São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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FOTOGRAFIA

Reprodução
"Hand" (1990), obra de John Coplans, cuhos trabalhos estão sendo expostos no Paço das Artes, em São Paulo


A história de um corpo


Os trabalhos de Coplans não se referem a um tempo cronológico que transforma o corpo; neles, o tempo não tem passagens nem paragens


JORGE MOLDE


O trabalho de John Coplans é, em termos gerais, fácil de referir: constrói com persistência imagens usando a si mesmo como modelo. John Coplans é a matéria-prima utilizada nos trabalhos de John Coplans.
São retratos: apropriações de algo por imagens fotográficas. Podemos, de início, aceitá-los assim. Serve isto como um ponto de partida. Estão nestes trabalhos uma ou mais pessoas ou, principalmente, partes de uma pessoa que para o efeito são/é John Coplans.
A apropriação por imagens é diversa e quase ilimitada. O usar-se a si próprio como objeto de apropriação, constitui já uma determinação bem precisa nesse quase ilimitado universo. O aparecimento de Narciso -ver-se, contemplar-se, fascinar-se...- é, para além de razões e justificações diferentes, e na maioria das vezes desinteressantes, um lugar comum, no sentido mais clássico da expressão. Independentemente da idéia de beleza e de atração auto-referida, o produzir uma representação de si constitui uma presença quase constante ao longo do tempo, muito em especial a partir do século 15.
Trata-se, afinal, da consolidação da imagem reflexo que, primeiro as águas e depois os espelhos, nos possibilitaram. Com o aparecimento, em meados do século 19, de uma nova consolidação deste reflexo, a fotografia, as auto-imagens multiplicaram-se abundantemente. Curiosamente, a pintura acompanhou esta crescente abundância.
Se Leon Batista Alberti fala dessa força mágica ou divina que a pintura possui -"non solo quanto si dice dell'amicitia, quale fagli uomini assenti essere presenti ma più i morti dopo molti secoli essere quasi vivi...", isto é, um poder quase ilimitado de tornar presente o que não existe, o que não está e o que desapareceu-, a auto-representação reforça esse atributo ao fazer coincidir o criador com a criatura. A questão tem algo de genésico: afinal, Deus também criou o homem à sua imagem e semelhança. Neste sentido, o auto-retrato de Munique de Dürer é bem exemplar, e as discussões acerca da coincidência do sujeito com o objeto são igualmente bem conhecidas.
Nos retratos que Man Ray fez de si próprio vemos Man Ray, ou melhor, a imagem de si que ele nos pretendeu deixar. A funcionalidade do exemplo serve para uma infinidade de casos, por vezes de qualidade irregular, e apenas como mera curiosidade. Serve para Félix Nadar, para Ilse Bing, para Imogen Lunningham, para Steichen, por exemplo. Serve para Edward Munch, para Egon Schiele, para Otto Dix, para Félix Valloton, por exemplo. Serve para Vicent van Gogh, para Arnulf Rainer, para Pierre Bonnard, para Dieter Appelt, para Pablo Picasso ou para Robert Mapplethorpe, por exemplo, ainda que de um outro modo. John Coplans deverá ser excluído, mesmo que momentaneamente, desta longa galeria: usa-se como objeto das suas imagens, porém estas não procuram uma proximidade à sua origem; nunca o seu rosto é visível e é duvidosa a presença de qualquer sintoma de fascínio para consigo: "Ao contrário de Guston, eu não tinha nenhuma intenção de inspirar piedade a quem quer que fosse, nem mesmo por ironia. Não sinto nenhuma piedade pelo fato de ser velho. Foi uma das melhores coisas que me aconteceram. Pela primeira vez, sou livre. Podia lamentar-me por não possuir um corpo jovem, mas, sabem, o mais interessante é precisamente o fato de que aquilo que fotografo não é em si interessante. Não há aí nada a não ser o corpo de um velho. Semelhante a dezenas de milhares de corpos de homens velhos. Não é interessante, nem eroticamente, nem sob qualquer outro ponto de vista".
Um homem grisalho encosta-se a uma gigantesca fotografia de uma mão. A fotografia que contém a fotografia da mão é exemplar. O autor, John Coplans, utilizou-a num catálogo para nos permitir perceber a escala do seu trabalho. É, aparentemente, essa, e apenas essa, a função desta imagem. E, no entanto, para além deste voluntário assinalar de uma característica do seu trabalho, que transforma a nossa visão das imagens que veremos depois, descobrimos a distância que vai da sua imagem às imagens que faz de si.
Atravessa todo o trabalho de John Coplans uma dimensão dupla que simultaneamente o afasta e aproxima de sua obra: se os seus auto-retratos se afastam do "homem grisalho" que descobrimos na fotografia do referido catálogo, aproximam-se até à coincidência total do artista que os produziu. Ao afastar dos seus propósitos de representação o seu rosto, John Coplans acede automaticamente à dimensão do anonimato. O seu auto-retrato, e é esta a dominação global do trabalho pretendida pelo autor, é um fazer que prossegue alguns fazeres possíveis do seu corpo, tanto possível quanto se poderá dizer de um cantor que tem um certo repertório, possível relativamente a um espaço determinado compatível com o seu corpo e que o autor consegue controlar, assim como o mesmo cantor do exemplo em relação ao seu palco. É neste fazer, nos seus resultados e na sua intenção, que o autor e a relação de inseparabilidade com a obra se tornam presentes.
Temos conjuntos de imagens de Rembrandt, de Man Ray ou de Ferdinand Hodler que, para além da representação, nos permitem uma visitação dos seus personagens, numa linha temporal. Registram as suas viagens nessa dimensão transformadora e devorante: o tempo da consumação dos corpos. Os próprios autores testemunham, aí, de uma forma limite, as suas "passagens".
A apropriação que Roman Opalka faz de si encerra-o numa linha de tempo que o levaria a um infinito, se não fosse previsível (e pré-determinável) uma interrupção. Iniciou em 1965 uma obsessiva série de pinturas numéricas prosseguindo-a até um infinito, coincidente com o limite da sua existência possível enquanto artista ou com o limite da possibilidade de representação. Ao concluir cada trabalho, fotografa-se, avançando no tempo a sua imagem numa ordem paralela à dos números e à viagem do escuro para o claro, até o definitivo branco, que as suas telas procuram.
A obsessão e a temporalidade das imagens de John Coplans não são destes reinos. Os seus trabalhos não referem ou testemunham um tempo cronológico que passe pelos corpos, transformando-os. Aqui, o tempo não tem passagens nem paragens -os tais nefandos momentos de que a fotografia nos tem falado com uma fluência assustadora, como se não nos faltasse já o conhecido inconveniente de sermos mortais, contingentes e portanto momentâneos. Nestes retratos o tempo e o artista encontram-se de forma manifesta e marcadamente não ocasional,e, no entanto, a sua consubstanciação torna-se dificilmente traduzível. Como um intervalo suspenso entre as marcas catastróficas do destino perecível dos corpos e uma certa eternidade das formas.
Os retratos de Coplans são formas, são arquétipos, imagens quase mentais e incontornáveis de uma condição de ser: "As minhas fotografias lembram as memórias da espécie humana". Neste sentido, são jungianas. John Coplans começou a fotografar-se numa altura já adiantada, diria muito adiantada, da sua vida, pelo que um resultante percurso temporal evidente seria naturalmente impossível, da maneira como foi assinalado para os exemplos anteriores. As suas fotografias devolvem-nos, todavia, esse percurso como que condensado, ou adensado, nesses momentos a que seria mais adequado chamar lugares, visto não estar comprovada a sua instantaneidade.
Os seus permanentes retornos a si não são testemunhos de ações, de atitudes ou de pontos de vista, como a arte nos tem vindo a habituar a partir dos anos 60. A sua obsessão é diferente.
O caráter iterativo do trabalho do já mencionado Opalka, por exemplo, resulta de uma aplicação metódica, ou de demanda, mais ou menos fundamentada pelo próprio em termos ontológicos: aproxima duas serialidades decisivas -o seu tempo humano limitado e o consagrado infinito da série dos números naturais- que, não obstante as diferenças radicais, coexistem harmoniosamente por um certo período.
O processo de trabalho de John Coplans é de outra ordem. O constante regresso ao seu corpo implica, para além da premeditada intenção de ter um ponto de partida universal (Coplans confessa dever a Philip Guston a idéia de aceder a um nível de universalidade pela utilização do seu corpo e da elisão do rosto, que constituiria uma determinação do particular, algo exterior a uma estratégia reflexiva radical, tendo assim evitado os inconvenientes dos chamados posicionamentos fundantes). A relação excessiva dos artistas com a vida e com o pensamento gera, não raras vezes, situações equívocas e de resultados duvidosos; de extremismos cosmológicos e de aprofundamentos de materiais o inferno está cheio.
No plano em que John Coplans organiza a apresentação do seu corpo, coincidem, harmonizando o forte envolvimento vital e cultural do autor, a simplicidade e a extrema elaboração. Descobre-se de imediato no trabalho de John Coplans uma utilização mínima de recursos que o tornam um modelo de sobriedade formal, mas ao mesmo tempo as suas imagens transportam uma acumulação de sentidos que curiosamente convivem habilmente com essa simplicidade.
Tornou-se fotógrafo, ou melhor, decidiu trabalhar com a fotografia numa fase já tardia da sua vida. Por outro lado, o seu passado, no sentido de uma lenta "Bildung", de uma longa vida que o confrontou com um vasto e profundo mundo de experiências humanas e artísticas, proporcionou-lhe um ponto de partida tardio, mas privilegiado. Coplans foi sempre um homem do ofício: participou diretamente das mais diversas guerras. Esteve próximo, até fisicamente, das origens de alguns dos fatos que mais configuram a vida da arte na segunda metade do século 20. Conviveu com eles e os refletiu. Mostrou-os. Foram estes os seus antecedentes.
No momento de se tornar fotógrafo, decidiu não se tornar pintor. O caricato da afirmação não é acidental: John Coplans estudou pintura e foi pintor, tendo interrompido (2), ou melhor, substituído, essa atividade pelas de estúdios de arte, fundador e redator de uma das revistas de arte mais famosas da cena contemporânea, diretor de museus e organizador de exposições. Poderia ter retomado a pintura, como uma atividade de reforma, ou ter preferido uma outra forma qualquer de intervenção artística.
Tal não aconteceu, e se isto corresponde a uma decisão, ela aponta muito as suas circunstâncias: após ter abandonado, por limite de idade, as funções que ocupava como diretor de museu, decidiu encontrar algo que lhe permitisse uma ocupação mais envolvente que a de espectador definitivo de televisão (Coplans "dixit"). Se a facilidade do argumento colhe de imediato simpatia, a complexidade dos resultados tornam suspeita a motivação.
Há poucos trabalhos na fotografia atual -na arte atual- tão decisivos e originais quanto os de J. Coplans. Qualquer fotografia dele que contemplemos nos dá de imediato a sensação de reconhecimento. E não existe, contudo, onde a procurar. O seu trabalho constitui já um grande e importante patrimônio absolutamente idiossincrático. Voltaremos a ele sempre que tivermos algo a (ha)ver com o corpo. Coplans encontrou o seu lugar, o seu próprio lugar, conforme ao seu saber e às possibilidades. Um local, no sentido mais concreto do termo, onde as suas possibilidades vitais e de saber se acharam para iniciar um trabalho crepuscular.
Esse tardio chegar à casa de John Coplans mostra-nos de uma maneira tão paradigmática o seu caminho que dificilmente poderemos satisfazer-nos com o acaso. Será melhor falar de toda uma série de encontros felizes. Encontros que traduziram por vezes renúncias e mudanças de direção. Há, no lento percurso que o conduz à fabricação do seu auto-retrato, uma longa digestão da contemporaneidade artística; que o tornou pintor, historiador, crítico, fotógrafo. A biografia o tornou pintor, escritor, crítico, fotógrafo. A biografia (e a bibliografia) de John Coplans dá-nos conta destes seus inumeráveis passos.
O resultado é a história de um corpo.
Pés que mais parecem patas de elefante, pés alongados, deformados e repartidos, mãos que contêm acidentes geológicos, porções de corpos. Posições de lutador, de punhos cerrados, ou de renunciante, procurando cobrir o rosto com alguma culpa do particular. Porções do corpo que aspiram à sua totalidade. Porções de corpo que se tornaram livres. Posições de odalisca. Partes de um tratado de anatomia e de um inventário de posturas para alunos de desenho.
O que resulta desse corpo que se transforma e se encerra em tão diversas e por vezes desvairadas formas de si? Falam-nos estas imagens de beleza, como o que foi, é e resta desta absurda condição de possuir um corpo que acolhe o tempo e se deforma. Ou da fealdade deste corpo, como se as deformações e outros acidentes deixassem transparecer uma vontade de esquecimento. Não creio que mereça acrescentar pontos de interrogação a estas perguntas. A sua eternidade e vulgaridade são-nos familiares. Também o seu caráter inevitável.
As fotografias de John Coplans são antropomórficas, investem de corpo humano o seu corpo humano. Aparentemente, a constatação é aberrante. Como pode um artista que se apropria (usa e abusa) da sua imagem -sem produzir gestos de imitação animal ou de objetos, sombras chinesas...- realizar um trabalho que escapasse a esta condição? Coplans desenvolve, porém, um trabalho sobre os limites desta condição. O corpo, as suas partes, os seus gestos e os seu movimentos remetem-nos nesta obra para um limite, onde a forma humana se aproxima da sua transformação: com morte, porque aí a sua consistência e a sua divisibilidade serão verificadas; com as texturas, enquanto zona fronteiriça de todas as configurações humanas possíveis. São antropomórficas como se investissem de formas humanas uma matéria originária indistinta e procurassem conhecer a capacidade dessa matéria para as receber.
Coplans estabelece ainda uma relação sutil entre a disponibilidade do corpo e a capacidade dessa matéria para as receber. Coplans estabelece aí uma relação sutil entre a disponibilidade do corpo e a capacidade receptiva da imagem fotográfica, procurando a grande dimensão da maioria das imagens, um outro exame dos limites das próprias dimensões do corpo humano e da fotografia.
Jogando com uma desenvoltura notável entre a forma e a condição, John Coplans criou, nos tempos conquistados à inevitável espera pela morte, uma obra original. Isto é a história de um corpo.


Jorge Molde é fotógrafo português.
O texto acima faz parte do catálogo da Retrospectiva Coplans organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa em 1992.

A exposição "John Coplans - Um Auto-Retrato" acontece no Paço das Artes (av. da Universidade, 1, Cidade Universitária, SP, tel. 011/813-3627) até o dia 12 de junho, de segunda a sexta, das 13h às 20h, e sábado, das 10h às 14h.



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