São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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CINEMA
Melodrama ou a sedução da moral negociada


Mantendo seu perfil básico, o cinema revitalizou o gênero por meio da tecnologia


ISMAIL XAVIER
especial para a Folha

A título de esquema, é comum se dizer que o realismo moderno e a tragédia clássica são formas históricas de uma imaginação esclarecida que se confronta com a verdade, organizando o mundo como uma rede complexa de contradições apta a definir os limites do poder dos homens sobre o seu destino, ao mesmo tempo em que se recusa a poupá-los de um incômodo reconhecimento de sua parcela de responsabilidade sobre ações que terminam por produzir efeitos contrários aos desejados.
Em contrapartida, ao melodrama estaria reservada a organização de um mundo mais simples, em que os projetos humanos parecem ter a vocação de chegar a termo, onde o sucesso é produto do mérito e da ajuda da Providência, ao passo que o fracasso resulta de uma conspiração exterior que isenta o sujeito de culpa e o transforma em vitima radical. Essa terceira via da imaginação traria, portanto, as simplificações de quem não suporta ambiguidades, nem a carga de ironia contida na experiência social, alguém que demanda proteção ou precisa de uma fantasia de inocência diante de qualquer mau resultado. Associado a um maniqueísmo adolescente, o melodrama se desenha, neste esquema, como o vértice desvalorizado do triângulo, sendo, no entanto, a modalidade mais popular na ficção moderna, aparentemente imbatível no mercado de sonhos e de experiências vicárias consoladoras.
Embora aceitável para um começo de conversa, tal esquema não dá conta de muitos problemas quando deparamos com obras concretas ou certos percursos históricos. A distinção entre melodrama e tragédia gera controvérsias que envolvem Shakespeare e, conforme o rigor do classicismo, também Eurípides. Por sua vez, as relações entre melodrama e realismo geram intrincado debate, havendo nítidas interfaces, por exemplo, na história do cinema, como em King Vidor, Pudovkin, Murnau, Marcel Carné e Vittorio de Sica. Da produção recente, lembremos "Terra e Liberdade" (1995), de Ken Loach, e "Segredos e Mentiras" (1996), de Mike Leigh, para citar os de maior interesse.
Apesar das dificuldades, as distinções que expus acima, grosso modo, serviram de baliza, ao longo deste século, para estruturar a oposição entre uma ficção alternativa e a rotina dos meios de comunicação. Com raras exceções, como as encontradas no cinema italiano, de Visconti a Bertolucci, a tendência do cinema de autor dos anos 50 e 60 era ressaltar o divórcio entre o gênero popular e o cinema crítico. No entanto, a década de 70 trouxe revisões de repercussão inegável, reabrindo o processo do melodrama.
Um movimento simultâneo, não coordenado, de cineastas e críticos fez refluir um modernismo mais incisivo no ataque ao cinema narrativo de gênero e revalorizou o diálogo com os produtos da indústria como estratégia de sobrevivência de um novo cinema político, que se queria mais estável na comunicação com o público.
Naquela conjuntura, foi de Fassbinder a experiência emblemática, de maior risco e de maior interesse. Em 1972, ele encontra Douglas Sirk e escreve o ensaio crítico de elogio à figura-símbolo do gênero nos anos 50, preparando o seu próprio movimento de reapropriação em "Lágrimas Amargas de Petra Von Kant" (1972) e "Ali - O Medo Corrói a Alma" (1973). A dramaturgia de Fassbinder é peculiar e ainda espera uma análise capaz de esclarecer sua força inconteste, seu estatuto a meio caminho entre Brecht e o melodrama. Num outro contexto, algo similar acontece nos longos filmes de Manoel de Oliveira, o mais talentoso dentre os ironistas da península ibérica, implacável com a melancolia romântica portuguesa e sua morbidez. Neste caso, e também nos filmes de Carlos Saura, Bigas Luna, Arnaldo Jabor, Humberto Solas, Arturo Ripstein e, recentemente, em Gutierrez Alea, compõem-se alegorias a partir de material melodramático, incorporando os excessos com ironia ou fazendo um teatro de câmera à francesa, como em "Melo" (1984), de Alain Resnais.
De forma variada, estes são exemplos em que estamos num terreno alheio ao melodrama mais canônico, pois a incorporação de alguns de seus traços se dá em filmes em que prevalece uma tonalidade reflexiva, irônica, que se faz estilo de encenação, havendo sempre o toque moderno de não-inocência nas relações entre câmera e cena, música e emoção. Explora-se o potencial energético do gênero, mas inverte-se o jogo, pondo-se em xeque a ordem patriarcal ou buscando-se, em vez de enlevos românticos, uma anatomia das lutas de poder na vida amorosa e no cenário doméstico. Tarefa que, em muitos casos, se fez de uma mescla de revalorização e deboche diante do império do kitsch, num esquema reativado por produções recentes, mas que se inaugurou lá nos anos 60 -falo da apropriação pop do melodrama, que teve múltiplas versões e encontrou em Almodóvar sua vertente mais visível a partir dos anos 80. A vertente pop incorpora, por meio da paródia, os deslocamentos de valor operados pelo hedonismo da sociedade de consumo, dentro do já tematizado choque do arcaico e do moderno que nós, brasileiros, vivenciamos esteticamente com o tropicalismo, a partir de 1967-68.
Ao apontar tais desdobramentos, não pretendo alinhar-me à revisão crítica que tem gerado euforias ingênuas quanto ao alcance do gênero, principalmente em suas versões mais convencionais. Pensando nestas, e em contrapartida ao exposto, vale lembrar que, infelizmente, as estratégias de um cinema crítico e as revisões dos teóricos da mídia se mostraram, na cultura de mercado, uma pequena onda, quando as comparamos com o dado mais avassalador da retomada de iniciativa por parte de Hollywood, feita exatamente de uma reciclagem do melodrama mais canônico, tal como o fizeram Spielberg e Lucas a partir de meados dos anos 70.
O salto tecnológico, aliado à experiência na lida com afetações sentimentais, engendrou a nova fórmula, marcando a persistência das polaridades do Bem e do Mal. Com a reciclagem da ficção científica a partir de "Guerra nas Estrelas" (1977), o filme de gênero veio mostrar quanto sua vertente mais industrial e infantil era capaz de assumir, numa versão domesticada, aquele status de representação de segundo grau, eivada de citações e referências ao próprio cinema e que se associa ao pós-moderno. O melodrama encontrou novas tonalidades vitro-metálicas sem perder seu perfil básico, evidenciando sua adequação às demandas de uma cultura de mercado ciosa de uma incorporação do novo na repetição.
"Titanic", por exemplo, soube muito bem se inserir nessa via aberta pela nova geração da indústria: de um lado, as agonias do par amoroso, no caso temperadas pela oposição entre o altruísmo do jovem plebeu e a vilania dos aristocratas (tema do século 18 que Hollywood não pára de reciclar); de outro, as imagens de impacto a indiciar alta tecnologia e dinheiro. Esta articulação entre melodrama e efeitos especiais é de uma enorme eficácia, pois gratifica das mais variadas formas em sua operação de "tornar visível". Ruínas perdidas no fundo do mar guardam o segredo de um romance mais precioso do que o diamante procurado. E a enorme engrenagem narrativa se põe em marcha para que, no final, a pedra finalmente vá ao fundo levando suas ressonâncias simbólicas, enquanto, em outro plano, a experiência romântica que o retira de circulação atinge o ápice do seu valor de troca.
Essa combinação de sentimentalismo e prazer visual tem garantido ao melodrama dois séculos de hegemonia na esfera dos espetáculos, do teatro popular do século 19 -que já era orgulhoso de seus efeitos especiais- ao cinema que conhecemos. Por mais de um século, grosso modo até a Primeira Guerra Mundial, a França definiu o pólo de maior vigor e interesse. A partir de então, o show business anglo-americano tem sido o foco privilegiado das experiências que dominam o mercado, e as análises mais sugestivas do estatuto do melodrama em nosso tempo têm vindo justamente das revisões feitas pela crítica de língua inglesa. Dessas revisões, tomo "A Imaginação Melodramática" (1976), de Peter Brooks, como referência, pois foi este livro que, pela síntese aí contida, deu um novo impulso às reflexões sobre o nexo entre melodrama e indústria do audiovisual (1).

Para Brooks, o melodrama apresenta todo esse vigor porque é algo mais que um gênero dramático de feição popular ou receituário para roteiristas. É a forma canônica de um tipo de imaginação que tem manifestações mais elevadas na literatura, até mesmo na fatura de escritores tomados como mestres do realismo -Balzac, Henry James. Permeando o alto e o baixo, tal imaginação é, para o autor, uma feição quase onipresente da modernidade, em que cumpre uma função modeladora capaz de incidir sobre as mais variadas formas de ficção. Seu livro se concentra nas afinidades entre os romances do século 19 e o teatro popular posterior à Revolução Francesa, um tema já presente na crítica literária, que, no entanto, ele amplifica e desloca para o centro, conferindo um grau de generalidade a observações sobre o melodrama que entusiasmaram leitores interessados na discussão da mídia contemporânea -terreno onde sua teoria tem sido mais profícua-, mas não encontraram a mesma recepção no campo literário propriamente dito.
Há motivos para tal reticência, dado que a tradição literária torna menos convincente o seu esquema binário, em que quase tudo se explica pela oposição entre melodrama e tragédia, tomados como categorias dramáticas exclusivas na definição de épocas (uma questão elidida envolve o outro vértice do triângulo: o realismo). Tal redução, sem dúvida questionável, se liga à forma como Brooks ajusta a periodização histórica ao seu objeto. Ele precisa privilegiar, na esfera das categorias dramáticas, uma oposição correlata àquela que observa entre os contextos sociais do Antigo Regime e da modernidade burguesa, contextos a que se refere, no entanto, somente em grandes pinceladas. Seu problema, se quisermos pensar nas implicações maiores de sua teoria, é dar uma feição por demais homogênea à sociedade posterior à Revolução Francesa, como se esta tivesse instituído, numa única virada de página, uma modernidade laica e burguesa que se impôs igualmente a todos. Inversamente, sua virtude é inconteste quando esta mesma atenção ao "espírito de época" se desdobra no ataque à idéia do melodrama como categoria a-histórica e na especificação dos traços que vinculam sua estrutura e sentido à modernidade.
Observando a imaginação melodramática nos seus próprios termos, Brooks esclarece muita coisa ao narrar a forma de sua emergência no século 18. Não vê a sua ascensão como sinal de uma perda, nem toma a "morte da tragédia" como um sintoma de crise da cultura, como o fez George Steiner (2). Vale mais, para Brooks, a constatação de que o melodrama substitui, digamos assim, o gênero clássico porque a nova sociedade demanda outro tipo de ficção para cumprir um papel regulador, exercido agora por essa espécie de ritual cotidiano de funções múltiplas. Se a moral do gênero supõe conflitos, sem nuances, entre bem e mal, se ela oferece uma imagem simples demais para os valores partilhados, isto se deve a que sua vocação é oferecer matrizes aparentemente sólidas de avaliação da experiência num mundo tremendamente instável, porque capitalista na ordem econômica, pós-sagrado no terreno da luta política (sem a antiga autoridade do rei ou da igreja) e sem o mesmo rigor normativo no terreno da estética. Flexível, capaz de rápidas adaptações, o melodrama formaliza um imaginário que busca sempre dar corpo à moral, torná-la visível, quando esta parece ter perdido os seus alicerces. Provê a sociedade de uma pedagogia do certo e do errado que não exige uma explicação racional do mundo, confiando na intuição e nos sentimentos "naturais" do individual na lida com dramas que envolvem, quase sempre, laços de família.
A tragédia clássica também se apoiou nos dramas de família e nos conflitos entre os direitos da linhagem de sangue e os da comunidade, entre a cadeia da vingança e a prática da justiça mediada pelas instituições da "polis". Há, porém, uma diferença essencial na articulação do público e do privado que separa os gêneros e seus tempos históricos, pois na cultura burguesa o interesse pelo drama que mobiliza laços naturais vem de sentimentos considerados universais, cuja dignidade não precisa de sua projeção na esfera pública. A seriedade do drama não mais exige reis e rainhas, nobres ou figuras de alta patente cujo destino se confunde com o da sociedade como um todo. Como bem explicou Diderot, o que interessa no lamento de Clitemnestra, ao perder Ifigênia, não é sua condição de rainha, mas sua condição individual de mãe portadora de uma dor que seria igualmente digna numa camponesa. Ou seja, a substância do drama pessoal pode ser semelhante -tensões entre lei e desejo, questões de identidade, falsos parentescos. Mas há as diferenças no contexto social e na envergadura dos heróis e há a identidade de status a aproximar as figuras do palco e da platéia, marcando a ancoragem histórica do melodrama e a sua inserção numa cultura laica de mercado desde 1800 (3).


A noção de interesse humano ou social legitima certas sensações do jornalismo e a descarada afetação romântica embala um cinema de ficção no qual a crítica ao fetiche do mercado faz parte das atrações que garantem o lucro


Mencionar aqui Diderot é invocar a baliza maior do próprio Brooks e de outros que se ocuparam do tema, pois sua teoria do drama sério burguês -aliada a sua crítica às formas de encenação do teatro clássico em sua época- mostra muito bem que a cena apropriada a exacerbações sentimentais não precisou esperar o teatro popular para se acoplar decisivamente a esse primado do "tornar visível". Já se apresenta, no filósofo, a concepção da cena como um "tableau", a aproximação de performance teatral e composição pictórica como linguagens do olhar. Ao entrelaçar drama e experiência visual, ele legitima a exibição, em cena, do que pode criar a ponte entre os olhos e o coração, incluídas as ações extremas, ao contrário do que acontecia na tragédia clássica.
Sabemos que, neste particular, um ponto de inflexão fundamental foi Shakespeare, com suas mortes em cena, mas a valorização do ilusionismo só se consolidou no século 18, contribuindo, ao lado da codificação romântica da "música de fundo", para que o teatro popular, com sua verve pedagógica, consagrasse, depois da Revolução Francesa, o melodrama canônico. Este se fez prevalecente até meados deste século na mídia, com seu enredo e retórica orientados para tornar visível a moral cristã, às vezes ativando paradigmas de renúncia e sacrifício redentor, às vezes distribuindo recompensas segundo um direito à felicidade que depende de soluções dramáticas balizadas pela idéia de Providência.
À medida que o século 20 avançou, as mudanças sociais e as novas questões trabalhadas na ficção deram lugar a um imaginário gradualmente marcado pela psicologia moderna e por uma franca mediação do senso comum, em que a admissão da utilidade do prazer para a vida sadia veio combater o ascetismo religioso e ajustar os padrões morais do melodrama à tolerância e ao hedonismo da sociedade de consumo. Neste processo, o movimento em favor de uma crescente gratificação visual é o dado constante -ao lado da maleabilidade do gênero, que, embora ainda afeto às encarnações do bem e do mal, incorpora muito bem as variações que tais noções têm sofrido.
A teoria atual observa que não é o conteúdo específico das polarizações morais que importa, mas o fato de haver tais polarizações definindo os termos do jogo e apelando para fórmulas feitas. Há melodramas de esquerda e de direita, contra ou a favor do poder constituído, e o problema não está tanto numa inclinação francamente conservadora ou sentimentalmente revolucionária, mas o fato de que o gênero tradicionalmente abriga e, ao mesmo tempo, simplifica as questões em pauta na sociedade, trabalhando a experiência dos injustiçados em termos de uma diatribe moral dirigida aos homens de má vontade.
Na parábola moral, embora o triunfo da virtude seja o roteiro tradicional e o final feliz prevaleça na indústria, o infortúnio da vítima inocente é também uma forma canônica. Em verdade, o melodrama tem o reduto por excelência de cenários de vitimização. Basta lembrar o tema da virgem ameaçada ou da inocência desprotegida, que o gênero herdou da Idade Média e que, antes dele, foi trabalhado pelo drama burguês ou em obras decisivas na consolidação do romance como produto de mercado, tais como "Clarissa" (1744-49), de Samuel Richardson.
Em suas primeiras versões, o roteiro da virtude ultrajada significou um gesto da classe em ascensão, disposta a denunciar a decadência moral da aristocracia e caracterizar o nobre como um vilão obcecado. Mais tarde, a ameaça mudaria de sinal e passaria a ser encarnada pela suposta barbárie das classes laboriosas; a burguesia inverteria a direção do olhar, elegendo novo inimigo de classe, estigmatizando o pobre, os povos colonizados, outras etnias, tal como ainda acontecia no período clássico de Hollywood, obviamente sem excluir os vilões aristocratas, que continuaram a exibir sua arrogância de classe e esnobismo (é notável a galeria dos eruditos perversos no cinema americano).
Em seu gosto por um ilusionismo visual impactante, de resto embalado por uma sonoridade melodiosa (o "melos" do drama), o gênero sempre se pautou pela intensidade, pela geração de estados emocionais catalisadores da credulidade -não apenas a fé inocente, mas fundamentalmente a consentida. E radicalizou os ideais de transparência, de expressão direta dos sentimentos na superfície do corpo, onde verdades "afloram" porque estão livres da linguagem convencional. Vale aí a fé na "voz muda do coração" e na espontaneidade do gesto (embora este seja produto de convenções teatrais) e leva-se aí ao extremo o princípio da imitação: tudo pode ser traduzido numa aparência oferecida aos sentidos.
O mundo visível torna-se uma superfície de enorme plasticidade, espécie de fisionomia natural em que se expressam a interioridade dos indivíduos e mesmo ordens maiores do universo; o que coloca a questão da verdade em termos da oposição moral entre as forças da sinceridade e as forças do engano. A batalha entre autenticidade e hipocrisia passa a ter no olhar a sua pedra de toque. E afirma-se no teatro -antes de se afirmar no cinema- uma concepção do drama apoiada na força da imagem, plenamente à vontade na condução dos excessos alheios ao gosto clássico e de uma pedagogia que expulsa a ambiguidade do seu reduto maior, separando a transparência do ser autêntico, inteiro, sem zonas de sombra, da duplicidade e do jogo de máscaras do hipócrita. Tal oposição entre autênticos, do "nosso" lado, e hipócritas, no campo oposto, define uma retórica de uso comum nas várias regiões do espectro ideológico. Pelo seu "valor de exibição", toda performance oferecida ao olhar fará parte de um sistema de enunciados, no fundo menos propriamente espontâneos do que elementos de um teatro da espontaneidade.


Existem melodramas de esquerda e de direita, contra ou a favor do poder constituído


Invertendo a direção do argumento e saindo do referencial de Brooks, vale a pena explorar o que neste ideal de transparência é, enfim, teatro; e, pela via do melodrama, voltar nossa atenção para aspectos centrais da esfera pública da mídia nos dias de hoje.
No melodrama tradicional, se a vítima emociona é porque sua condição ganha corpo e visibilidade por meio da performance que oferece um modelo de sofrimento: o que chamo aqui de "teatro do bem", feito de gestos e palavras que invocam a virtude em seu momento exibicionista, quando ela enuncia as suas marcas, dramatiza seu percurso de aflições e expressão truncada até o momento catártico em que finalmente "diz tudo". Tal catarse é ainda uma "pièce de resistance" da novela moderna, plena de explosões em que falam o sentimento e a performance do bem, seja em seu triunfo consolador, seja em seu lamento -quando perde para o teatro do mal.
A vitória da corrupção, tão comum no cinema e na TV de hoje, não significa propriamente um mergulho substancial no realismo, quando comparado com a antiga justiça poética que punia bandidos e premiava inocentes. Se o bem triunfante sugeria a tranquilidade sob uma figura protetora, o mal triunfante pode também confortar, notadamente quando se encarna numa figura de bode expiatório cuja culpa nos purifica, pois ela reúne em si todos os sinais da iniquidade. Exibindo as marcas que permitem o reconhecimento do pecado como sua origem, o mal não é senão o teatro do mal, razão por que seu agente deve ser deliberado, conspirador e caprichoso; e o bem não é senão teatro do bem, razão por que seu agente deve ser autêntico, "naturalmente" prestativo, modesto, de bom senso. Podem se alterar o eixo e a escala dos valores, mas o essencial é a clareza das performances e o "dizer tudo" nesse teatro da moralidade, em que, não obstante, a vilania de intenções proclamadas move a trama e garante o encanto do espetáculo.
Como observou Eric Bentley, o melodrama, como "acting out", extroversão, é a quintessência do teatro, palco de ações que visam a eficácia simbólica, e não simplesmente consequências práticas (a psicanálise faz aí o nexo com a histeria). Assim, o que importa nele não é o mal praticado a seco, ação danosa em surdina, mas o mal se exibindo como teatro do mal, como prazer da transgressão, muitas vezes em simbiose com a vítima, que não encarna a ação silenciosa da virtude, mas a afetação desta.
Mario Praz, entre outros, acentua como este teatro em que se complementam o carrasco e a vítima encontra sua contrapartida em Sade, que trabalha justamente a ironia endereçada à virtude não recompensada e faz do princípio do "suportar sofrimento" um ingrediente da liturgia do sádico, deliberado transgressor que é o avesso do melodrama, sua imagem especular na teatralidade do bem e do mal. Esta aproximação entre os opostos sugere quanto o melodrama contém, em seu próprio princípio, a sua negação. A dialética de natureza e artifício, sinceridade e dissimulação, esconde uma outra que mobiliza, no mesmo movimento, a indignação moral proclamada e o franco voyeurismo.
Desta dialética, própria ao espetáculo, os cineastas tiveram consciência desde o início deste século (4). E, se alguém antes já tomou o melodrama pelo seu valor proclamado, é difícil hoje imaginar tal recepção para valer, notadamente num contexto em que um senso comum derivado da psicanálise evidencia a cada passo a face jesuítica dos desejos. Numa cultura em que se desfez o mito da transparência do sujeito a si, tomar o melodrama aparentemente à letra se faz, no entanto, possível como esperta nostalgia, ativação de uma cena imaginária sempre pronta a gratificar, desde que, na sua exibição para o olhar, o aparato simulador consiga impor sua força. O que se torna mais fácil quando a competência técnica de fabricação das imagens projeta o fascínio gerado pelos efeitos especiais sobre a consistência do drama (cujas bases são arcaicas). O cinema "high tech" tem demonstrado exatamente isto, a capacidade de aliar técnica supermoderna e mitologia, mostrando que visualidade e "valor de exibição" são premissas fundamentais para a eficácia do gênero.
No universo mais geral da mídia, dada à volatilidade dos valores, a vitalidade do melodrama se apóia em sua condição de lugar ideal das representações negociadas (em todos os sentidos do termo). Isto vale para o telejornalismo, onde há, de um lado, o acesso à intimidade, "ao pior"; de outro, a neutralização do efeito propriamente crítico, quando a exposição do corpo ou do "caráter" vale mais como resposta a um apetite por imagens que, por isso mesmo, custam cada vez mais. A noção de interesse humano ou social legitima certas sensações do jornalismo e a descarada afetação romântica embala um cinema de ficção no qual a crítica ao fetiche do mercado faz parte das atrações que garantem o lucro. De tal lógica, a própria indústria oferece as evidências, fazendo graça ao comentar o nosso fascínio, celebrando diamantes sem preço ou robôs altruístas que se suicidam para salvar a humanidade da supremacia da mesma técnica que sustenta a hegemonia de Hollywood.
Não há novidade aqui, e rememoro um saber partilhado sobre estes momentos lacrimosos de complacência em que, diante da tela, damos vôo livre para a nostalgia, nos consolamos de uma perda ou de feridas que o melodrama sempre recobriu com eficiência e o faz agora exibindo toda a autoconsciência do seu encanto e utilidade para a ordem social. No autocomentário, ele celebra a sua legitimidade como santuário de nossa auto-indulgência, lugar em que cedemos com prazer à experiência regressiva que o gosto exigente e a racionalidade julgam cafona e sem efeito de conhecimento, mas a que se tem reconhecido um papel na economia da psique, seguindo um psicologismo contemporâneo que, por sua vez, não elimina o debate crítico sobre essa dialética do "valor de exibição".
Antes culpada e se ancorando num ideal moralizante de transparência, tal dialética se faz hoje mais desinibida, prestando serviços a um espírito performático de ostentação de imagem. Torna-se então um elemento-chave nas representações que balizam o cotidiano e a política, nas narrações dos pecadilhos ou dos desastres, estes quase sempre travestidos de tragédia, termo impróprio, porém muito em voga.
O regime da visualidade da mídia e o melodrama têm-se mostrado duas faces de uma mesma liberação ou perda de decoro, que é ambígua em sua significação política. Fale-se em dessublimação repressiva ou simplesmente em permissividade, o dado concreto é este da imagem negociada, cujo espetáculo satisfaz, ao mesmo tempo, a retórica de convocação da virtude e a prática consentida do voyeurismo. Este, se antes já instalado no espaço moral controlado pela religião, só teve a ganhar com a ascensão de um senso comum moral apoiado na ciência, mais ajustado à esfera dos desejos, mais adequado para a racionalização do "valor de exibição" de todas as coisas e todos os corpos, deste afã por flagrar o detalhe, seja no encontro sexual, seja no desastre do carro em que estava a princesa ou no naufrágio do navio conduzido por aristocratas. Se o melodrama é a quintessência do teatro, por que sua experiência não haveria de encontrar tais desdobramentos numa sociedade que Guy Debord muito bem definiu como a sociedade do espetáculo?

Notas
1. Ver "The Melodramatic Imagination - Balzac, Henry James and the Mode of Excess". New Haven, University of Yale Press, 1976 (não confundir Brooks, professor de Yale, com Peter Brook, o encenador inglês);
2. Ver George Steiner, "The Death of Tragedy". New York, Hill and Wang, 1963;
3. Para referência, pode-se tomar a peça "Céline, Ou l'Enfant du Mystère", de Gilbert de Pixérécourt, estreada em 1800, como o momento em que se consolida a forma canônica do melodrama no teatro.
4. Ver meu artigo "Cinema e Teatro - A Noção Clássica de Representação e a Teoria do Espetáculo de Griffith a Hitchcock", in "O Cinema no Século". Rio de Janeiro, Imago, 1996.


Ismail Xavier é professor de cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP e autor, entre outros, de "Alegorias do Subdesenvolvimento".



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