São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997.



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LIVROS-PRIMEIRA LEITURA
Nos extremos da lucidez e da paixão



Livro refaz a polêmica trajetória do padre Charbonneau nos dez anos da morte do educador e ensaísta
da Redação

Uma série de eventos homenageia no próximo dia 13 os dez anos da morte do padre Paul-Eugène Charbonneau -ocorrida em 11 de setembro de 1987-, professor, ensaísta e autor de cerca de 45 livros.
Entre eles, haverá o lançamento do livro "Charbonneau - Ensaio e Retrato", escrito pelo poeta e artista plástico Alberto Martins, do qual a Folha reproduz a seguir a "Introdução" (leia sobre as demais homenagens nesta página).
Nascido em 1925, em Sainte-Agathe-des-Monts, província de Québec, Canadá, o padre Paul-Eugène Charbonneau desembarcou no Brasil em 4 de abril de 1959 com a missão de ensinar filosofia no Colégio Santa Cruz, em São Paulo. Logo se envolveu num sem-número de atividades, que iam desde o apoio à reforma agrária até a defesa da pílula anticoncepcional, passando por uma infinidade de assuntos polêmicos, como a arbitrariedade da censura sob o regime militar, os dilemas da ética no capitalismo ou a difusão das drogas entre as novas gerações.
Sua obra ensaística (editada também na França, Itália, Espanha, Canadá e Portugal) desenvolveu-se em conjunto com as atividades de professor e conferencista, sendo caracterizada por um desejo de intervir no meio brasileiro. A partir de 1980, tornou-se colaborador regular da Folha, atividade da qual resultaram dois livros: "O Brasil - Hora de Desafio" (1982) e "O Brasil - Hora de Perplexidade" (1984), editados pela Almed.

ALBERTO MARTINS


Québec, meados dos anos 40. O professor entra na sala de aula e depara com um acontecimento incomum: o quadro-negro, feito de ardósia, tem uma de suas extremidades quebrada. Depois de alguns segundos de perplexidade, ele concebe a única explicação plausível: "Ah! Foi o Charbonneau".
O episódio, que ficaria célebre no ambiente tranquilo do Scolasticat Sainte-Geneviève, prenuncia dezenas de outros que se desenrolariam mais tarde em terras brasileiras, tendo como coadjuvantes sólidas mesas de madeira e fórmica. Mais do que anedotas, tais atos desenham uma figura de energia incomum, que mal cabia em si mesma e precisava ligar-se ao mundo, aos outros, dia e noite, de modo visceral.
Nas palavras de um colega canadense, ele era "toujours trop". Sempre demais. Sempre em excesso. "Tinha todos os ingredientes para tornar-se um rebelde, um delinquente. Bastava vê-lo jogando hóquei: o ímpeto, a violência mesmo, com que se lançava sobre o adversário. Com uma força desmesurada e absolutamente sem medo."
Paul-Eugène Charbonneau conservaria ao longo de toda sua vida traços dessa força desmedida, não-polida e não-policiada. Provavelmente porque esta lhe era -física e espiritualmente- necessária. Quem sabe também se recordasse do versículo de Mateus, "O reino dos céus sofre violência e só os violentos o arrebatam". O fato é que, arrebatado, durante os 28 anos em que viveu no Brasil, Charbonneau bateu-se incansavelmente -como se o bater-se por uma causa boa fosse o que de mais belo tinha a oferecer à existência.
Flávio di Giorgi, que conviveu anos a fio com o padre Eugênio -como os amigos lhe chamavam- no Colégio Santa Cruz, observou que suas aulas de filosofia continham em doses equivalentes plano e paixão: "Um sólido arcabouço lógico permeado por um arrebatamento de sensibilidade e de emoções, a cada período do discurso". A observação, no fundo, vale para toda a sua pessoa. Afinal, em tudo o que fazia, Charbonneau revelava, de um lado, a disciplina de um tomista, que encadeia com lógica cada argumento, cada passagem de uma exposição; de outro, a irreverência de um homem do Novo Mundo, que sabe que tudo aquilo que se formaliza depressa demais tende a se transformar numa máscara do real.
Graças a esse conflito constante entre a mente que ordena e um coração dado a rompantes, Charbonneau desenvolveria em alto grau a capacidade não só de se adaptar a todo tipo de mudanças, mas de -tal como a biruta no teto dos aeroportos- pressenti-las a tempo. Assim, não surpreende que um país como o nosso, que passou os últimos 30, 40 anos beirando os mais graves desequilíbrios, tenha se revelado um campo fértil para o exercício de seus talentos.
Movido a desafios, Charbonneau enxergou no Brasil um país em vias de formar-se e que, por isso mesmo, necessitava desesperadamente de formadores. Mas não só isso. Tendo experimentado no próprio Québec, sociedade bem mais estruturada do que a nossa, o jogo de tensões que se estabelece entre instituições sedimentadas e formas sociais que se modernizam. Charbonneau, desembarcando em São Paulo em 1959, logo percebeu que no Brasil -como de resto em toda a América Latina- esse processo não se faria sem o risco de rupturas irremediáveis. Talvez por isso tenha se aventurado como poucos por campos na aparência tão distantes quanto a questão agrária e a moral conjugal, os dilemas da ética no mundo capitalista e o consumo de drogas por parte dos jovens. É que, na cerrada conjuntura dos problemas brasileiros, todos os temas lhe apareciam inextrincavelmente interligados.
A essa urgência constante de intervir somava-se sua capacidade de sintonizar, no ato, aquilo que seus interlocutores não só queriam, mas necessitavam ouvir. Cerca vez, quando se encontrava no Norte do Brasil proferindo uma conferência em nome da Escola de Paris, Charbonneau começou a falar e, logo depois, no meio da frase, fechou a pasta que trazia à sua frente, com o esqueleto da palestra todo anotado. Percebera subitamente que o discurso elaborado em São Paulo não poderia ser apresentado da mesma maneira em Manaus. Deu um jeito de cutucar o colega ao lado, para que este tivesse tempo de reordenar seu pensamento, e engatou, sem que a platéia se desse conta, num novo trem de idéias.
Esse talento natural para perceber o fator de mudança, quando tudo em torno parecia fadado ao impasse, receberia um impulso extraordinário com as conclusões do Concílio Vaticano 2º -que impeliu a igreja vigorosamente na direção do mundo moderno, rompendo antigas alianças e instaurando um ambiente de rigoroso e profundo "aggiornamento". Para Charbonneau, que já tinha propensão à mudança, a oposição entre o novo e o arcaico passaria a funcionar como paradigma para todo tipo de conflitos, desde o antagonismo entre pais e filhos, onde isso é nítido, até as relações entre igreja e Estado em plena ditadura brasileira.
Vale lembrar que Charbonneau, intelectual católico, nem sempre se posiciona incondicionalmente ao lado de um ou de outro desses pólos. Mas parece guardar uma distância dialética entre um e outro, atuando um pouco como o lastro dos navios, ora tombando rumo ao passado, ora precipitando-se naquilo que imagina ser o futuro. Exemplo dessa ação antitética é sua disposição contínua para inovar dentro da tradição: ser vanguarda, então, é questionar ao extremo um determinado conhecimento que já se torna enrijecido sob o peso de injunções passadas até que o próprio passado, revelado de outra forma, dê à luz o novo. Desse modo, ele dirá: "Estamos convencidos de que não salvaremos a tradição da estagnação senão revigorando-a pela descoberta de novas soluções, aparentemente contrárias a esta tradição, mas no fundo diretamente enraizadas nela e conforme a seu Espírito". Por isso a ruptura é, para Charbonneau, uma forma de continuidade.
Talvez uma boa maneira de apreender esse processo seja retornando ao seu conflito inicial. No que toca à inteligência, Charbonneau foi, antes de tudo, um intelectual dialógico, que necessita dos outros para pensar. Parte quase sempre de uma compreensão geral dos problemas para em seguida, paciente e metodicamente, exaurir todos os pontos de vista existentes a respeito. É no confronto das diferentes opiniões, nesse jogo de apartes, rebates, rasuras e emendas, no calor mesmo da discussão, que vai forjando seu pensamento pessoal. A irreverência desempenhava então, ao lado do rigor, papel central: era a ferramenta que o ex-jogador de hóquei empregava para deslocar o adversário, furar o bloqueio e entrar diretamente no cerne dos problemas.
Quanto à paixão, esta era, em essência, uma paixão do movimento. Se algo o escandalizava era a imobilidade, o comodismo, a estagnação. Daí sua busca -paradoxal num homem extremado- pelo equilíbrio. Não equilíbrio estático, ponto morto de vetores que se anulam. Mas equilíbrio dinâmico, cujo eixo só se encontra em plena ação. Mais do que meta ou projeto, tal busca era uma necessidade intrínseca. Afinal, ele mesmo ponderara, a certa altura de "O Homem à Procura de Deus" (1981): "Toda força tem necessidade de um centro que a ordene, sem o que ela se torna destrutiva".

Este livro foi, desde o começo, não uma biografia, mas um ensaio -no duplo sentido de aproximação e exercício intelectual- e um retrato -tentativa de desenhar uma figura, a partir da leitura de suas obras, da pesquisa em alguns arquivos e do relato de seus amigos. Quem sabe os contornos da figura possam finalmente ser inscritos aí, nos extremos de lucidez e paixão, no desejo de um dinamismo todo especial, de um centro em constante movimento.

A OBRA
Charbonneau - Ensaio e Retrato - Alberto Martins. Ed. Scipione Cultural (pça. Carlos Gomes, 46, CEP 01501-040, SP, tel. 011/239-2255). 256 págs. R$ 29,90.



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