, servidores públicos) são também os mais fragilizados nas novas condições históricas mundiais. Visivelmente estão envolvidos em ações defensivas de curto alcance. É muito discutível que devam ser os alvos preferenciais de políticas restritivas de toda ordem. Sobretudo, é de esperar que a esquerda seja sensível a esses grupos. E não só por razões oportunistas, como ele sugere, embora estas também estejam sempre à espreita.
Cabe esperar da oposição de esquerda que exija do governo (de qualquer governo, e ainda mais quando ostenta um certo verniz social-democrata) que, antes de bater em quem está prostrado, seja firme com os grupos poderosos e bem equipados para buscar vantagens próprias, mesmo quando se apresentam como forças visceralmente alinhadas com tendências históricas emergentes.
Os custos políticos disso podem até revelar-se elevados para ela, mas a esquerda não pode permitir-se a confusão entre as magras vantagens conquistadas penosamente pelas categorias em declínio na produção e nos serviços (e que, se bruscamente retiradas, geram efeitos traumáticos) e os confortáveis favores de que não abrem mão os que já e cada vez mais são ricos e poderosos. Quanto ao significado político das diferenças sociais e de renda na nossa sociedade, nada a acrescentar.

Na contramão da história
O fato é que, num sentido muito profundo do termo, a esquerda tem que estar preparada para ficar na contramão da história. Isto sim é algo vital, que a experiência deste século ensina. Houve um momento, longo demais, em que a esquerda (ou a sua maior parte) julgou-se a intérprete exclusiva do grande e inexorável movimento da história. Agora é fácil criticar esse rompante de arrogância de grupos sociais que se imaginavam no leme do mundo. Mas ele representa um momento único, que não pode ser menosprezado, por mais que manifestações suas integrem a memória dos horrores deste século. É que, como já houve quem lembrasse, essa pretensão estava associada a duas coisas decisivas. Primeiro, à tentativa de traçar com clareza o quadro das novas condições históricas supostamente emergentes. Depois, à disposição para assumir a responsabilidade por aquilo que se pretendia trazer à luz.
Não deu certo. Mas resquícios degradados dessa posição ainda aparecem aqui e ali, só que desta feita associados a críticas ao caráter antimoderno da esquerda. A degradação consiste no desaparecimento de qualquer tentativa para captar o quadro do que está para vir e na completa abdicação de que algum grupo social possa, consciente e responsavelmente, desempenhar papel decisivo no advento do novo.
Leôncio é um pouco vítima disso. Há um rumo no processo histórico atual, sustenta ele, só que não dá para saber bem no que vai dar. É possível entrever que serviços e lazer serão dimensões centrais dessa nova configuração social, embora não em que termos, em que proporções, com quais participantes. Sabe-se apenas o que não se poderá sustentar nem recuperar: a sociedade industrial de massas, o Estado de Bem-Estar Social, tudo o que colida com concepções individualistas. Vencerá quem souber afastar-se em tempo daquilo que não oferece perspectivas. Perderá quem obstinar-se na defesa do indefensável.
Mas, a menos que se insista em ver nos processos históricos o caráter inexorável das leis naturais, quem disse que lutar contra tendências em curso seja equivalente a querer conservar ou mesmo restaurar o passado? Afinal, consta do aprendizado básico da esquerda que o importante não são simplesmente as coisas, mas sim o modo como elas se dão. O problema não é recuperar a organização fordista da produção industrial, ou o getulismo (concebido negativamente; porque não lhe faltam traços positivos, como o cultivo da figura do servidor público austero e convicto, que eu pelo menos apreciaria ver recuperada).
Trata-se, isto sim, de imprimir nos processos em curso o timbre de políticas atentas aos valores medulares da esquerda, como a igualdade e a justiça. Pois a questão não é chegar de qualquer modo a uma sociedade de serviços e de lazer, para usar a expressão de Leôncio, mas sim de influir desde logo na sua forma, para que ela não se revele inabitável quando se instalar. Do contrário, abandonaremos a arrogante idéia de que alguém possa ser a vanguarda do processo histórico em troca de uma deprimente redução ao papel de sapadores desse processo, de meros encarregados da remoção dos obstáculos e do entulho que se apresentam no caminho para não se sabe aonde.

Uma nova civilização
Nesse ponto chegamos ao passo mais instigante do artigo de Leôncio, quando faz alusão a um processo de passagem para um novo tipo de sociedade ou, diz ele com palavra decisiva, de civilização. Na sua argumentação isso tem a ver com a ênfase no caráter dramático dessa passagem e nas dificuldades que alguns terão para acompanhá-la. Mas, já que seu interlocutor são as diversas tendências da esquerda, é preciso reconhecer que aqui se encontra um desafio decisivo para essas forças políticas no futuro próximo. A questão, claro, não consiste em aceitar sem mais ou em resistir obstinadamente a mudanças no padrão de civilização. A alternativa entre o moderno ajustado e o conservador nostálgico não cabe para esquerda alguma que se preze.
Leôncio tem razão ao lembrar que há uma mudança de civilização em curso. É verdade também que, em face do crescente entrelaçamento de temporalidades, ritmos e formas de organização social e da aceleração dos processos históricos, ninguém mais se arrisca a grandes previsões sobre o que poderá emergir mais à frente. Importa que está em jogo uma nova forma de civilização, e que o processo que conduz a ela pode ser visto de duas maneiras: ou como ocorrendo por sua própria conta, automaticamente, ou então como aberto a intervenções.
Meu argumento de base, aqui, é que a esquerda não pode abrir mão da sua posição original, segundo a qual é praticamente possível e eticamente imperativo intervir de modo racional nos processos históricos em curso e buscar influenciar o seu desenlace em nome de alguns princípios, principalmente os da igualdade e do livre e universal desenvolvimento das capacidades.
Cabe talvez lembrar nesse ponto a conclusão a que chegou o sociólogo alemão Helmut Dubiel ao analisar o "luto da esquerda" após a derrocada do socialismo de feitio soviético: "À esquerda cabe agora a tarefa de civilizar o capitalismo". Não é preciso ir tão longe, mas a questão central foi enunciada. A vocação que outrora o movimento socialista se atribuiu, de oferecer a resistência decisiva à barbárie (entendida na sua melhor expressão, a de Rosa Luxemburgo, como consequência direta da crise de um capitalismo deixado sem alternativa histórica), redefine-se, num momento em que o socialismo deixa a cena, como tarefa geral da esquerda.
Vale dizer que, para além das tarefas pontuais ligadas às "contendas miúdas", as oposições de esquerda não podem mais perder de vista (como já fizeram) a exigência de formular um projeto civilizatório próprio. Mesmo porque essa não é uma preocupação prioritária para mais ninguém. Tanto não o é que um governo como o atual, do qual se poderia esperar especial sensibilidade para a dimensão civilizatória da política, revela indiferença por ela, em nome talvez de um suposto realismo que o põe refém dos representantes do clientelismo, do fisiologismo, do oportunismo personalista, das formas mais predatórias de corporativismo privatista -enfim, dos traços da nossa vida política que Leôncio não arrola entre os que mais urgentemente precisam ser enfrentados com as reformas.
Esse projeto envolve uma agenda básica, que deverá contemplar temas que são indispensáveis para que reformas pontuais ganhem sentido. A questão de fundo é precisamente esta: se é de mudança civilizatória que se fala, então o desafio consiste na construção de um modo de vida livremente compartilhado que tenha como núcleo a articulação entre a formação de capacidades humanas e as condições para aplicá-las. Isso envolve uma redefinição funda e séria da questão da cidadania. Só assim se alcançarão os fundamentos para a formulação de conjuntos articulados de políticas que escapem das injunções pontuais e imediatas.
O pensamento liberal vem enfrentando a décadas os problemas suscitados pelos temas que lhe são próprios, a começar obviamente pelo da expansão e da garantia das liberdades, e pelos temas de seus interlocutores mais próximos, como o das virtudes republicanas. No mundo todo esse debate vem sendo incorporado por uma esquerda revigorada (sim, revigorada: quem viver verá). Será que só isso ficará à margem da famigerada globalização? Pois não se trata da mera aposta no fracasso dessas ou daquelas reformas. Reconheço que este é um gesto indigno de quem se proponha agir com base numa visão de conjunto e de mais longo prazo, como compete à esquerda. Trata-se de ter clareza sobre o que as reformas representam quando vistas da perspectiva de políticas de prazo mais longo e com alcance que vá além dos ajustes circunstanciais.
A esquerda pode ser mal-humorada em muitos momentos, mas há algo nas suas concepções básicas de que ela não deveria esquecer-se e que talvez até pudesse ensinar aos seus interlocutores, mesmo os melhores. É que a política só faz sentido quando se tem uma proposta sobre o que se está construindo e não se fica restrito a referências negativas. Não adianta construir bonecos de palha para golpear, como qualquer reforma "neoliberal" para uns ou o legado "getulista" para outros. Mas, quando os detentores do poder têm consciência (ou são cobrados pela oposição para tê-la) de que seus atos integram-se, ou deveriam integrar-se, na construção de um novo padrão de civilização, então a velha e um tanto desacreditada expressão "projeto civilizatório" retoma. E o faz com tanto mais força quanto os que alegam navegar nas correntes que levam ao futuro se perdem no jogo miúdo e correm o risco de arribar onde não queriam.


Gabriel Cohn é professor do departamento de ciência política da USP e editor da revista "Lua Nova", do Centro de Estudos de Cultura Contemporêna (Cedec).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.