São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997.



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A FÚRIA DO TEATRO


Aos 60, o diretor José Celso Martinez Corrêa permanece o "enfant terrible" do teatro brasileiro
O decano do gozo

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
O diretor, ator e dramaturgo José Martinez Corrêa, 60, encenador de "O Rei da Vela" (1967), "Roda Viva" (1968) e "Bacantes" (1996)


NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

OTAVIO FRIAS FILHO
Diretor de Redação

O diretor José Celso Martinez Corrêa, 60, não é de falar pouco. Foram seis horas de entrevista, realizada em dois turnos, no teatro e em seu apartamento. Ele fala com a boca, com os braços, por vezes "em transe", como diz ter aprendido com Plínio Salgado. Relata a sua participação, adolescente, num centro cultural integralista de Araraquara, e como ajudou a dispersar um comício comunista.
Já estavam lá os sinais do artista que depois se deixaria levar pelo populismo nacionalista do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e que criaria o primeiro Oficina, de espetáculos como "Pequenos Burgueses".
Um caminho que levaria, no fim dos anos 60, ao modernista Oswald de Andrade e ao "Rei da Vela", também a "Roda Viva", já tomado pelo espírito de Artaud.
Foi preso e torturado pelo regime militar, não sem antes "desintegrar" a própria companhia. Depois de duas décadas de exílio e reconstrução, reabriu o teatro para temporadas comerciais com um repertório em que Artaud segue presente, bem como Oswald de Andrade.
Ergueu um novo Oficina em que identifica, como singulares, uma resistência à ordem liberal e uma inflexão no homoerotismo. Sempre iconoclasta, estréia mês que vem "Ela", peça de Jean Genet em que interpreta o papel do papa.
O "decano do ócio", como chegou a ser chamado, paradoxalmente trabalha muito. A qualquer hora que se visite o Oficina, no bairro do Bexiga, em São Paulo, é provável topar com algum ensaio em andamento.
Zé Celso, como sempre, tem muitos planos de encenação, uma enorme dificuldade para colocá-los em prática e uma verdadeira ojeriza pelo sucesso comercial. Recém-sexagenário, continua o "enfant terrible" do teatro, mesmo depois que todos os tabus caíram e todas as experimentações foram feitas.
da Reportagem Local e da Redação

O nacionalismo populista, o "brasilismo", como ele prefere, é uma marca do teatro de Zé Celso. Aqui o diretor identifica as divergências com a "esquerda tradicional" no seu passado ligado ao integralismo de Plínio Salgado, na juventude, e depois ao antiimperialismo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb).

Folha - Como é que um garoto tímido de Araraquara foi virando o Zé Celso, em São Paulo?
José Celso Martinez Corrêa -
Ah, sempre porque estava apaixonado, e no que eu estou apaixonado... Fui trabalhar no Arena, porque não sabia fazer nada. E o (diretor Augusto) Boal estava com uma liberdade enorme. O Boal dava liberdade, mas tinha o lado dogmático, do Seminário de Dramaturgia. O parâmetro do autor brasileiro como visto por aquela cabeça que, para mim, era colonizada. Eu sentia que não era aquilo.
Folha - O que era, então?
Zé Celso -
Eu já tinha um passado, em Araraquara, na tentativa dos integralistas de criar uma nova geração. Tinha um amigo chamado Plínio em homenagem ao Plínio Salgado. Era uma família de que eu gostava muito, que frequentava, por ter mais liberdade. Diziam, "leia 'Os Sertões', isso, aquilo", e havia as conferências, e eu ouvia Plínio Salgado falar. Ele falava muito bem. Eu tenho a impressão de que adquiri uma certa qualidade na fala de vê-lo falar. Os gestos de teatro. Passava a mão na testa, entrando num transe. Eu não conseguia embarcar naquelas coisas, das cerimônias militares. Agora, a fala do cara...
Folha - Como foi o episódio da dispersão do ato comunista?
Zé Celso -
Era um Comício da Panela Vazia. Eu não sabia de nada. Aliás, uma gente muito bonita. Hoje eu admiro os comunistas, pela coragem. Mas foi coisa de criança. A nossa turma, saindo do cinema, começou a fazer baderna contra o comício. Um deputado integralista aproveitou, e pegamos ele de escudo. Deram uma paulada nele, chegou polícia, jogou água. E no dia seguinte a professora de história disse, "vocês saíram no 'Repórter Esso' destruindo o comício comunista, vocês são exemplo para a juventude de amanhã".
Folha - Você era anticomunista?
Zé Celso -
Esse episódio não pode ser visto como "ah, era anticomunista". Quando ela elogiou eu fiquei "voduzado". Naquela sala tive meu primeiro contato com a engrenagem do Sartre. Estava na terceira série, 13 ou 14 anos. Levei um choque. O que para mim era entusiasmo, bagunça, tinha repercussão nacional, porque a Esso era contra comunistas. Fiquei de mau humor e foi aí que passei a desconfiar que era manipulado.
Folha - Vocês participavam do Centro Cultural Alberto Torres, um centro integralista.
Zé Celso -
Alberto Torres estava numa coleção, na biblioteca do meu pai. Era um estudioso do Brasil, pensou o Brasil. Ele teve e tem uma importância enorme na minha vida. E hoje eu reencontro esse pensamento no "Príncipe da Moeda", do Giba (Gilberto Vasconcelos, sociólogo), que situa muito a importância de Alberto Torres. Agora, no centro cultural nós éramos crianças, um grupo de amigos. A gente se reunia em torno disso que apareceu.
Folha - Eram vários centros.
Zé Celso -
É, espalhados pelo Brasil. Em cada lugar um nome, Euclides da Cunha, outros. Eles nos chamavam de Águias Brancas. (ri) A gente não tinha a menor idéia do que havia por trás. Mas tem aí um lado do meu amor pelo Brasil, por Villa-Lobos, por Getúlio (Vargas, ex-presidente). Pelo populismo, pelo (ex-governador Leonel) Brizola, meu amor confesso, declarado, total pelo Brizola. Todos esses pecados (ri).

Eu escrevi outro dia sobre um comentário que o (colunista da Folha Arnaldo) Jabor fez de teatro. Fui respondido oralmente. Ele disse que eu estava, como o Glauber (Rocha, cineasta) nos últimos anos dele, louco. Me fez este elogio. E de repente vem este livro que revela a intuição do Glauber. Eu gosto porque o Giba vê no Glauber uma leitura do Brasil. Tem um artista ali, mas também um Padre Vieira. Digo Glauber, mas nós fomos formados por um outro, Hélio Rocha, um grande orador que percorria o Brasil em conferências nos centros culturais. Tivemos essa mesma formação, que depois foi para a esquerda, para o Iseb. E o Glauber antevia. Na esquerda tradicional, paulista, essa que está no poder, hoje à direita, faltava um sentimento de povo novo, da especificidade desta civilização. O Glauber chegava e dizia, "essas pessoas te odeiam".
Folha - Você foi acusado depois de irracionalismo.
Zé Celso -
Mas o irracionalismo vem exatamente da concepção acadêmica positivista, colonizada. Em que tudo o que não está naquele padrão de racionalidade é irracional. É até engraçado, porque eu sou profundamente racional. O (pesquisador de teatro Luiz) Fernando Ramos defendeu agora uma tese na USP em que compara "Cacilda" com as peças do (dramaturgo Samuel) Beckett e do Brecht, e me vê como racionalista. Mas um racionalista iluminado, mais próximo do Brecht. E de fato, se você estudar meu trabalho, é profundamente racional. Só que a razão aí não é a do colonizador.
Folha - A crítica do (professor de literatura) Anatol Rosenfeld...
Zé Celso -
Que é um excelente homem da cultura, mas faltava a ele a compreensão da especificidade do Brasil. É a mesma coisa. Está ligado à rejeição do Oswald de Andrade na USP. Oswald não entrou no pensamento de São Paulo.
Folha - Figuras como você e Oswald contrastam, em São Paulo.
Zé Celso -
Contrastam, e sofrem com isso. A cultura paulista é a do café e depois a da burguesia industrial. Uma cultura de classe.
Folha - A citação de Rosenfeld era mais no sentido...
Zé Celso -
Tanto a dele como a do (professor de literatura) Roberto Schwarz. Uma idéia eurocêntrica não perceberia, e São Paulo sempre foi uma feitoria internacional. A classe dominante de São Paulo, inclusive a sua esquerda, ainda não descobriu o Brasil. Tem uma cultura de feitoria.
Folha - O irracionalismo seria um risco para a democracia.
Zé Celso -
Mas foi uma democracia que mandou Sócrates tomar cicuta. Eu acho que não tem democracia nenhuma, hoje. Eu estou convidado a tomar cicuta, só que não vou, porque eu acredito que o Brasil vai... Aquele lugar da rua Jaceguai, o Oficina, é um foco de esmagamento, das secretarias de Cultura, do Ministério Público. Não é desinteresse, é rejeição explícita. Realmente o Glauber tem razão. Eles odeiam. Agora, isso tudo toca no toque. Schwarz escreveu um artigo sobre "Roda Viva", essa coisa do teatro da agressão, e o Anatol também, sobre "Gracias Señor". Em "Gracias Señor" eu tive a audácia de tirar os óculos e dar um passe nele, com plantas. Eu tive a generosidade de tentar vê-lo fora da figura, porque eu gostava, gosto dele. Aquele guarda-chuva, aquele professor alemão clássico...
Por outro lado, fui carregado pelo (físico) Mário Schenberg. Esse sim. Na cena da morte, eu ficava sem falar, lobotomizado. Era o primeiro ano do Médici no poder. O Schenberg, já um senhor, me pôs nas costas e subiu a escadaria do Ruth Escobar até a rua. São pessoas que usam a razão, mas sabem que tem razão no toque, no corpo. E o teatro é o lugar disso.
Folha - Mas, alemães os dois, eles não olham atrás e vêem...
Zé Celso -
Nietzsche.
Folha - ... o nazismo?
Zé Celso -
Mas aí é que está. Não é por isso que todo sentimento fica proibido. Os dois vinham do horror e interpretaram Brecht no medo, no pavor de tudo o que não estivesse enquadrado pela razão. O que eles chamam de razão.
Folha - O ator Renato Borghi conta da sua aproximação do Iseb, que você frequentava muito naquele início dos anos 60.
Zé Celso -
Gostava muito. Era exatamente aquele espírito, maravilhoso. O Guerreiro Ramos.
Folha - O nacionalismo isebiano.
Zé Celso -
Essa palavra, nacionalismo, não bate. Eu digo que eu sou brasilista. Eu gosto desta cultura. É você não estar condenado a uma forma que o precedeu. É encontrar um caminho específico. É isso das mediações, que o Sartre falava na "Crítica da Razão Dialética". Por exemplo, o negro não é só um ex-escravo que vai entrar no mercado de trabalho. É gerador de uma cultura nova, que está no candomblé, na música. E o Brasil é diferente. O Iseb, aliás, era antiimperialista, anti-sociedade global, digamos. "A Engrenagem", do Sartre, na campanha do general Lott contra o Jânio (Quadros, ex-presidente), era assim. Diariamente, no teatro, era muito quente isso, com as conferências desses caras, que eram geniais.
Folha - Quem eram eles?
Zé Celso -
Roland Corbisier, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré, nomes que vão ser muito lembrados de agora em diante. E aquilo acontecia também na Escola Superior de Guerra, o que era bonito, e atingia o general, o candidato. Chegar a Brasília era fácil, as portas se abriam. Essas idéias tinham poder, e eram inéditas. Havia uma facilidade, um fluxo favorável. Basta dizer que o primeiro Oficina a gente construiu em oito meses.


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