São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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LIVROS

A vida em cacos



O escritor francês Michel Houellebecq vem ao Brasil para lançar o polêmico romance "Partículas Elementares"

da Redação

Desde que foi lançado, em agosto de 1998, o romance "Partículas Elementares", de Michel Houellebecq, dividiu a cena intelectual francesa. Foi considerado, por um lado, "reacionário" e, por outro, como o primeiro "romance não-humanista a antecipar o século 21".
Para marcar o lançamento da obra no Brasil, pela Editora Sulina neste mês, o escritor falará na Folha, na quinta-feira, dia 4 de novembro. Houellebecq participará do debate "A Literatura Hoje e o Que Resta da Cultura Francesa". Os convidados, além do autor, são a crítica literária Leda Tenório da Motta e o escritor Cristovão Tezza. O encontro será mediado pelo jornalista e escritor Bernardo Ajzenberg, secretário de Redação da Folha.
O evento será às 19h30, no auditório do jornal (al. Barão de Limeira, 425, 9º andar, Campos Elíseos, região central).
A entrada é franca. Os interessados devem fazer reservas, das 14h às 17h, pelo telefone 0/xx/11/224-3473, na quarta e na quinta-feira.
"Partículas Elementares" trata da vida de Michel e Bruno, dois meio-irmãos. O primeiro é um pesquisador que passa seus dias tentando decifrar o DNA humano. Escritor amador, Bruno, o outro irmão, leva uma vida sexualmente frustrada, marcada por uma série de desastres patéticos.
Vivendo em uma sociedade controlada, que sufoca a liberdade do indivíduo, Bruno e Michel nada mais são do que "partículas", a ponto de se confundirem ao longo do romance.
Leia, a seguir, o segundo capítulo do livro, em que ficam evidentes as razões de sua polêmica recepção: uma mescla bem construída de ciência, sexo e comentários sobre a sociedade contemporânea.

MICHEL HOUELLEBECQ

Numa comunicação feita na Academia de Berlim, em 14 de dezembro de 1900, intitulada "Zur Theorie des Geseztes der Energieverteilung in Normalspektrum", Max Planck apresentou, pela primeira vez, a noção de quantum de energia, a qual deveria desempenhar papel decisivo na evolução posterior da física. Entre 1900 e 1920, principalmente sob a impulsão de Einstein e de Bohr, modelizações mais ou menos engenhosas tentaram integrar o novo conceito no quadro das teorias anteriores; este só foi visto como irremediavelmente condenado a partir do início dos anos 20.
Se Niels Bohr é considerado como o verdadeiro fundador da mecânica quântica, não é somente em razão de suas descobertas pessoais, mas sobretudo do extraordinário ambiente de criatividade, de efervescência intelectual, de liberdade de espírito e de amizade que soube criar em torno de si. O Instituto de Física de Copenhague, fundado por Bohr em 1919, acolheria todos os jovens pesquisadores europeus. Heisenberg, Pauli, Born formaram-se ali. Um pouco mais velho do que eles, Bohr era capaz de passar horas a discutir detalhes das hipóteses deles, numa mistura única de perspicácia filosófica, de benevolência e de rigor. Preciso, quase maníaco, não tolerava nada de aproximativo na interpretação das experiências; mas nenhuma idéia nova lhe parecia a priori absurda, nenhum conceito clássico intangível.
Gostava de convidar os estudantes para encontros na sua casa de campanha, em Tisvilde, onde recebia cientistas de outras disciplinas, políticos, artistas; as conversas passavam livremente da física à filosofia, da história à arte, da religião à vida cotidiana. Nada de comparável tinha-se produzido desde os primeiros tempos do pensamento grego. Foi nesse contexto excepcional que se elaboraram, entre 1925 e 1927, os termos essenciais da interpretação de Copenhague que, em ampla medida, invalidava as categorias anteriores do espaço, da causalidade e do tempo.
Djerzinski não conseguiu, de modo algum, recriar em torno dele tal fenômeno. O ambiente dentro da unidade de pesquisa que dirigia era, nem mais nem menos, um ambiente de escritório. Longe de serem os Rimbaud do microscópio, segundo a representação de um público sentimental, os pesquisadores em biologia molecular são, na maior parte das vezes, honestos técnicos, sem gênio, que lêem "Le Nouvel Observateur" e sonham com férias na Groenlândia.
A pesquisa em biologia molecular não exige nenhuma criatividade, nenhuma invenção; é, em realidade, uma atividade quase completamente rotineira que não requer mais do que razoáveis aptidões intelectuais de segundo nível. As pessoas fazem doutorados, defendem teses, enquanto dois anos de estudos depois do segundo grau seriam mais do que suficientes para manobrar os aparelhos.
"Para conceber a idéia do código genético, para descobrir o princípio da síntese de proteínas, aí, sim, precisa-se molhar um pouco a camiseta", gostava de dizer Desplechin, diretor do departamento de biologia do CNRS. "De resto, observe-se que foi Gamow, um físico, o primeiro a meter o nariz no caso. Mas a decodificação do DNA, pfff... Decodifica-se, decodifica-se. Faz-se uma molécula, faz-se outra. Alimenta-se um computador com os dados, o computador calcula as subsequências. Envia-se um fax ao Colorado: eles fazem o gene B27, nós, o C33. Trabalho de cozinha. De tempos em tempos, há um insignificante progresso de aparelhagem; em geral isso basta para ganhar o Nobel. Bricolagem, brincadeira."
Na tarde de 1º de julho fez um calor esmagador; uma dessas partes que terminam mal, em que o temporal acaba por desabar, dispersando os corpos nus. A sala de Desplechin dava para o passeio Anatole France. Do outro lado do Sena, no passeio das Tulherias, homossexuais circulavam ao sol, discutiam a dois ou em pequenos grupos, dividiam as toalhas. Quase todos estavam de fio dental. Os músculos, embebidos de protetor solar, brilhavam na luz; as nádegas eram luzidas e torneadas. Jogando conversa fora, alguns massageavam os órgãos sexuais através do náilon das sungas ou deslizavam um dedo, descobrindo os pelos pubianos, o começo do falo.
Perto da vidraça, Desplechin havia instalado uma luneta. Ele próprio, segundo os boatos, era homossexual; em realidade, fazia alguns anos, era sobretudo alcoólatra mundano. Numa tarde como aquela, tentou por duas vezes masturbar-se, com o olho colado na luneta, fixando com perseverança um adolescente que deixara escorregar a sunga e cujo pau entabulava uma emocionante ascensão. O seu próprio sexo, porém, recaíra, flácido e enrugado, seco; não insistiu.
Djerzinski chegou às 16 horas em ponto. Desplechin tinha pedido para vê-lo. O caso dele o intrigava. Era, certo, comum, que um pesquisador tirasse um ano sabático para trabalhar noutra equipe, na Noruega, no Japão, enfim, num desses países sinistros onde os quadragenários se suicidam em massa. Outros -caso frequente durante os "anos Mitterrand", época em que a voracidade financeira atingiu proporções inusitadas- procuravam capital de risco e fundavam uma empresa para comercializar determinada molécula; alguns, de resto, haviam construído, em pouco tempo, fortunas confortáveis, rentabilizando com mesquinhez os conhecimentos adquiridos durante os anos de pesquisa desinteressada. Mas a disponibilidade de Djerzinski, sem projeto, sem objetivo, sem a menor ponta de justificação, parecia incompreensível. Aos 40 anos, era diretor de pesquisa, 15 cientistas trabalhavam sob as suas ordens, e só dependia -em tese, nada mais do que isso- de Desplechin. A sua equipe obtinha excelentes resultados e era considerada como uma das melhores da Europa. Em suma, o que não andava bem?
Desplechin forçou o dinamismo da voz: "Você tem projetos?". Houve um silêncio de 30 segundos, antes que Djerzinski dissesse sobriamente: "Refletir". A coisa iniciava mal. Forçando o entusiasmo, insistiu: "No plano pessoal?" Fixando o rosto sério, de traços agudos, olhos tristes, à sua frente, sentiu-se, repentinamente, soterrado pela vergonha. No plano pessoal, não é? Ele mesmo tinha ido buscar Djerzinski, 15 anos antes, na Universidade de Orsay. A escolha não podia ter sido melhor: os bons resultados acumularam-se. Se o CNRS mantivera-se bem colocado, entre os europeus, na pesquisa em biologia molecular, devia isso, em grande parte, a Djerzinski. O contrato tinha sido, amplamente, cumprido.
"Naturalmente manteremos os seus acessos aos dados informatizados", terminou Desplechin. "Deixaremos ativos os seus códigos de acesso aos resultados estocados no servidor e à conexão Internet do Centro; tudo isso por tempo indeterminado. Se tiver necessidade de mais alguma coisa, estou à sua disposição."
Depois que o outro foi embora, Desplechin aproximou-se novamente das vidraças. Transpirava um pouco. No passeio em frente, um jovem moreno, de tipo norte-africano, tirava o short. Existiam ainda verdadeiros problemas em biologia fundamental. Os biólogos pensavam e agiam como se as moléculas fossem elementos separados, somente unidos através de atrações e de repulsões eletromagnéticas. Estava convencido de que nenhum deles tinha ouvido falar do paradoxo EPR, das experiências de Aspect. Nenhum tinha sequer procurado informar-se dos progressos realizados em física desde o começo do século; possuíam, mais ou menos, a mesma concepção de átomo de Demócrito. Acumulavam dados, pesados e repetitivos, com o único objetivo de alcançar aplicações industriais imediatas, sem nunca tomar consciência de que a base conceitual de seus procedimentos estava minada.
Djerzinski e ele mesmo, graças à formação em física, eram provavelmente os únicos no CNRS a se darem conta disso: assim que se abordassem realmente as bases atômicas da vida, os fundamentos da biologia atual rebentariam em cacos. Desplechin meditou sobre essas questões enquanto a noite caía sobre o Sena. Era incapaz de imaginar os caminhos que a reflexão de Djerzinski poderia tomar; não se sentia nem sequer em condição de discutir com ele a esse respeito; era quase um sexagenário; no plano intelectual, sentia-se completamente esgotado. Os homossexuais já tinham debandado e o passeio estava deserto. Não conseguia se lembrar da sua última ereção. Esperava a tempestade.


Tradução de Juremir Machado da Silva.


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