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Um pensador no meio do caminho
NEWTON BIGNOTTO, RICARDO MUSSE E FÁBIO WANDERLEY REIS FALAM DA DIFICULDADE DE CLASSIFICAR O OBRA DE BERLIN E O QUE É SER DE DIREITA HOJE
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CYRUS AFSHAR
DA REDAÇÃO
Admirado pela direita, visto com desconfiança pela esquerda, o filósofo
político Isaiah Berlin, que completaria cem anos
no próximo sábado, era, sobretudo, um "humanista", na opinião de três destacados acadêmicos brasileiros ouvidos pela
Folha.
Newton Bignotto, professor
de filosofia na Universidade
Federal de Minas Gerais
(UFMG), Ricardo Musse, professor do departamento de sociologia da USP e Fábio Wanderley Reis, cientista político e
professor emérito também da
UFMG, debatem seu legado e
as implicações políticas e sociais de suas ideias e conceitos
mais importantes.
Para eles, os conceitos que
consolidou -pluralismo, liberdades positiva e negativa- podem ajudar a compreender os
interesses em jogo por trás dos
conflitos nas democracias contemporâneas e ajudam a organizar o debate de ideias.
Na entrevista abaixo, discutem também o que significa ser
de direita no Brasil de hoje.
FOLHA - O que significa ser direita
no Brasil?
NEWTON BIGNOTTO - É uma pergunta difícil de responder hoje.
Em primeiro lugar, porque
essas noções, derivadas da Revolução Francesa (1789) e que
tiveram tanta importância nos
dois séculos que se seguiram, se
dissolveram razoavelmente.
E, sobretudo, no Brasil, onde
poucas pessoas se declaram de
direita, e nenhum partido político se declara de direita.
O máximo a que podemos
chegar, no cenário político, é
encontrar pessoas com posições conservadoras, como em
relação ao aborto ou ao modo
de financiar campanhas.
RICARDO MUSSE - Isaiah Berlin
não é um teórico da direita brasileira. Ele é um liberal quase
clássico em sua vertente, fortemente ligado ao Iluminismo.
No Brasil, seria de centro-esquerda. Ele mesmo se diz, em
seus textos, mais de centro-esquerda. Mas foi muito admirado por Noel Annan, um dos gurus da ex-premiê britânica
Margaret Thatcher [conservadora]. Então, talvez por isso
ocorra a associação.
FÁBIO WANDERLEY REIS - Acho que
ser direita em qualquer lugar
do mundo pode ser posto em
termos de certos valores que
subsistem -apesar da tentativa
de desqualificação de esquerda
e direita que há por aí.
Por um lado, [trata-se] da ênfase na ordem ou eventualmente na ênfase na adesão a uma dinâmica eficiente no plano econômico -do sistema capitalista
em particular.
Enquanto do outro lado, na
esquerda, haveria a preocupação com a igualdade, promoção
social dos destituídos, dos mais
pobres, uma perspectiva mais
igualitária, em que o valor básico da igualdade é um valor de
referência.
Quanto ao Brasil, não há a
menor dúvida de que o grosso
do eleitorado popular não entende essas categorias e as usa
de maneira equivocada, que envolve confusões banais como
[associar direita a] "ser um sujeito direito", coisas desse tipo.
FOLHA - Por que há, no Brasil, uma
dificuldade de setores da elite política de se assumirem como "de direita", quando não ocorre a mesma
coisa em outros países?
BIGNOTTO - Os partidos políticos brasileiros, ou pelo menos a
maioria deles, não têm um perfil político definido -e nunca
tiveram.
Mais que isso: temem ter esse perfil porque querem disputar eleitores em todas as faixas.
Os próprios programas dos
partido são muito vagos. E isso
impede que haja uma identidade tanto programática quanto
uma identidade ideológica.
REIS - A [categoria] "direita"
adquiriu no país uma conotação marcadamente negativa,
transformou-se em uma pecha,
em um xingamento -e as pessoas são levadas a se dissociarem disso.
FOLHA - Qual é a influência das
ideias de Isaiah Berlin nas correntes
políticas atuais?
BIGNOTTO - Ele é tipicamente
um pensador liberal, porque
conduziu um combate contra
os totalitarismos e contra forças que ele associava à formação dos regimes totalitários.
Algumas de suas contribuições foram importantes.
Por
exemplo, foi ele que consolidou
-não inventou- a distinção
entre liberdade positiva e liberdade negativa.
Outra contribuição fundamental foi ter chamado a atenção para a ideia de pluralismo
ético. E ter dado tanta importância à ideia de liberdade é o
que marca sua herança atual.
FOLHA - O que é o conceito de pluralismo de Isaiah Berlin?
BIGNOTTO - A partir da leitura
de Maquiavel e de escritores
russos, como Tolstói e Dostoiévski, ele pensou: o que eles
têm em comum? Para ele, têm
em comum o fato de que sociedades diferentes vão ter conjuntos de valores diferentes.
A pergunta que fica é: isso é
relativismo? Ele responde: não,
isso não é relativismo, isso é
pluralismo.
Não é a ideia de que nós não
tenhamos ou possamos partilhar ideias no campo ético, mas
sim que sociedades concretas
históricas terão um conjunto
de valores diferentes, que poderão comerciar, negociar entre si -nós podemos reconhecer isso em outras sociedades,
mas elas serão diferentes nos
seus conjuntos de valores.
E ele chamava isso de pluralismo ético, o fato que civilizações diferentes necessariamente reconhecerão valores
diferentes.
MUSSE - Grande parte das
questões e dos conceitos que
desenvolve é forjada no âmbito
do Iluminismo. Há um reconhecimento da diversidade dos
valores humanos, mas ele é tão
amplo que chega, em certos
textos, a reconhecer o nazismo
como uma expressão da diversidade cultural humana.
FOLHA - A vitória do "não" no referendo do desarmamento no Brasil,
em 2005, foi uma vitória da liberdade negativa?
BIGNOTTO - Em alguma medida,
a gente pode formular isso sim,
ao passo que a ideia de liberdade negativa se aproxima da
ideia de direitos civis e, sobretudo, de direitos individuais.
Acho que não é incorreto
pensar -no plano dos direitos- que direitos, em geral,
acolhem a ideia de liberdade
negativa. São sobretudo os direitos individuais.
Então, muitas pessoas se posicionaram em relação a essa
questão da seguinte forma:
"Não queremos ter nossos direitos restringidos por uma
lei". Então dá para falar nesses
termos, sim.
MUSSE - Acho difícil estender o
conceito de liberdade negativa
para determinados âmbitos como esse. Logicamente, poderia
ser dito que sim. Mas isso estaria em desacordo com o corpo
central do pensamento de Berlin. Não podemos esquecer que
Berlin era um humanista.
E essa ideia de universalismo
moral impõe um limite, porque, por um lado, a vitória do
"não" é a prevalência do indivíduo sobre o Estado. É uma forma de diminuir o controle.
Mas, por outro lado, a noção
moral e a própria ideia de humanidade estão em desacordo
com a ideia da guerra de todos
contra todos, que de certa forma o "não" significava -ou, pelo menos, que a questão da segurança é uma questão individual, e não coletiva.
REIS - Vejo aquilo de maneira
muito negativa. Não acho que
seja uma forma de afirmar legitimamente o que a liberdade
negativa tem de melhor.
Com o estímulo da presença
do Estado, da atuação reguladora do Estado e até da atuação
repressiva do Estado, percebe-se menos o fato de que, se cada
um usa livremente sua liberdade negativa, isso resultará em
pessoas pisando umas nos calos
das outras.
Isso resultaria em violência,
em criminalidade. Haveria
uma sociedade hobbesiana.
FOLHA - Pode-se dizer que isso é
um indício de que a tendência encontra respaldo entre os brasileiros?
BIGNOTTO - Acho que o problema que nós devemos nos colocar é o da presença do liberalismo na sociedade brasileira. Essa separação ajudou Berlin a
consolidar uma crença muito
forte de um tipo de liberalismo.
[O cientista político] Wanderley Guilherme dos Santos,
num texto antigo, mas muito
interessante, diz que o Brasil
adotou ideias do liberalismo
econômico cedo em sua história e que o liberalismo político
sempre patinou entre nós.
É fato que ideias próximas do
liberalismo político têm ganhado espaço na mídia, assim como na sociedade civil e na sociedade brasileira em geral. E,
entre elas, certamente no terreno dos direitos individuais.
REIS - Depende como se lê.
É algo que ilustra um certo
grau em que é possível manipular a chamada opinião pública
ou o eleitorado com slogans
adequados. Bastaram que certos temas fossem agitados, como se aquilo envolvesse uma
certa castração das pessoas, para que a coisa [a posse de armas] fosse apoiada.
Mas eu evitaria vincular
aquilo como um exemplo de
uma manifestação de um liberalismo em um sentido mais
adequado, mais rico, por parte
do eleitorado brasileiro em geral. Foi um momento infeliz,
sob essa ótica.
Folha Online
Leia a íntegra da
entrevista com os três
acadêmicos em
www.folha.com.br/091471
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