São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997.



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A FÚRIA DO TEATRO
A era tropicalista

da Reportagem Local e da Redação

Entre setembro de 67 e setembro de 69, Zé Celso estreou quatro encenações que expressaram, no teatro, o chamado tropicalismo, que retomava ideais modernistas. Pela ordem, "O Rei da Vela", "Roda Viva", "Galileu Galilei" e "Na Selva das Cidades".
O diretor revela que foi Ruggero Jaccobi, dissidente do TBC, quem redescobriu o teatro de Oswald de Andrade, rejeita a acusação de que "Roda Viva" afastou o público do teatro e aponta "Na Selva das Cidades" como a montagem que "desintegrou" o Oficina.

Folha - O que o levou a se aproximar de Oswald de Andrade?
Zé Celso -
Eu vinha da França, onde tinha visto todos os filmes de Buñuel. Foi na leitura do Renato (Borghi) do "Rei da Vela", e depois de uma entrevista que o Renato deu. A insatisfação dele diante de tudo, no que foi a premonição, realmente, do tropicalismo.
Folha - Ele já tinha ligação com os cantores do rádio, a revista.
Zé Celso -
Tanto que queria ser cantor. Tinha referência da chanchada, do Mesquitinha. Mas aí, com tudo funcionando, "Quatro num Quarto" com filas enormes, eu pude pagar um tempo de ler todo o Oswald. E ele me fez entender o Brecht, a rádio Nacional, me deu uma visão. E de repente a gente estava pensando de maneira diferente, não batia com nada.
Nesse meio tempo, o (cenógrafo) Flávio Império riscou o novo teatro, depois do incêndio. A (pesquisadora de teatro) Maria Tereza Vargas, no livro que está escrevendo sobre o Oficina, tem um depoimento em que ele diz, "é uma maravilha a natureza pôr fogo. Eles não sabem o que estão ganhando". E ele construiu o teatro de acordo com as minhas idéias brechtianas, palco pelado, giratório.
Ensaiando a peça, fui ver "Terra em Transe" e era a mesma coisa. Dediquei a peça ao Glauber (Rocha). Caetano (Veloso, músico) viu "Rei da Vela" na estréia e disse, "Puxa, é a mesma coisa". As coisas começaram a plugar e tudo ganhou expressão, um sentido.
Folha - Oswald de Andrade foi o operador totêmico para vocês todos, não foi? Em termos de juntar influências num todo orgânico.
Zé Celso -
Exatamente, para toda uma geração. Glauber, Caetano eram fãs dele. E este ponto fundamental, de que Oswald de Andrade tinha esse modo de ser paulista. O que ele estabelece aqui, o modernismo e as consequências dele, é tão fértil quanto o candomblé na Bahia. Aliás, a Bahia, quando encontrou Oswald, deu na explosão do tropicalismo. O modernismo, a antropofagia, o teatro do Oswald são uma riqueza que São Paulo ignora e que São Paulo tem.
Folha - (O crítico de teatro) Décio de Almeida Prado lembra que, quando leu nos anos 40, achou "O Rei da Vela" datada.
Zé Celso -
Eu achei agora a eternidade da peça, numa nova leitura do Renato. O Oswald foi um dos homens mais ricos de São Paulo e teve uma experiência imensa da burguesia. Em "O Rei da Vela", ele flagra o Brasil. E eu sinto hoje que ele varou a guerra, o muro de Berlim, a queda do comunismo. Aliás, o comunismo dele já era o dos profetas, o dos índios.
Folha - Foi (o diretor e crítico italiano) Ruggero Jaccobi o descobridor de "O Rei da Vela"?
Zé Celso -
Foi ele que apresentou ao (jornalista Luiz Carlos) Maciel. Ruggero veio para o Brasil, mas ainda pegou Marinetti, o futurismo. Aqui, ficou encantado com as peças do Oswald, e espantado porque ninguém conhecia. Levou aos alunos no Rio Grande do Sul, onde foi exilado depois de dirigir "A Ronda dos Malandros" no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). A peça era um escândalo de antiburguesa e o Franco Zampari (proprietário do TBC), os industriais de São Paulo, que eram o público, colocaram ele para fora. Aí ele apresentou "O Rei da Vela" ao Maciel, que era aluno dele e que ficou louco para montar. Até que, num laboratório no Oficina, o Maciel nos mostrou a peça.
Folha - Como era a platéia do "Rei da Vela"? Como você compara com a sua platéia, hoje?
Zé Celso -
Era diferente. Nós tínhamos ainda a platéia clássica dos sábados. De repente, no "Rei da Vela", um público emergiu com a gente. A peça terminava com esse público gritando histericamente. Aí tinha dias em que a platéia clássica, dos quatrocentões, jogava ovos, chamava Oswald de Andrade no peito. Foi uma reação, mas como havia esse corpo novo... Principalmente depois do Rio. A peça explodiu mesmo no Rio, junto com "Roda Viva".
Folha - Artaud. Quando foi que você teve contato com Artaud?
Zé Celso -
Foi junto com o Oswald, porque ele imediatamente espalha o campo das mediações e acaba tocando no Artaud. Em "Roda Viva", do Chico (Buarque, músico), o Artaud também me veio forte. "Roda Viva", que era um coro, vira uma tribo faminta, um corpo sem órgãos. No comportamento coletivista, era de uma crueldade devoradora, de um apetite quase inenarrável.
Folha - A peça sofreu ataques de violência em Porto Alegre, São Paulo. Por que ela foi tão focalizada por esses ataques?
Zé Celso -
Ah, porque era a consagração de tudo o que é reacionário. Você faz a exaltação, faz o mesmo rito, tem a mesma adesão, para no auge fazer o estupro disso. E o estupro era feito por um coro que trazia no corpo uma maneira artaudiana, que não se adaptaria ao regime que foi imposto. Tanto que boa parte enlouqueceu.
Folha - A crítica de agressão ao público foi para "Roda Viva"?
Zé Celso -
Em "Roda Viva" o coro ocupava o espaço todo e se comunicava fisicamente, tocava a platéia. Aí é que começou.
Folha - A pergunta que virou clichê: essa hostilização não foi o que afastou o público do teatro?
Zé Celso -
É mentira. "Roda Viva" atraía multidões. Os atores traziam no corpo todas as revoluções que depois seriam compartimentadas, a ecologia, o sexo, as drogas. Aquilo surgiu como um ritual índio, artaudiano, e começou a abrir para um teatro de multidão. O teatro brasileiro tinha sido conquistado pela burguesia com o TBC, e ela se deleitava à distância. Com a transformação aquele palco caiu e surgiu um pacto ritual mais selvagem, potente. E com enorme adesão de público. Foi aí, realmente, que os defensores centrais do establishment se mobilizaram, através do Exército, para o ataque.
Folha - A polícia nunca protegeu vocês, oficialmente?
Zé Celso -
A polícia protegia sim, também. A Ruth Escobar (produtora de "Roda Viva") botava umas pessoas da Polícia Federal, o que era muito estranho porque ela já estava toda infiltrada. E as companhias organizavam suas defesas. Eu tinha ameaças por telefone, escreviam em vermelho no apartamento, "vamos te capar". Ensaiei "Galileu", do Brecht, foragido. É que a coisa ganhou uma força enorme, uma força de contágio. E foi um massacre, que se configurou no AI-5 (Ato Institucional nš 5), um texto cultural.
Folha - Você estava com que peça quando foi baixado o AI-5?
Zé Celso -
Eu não queria mais fazer "Galileu", que tinha sido o sonho da minha vida. Achava que tínhamos que seguir no caminho aberto por "Roda Viva". Mas disse, "vamos fazer como quem faz boulevard, para ganhar dinheiro". E consegui colocar o coro de "Roda Viva" no "Galileu", o que deu uma tensão belíssima. Quando veio o AI-5, exatamente no dia da estréia de "Galileu", eu acho que houve até um certo alívio, de um teatro mais corporativo.
Folha - Você fechou os anos 60 com outro Brecht, em seguida.
Zé Celso -
"Na Selva das Cidades" é uma das encenações mais lindas que eu já fiz, e é a origem deste espaço, como está hoje. Foi muito importante porque me pôs em contato com Lina (Bo Bardi, arquiteta e cenógrafa), e a Lina já começou no teatro com o ringue de boxe e a demolição.
Folha - O que é o ringue de boxe?
Zé Celso -
A peça tem 11 rounds. Em cada round ela destrói uma instituição, até destruir o próprio ringue. No final, os atores estão tirando o chão do teatro e chegando na terra. "Na Selva das Cidades" foi a primeira peça que a gente fez sem nenhum compromisso externo. Não dava mais para tocar em nada, explicitamente. Fez porque gostava. E foi maravilhoso, mas também foi a ruptura. O grupo começou a se desintegrar, e houve também a opção por desintegrar a instituição. A gente estava próximo de um poder, mas sentia que ia virar instituição morta. Quer dizer, 68 não iria se adaptar, e eu optei pelo outro lado.
Foi quando decidimos sair pelo Brasil viajando. Mas antes nos juntamos e ainda conseguimos criar, também com a Lina, "Gracias Señor", que é a peça mais... Em ligação com Artaud, é o fim do teatro da representação mesmo. Daí a acusação de que espantou do teatro, destruiu o teatro.



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