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O DEUS DAS PEQUENAS COISAS
ASPIRAÇÃO SECULAR E LEGÍTIMA DA SOCIEDADE
NORTE-AMERICANA EM MELHORAR AS CONDIÇÕES DE VIDA DAS GERAÇÕES FUTURAS SE DEGRADOU EM CONSUMISMO EXCESSIVO E NO FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO
por Russell Banks
Como cidadão dos Estados Unidos, um bom número de coisas me choca ultimamente -como
consternadoras, lamentáveis e assustadoras.
A mais assustadora é a maneira como a parte de
delírio evoluiu neste país no último quarto de século: de
marginal ela se tornou central. Hoje uma visão delirante
domina quase todas as nossas percepções da realidade social, sobretudo em política e em economia.
Paralelamente, e talvez em conseqüência direta disso, o
sonho americano -sonho secular perfeitamente honroso, mesmo que às vezes fosse pouco realista, de um progresso econômico constante graças ao qual cada geração
se beneficiaria dos sacrifícios da anterior e se apoiaria em
suas realizações financeiras e educativas para alcançar
uma meritocracia menos imperfeita-, esse bom e velho
sonho, portanto, viu-se deslocado e substituído pelo pesadelo de uma incitação ao consumo excessivo, tão desmesurado quanto cego e descontrolado. Trata-se de um pesadelo ao mesmo tempo assassino e suicida. Assassino em
relação àqueles que desejariam nos despertar e suicida para os que mergulharam no sonho. Tornamo-nos uma nação de sonhadores homicidas.
A visão de mundo secular e temporal que era a nossa deu
lugar a uma visão religiosa atemporal. Como isso aconteceu? O risco de que a religião dominasse a consciência nacional sempre existiu, mas era mais ou menos mantido em
xeque pela confiança igualmente poderosa que depositávamos na razão e por nossa teimosia em separar a igreja
do Estado. Ora, durante as últimas duas décadas a balança
pendeu claramente para o lado religioso, e o muro constitucional que separava as duas visões desmoronou.
Nosso ministro da Justiça, John Ashcroft, principal personagem jurídico do país, foi capaz de dizer: "Dentre as
nações, a dos Estados Unidos é a única que compreendeu
que a fonte de seu caráter particular não é de ordem cívica
e temporal, mas de ordem divina e eterna. E, como reconhecemos que nossa fonte é eterna, os Estados Unidos se
tornaram uma nação à parte. Nosso único rei é Jesus".
Mitologias apocalípticas
Quanto a nosso presidente -alcoólico em via de cura e nascido duas vezes-, ele
afirma que não deve prestar contas senão a um pai acima
de seu pai terrestre e nos anuncia que seu filósofo preferido chama-se Jesus Cristo. O sucesso, entre americanos de
todas as confissões, de "A Paixão de Cristo" -esse filme
sanguinolento para os cristãos e feito por Mel Gibson, esse
hino sadomasoquista à transcendência por meio da dor física- também faz parte do pesadelo: é ao mesmo tempo
um de seus sintomas e uma de suas causas.
O que há talvez de mais conservador hoje, na era de Bush
2º, é constatar a que ponto os fundamentalistas cristãos
pesam nas eleições, seja nas locais ou na presidencial. Sua
influência é mais forte que a de qualquer outro grupo
identificável em termos demográficos. A vida política dos
Estados Unidos chega a ser moldada por mitologias do
fim dos tempos, por bizarras fantasias escatológicas extraídas de trechos das escrituras cristãs, em particular do
Apocalipse. De muito longe, as melhores vendagens de livros em nosso país nos últimos cinco anos são as dos 12
volumes da famosa série "Left Behind" [no Brasil, "Deixados para Trás", ed. United Press], de Tim Lahaye.
Esses livros, vendidos aos milhões, são relatos que põem
em cena uma visão teológica fantástica formulada no século 19 por dois pastores protestantes fundamentalistas.
Para milhões de indivíduos, essas narrativas são literalmente verdadeiras, tanto em sua dimensão histórica
quanto profética. Eles acreditam na existência de certas
condições históricas que, uma vez preenchidas, provocarão a segunda vinda do Cristo à Terra -um evento que se
prepara há 2.000 anos.
Vamos resumir esse relato bastante complexo e pesado
(afinal, ocupa 12 volumes). Primeiro, é preciso que o Estado de Israel seja restabelecido nas "terras bíblicas". O terceiro templo deve ser construído no local da mesquita de
Omar e da mesquita Al Aqsa. Essa construção fará as legiões do anticristo se atirarem contra Israel, e a última batalha dessa guerra acontecerá no vale de Armagedon.
Subida aos céus
Os judeus que se recusarem a se converter ao cristianismo serão queimados, e é nesse momento que o messias voltará à Terra. Durante esse combate
apocalíptico ocorrerá o que chamam de "rapto". É graças
a esse "rapto" que os cristãos renascidos ("born again
Christians") verão seus corpos subirem ao céu, estejam
eles vivos ou mortos. Os cemitérios se esvaziarão e os céus
se encherão de cristãos duas vezes nascidos em plena ascensão. Os renascidos que estiverem viajando de avião ou
dirigindo seus carros serão levados do veículo, que, sem
motorista, seguirá em qualquer direção até colidir. Sentados à direita de Deus, os cristãos salvos terão o privilégio
de contemplar a Terra do alto e ver seus adversários religiosos e políticos sofrerem cruelmente furúnculos e outras
aflições, assim como gafanhotos e sapos virão atacá-los
durante alguns anos de atribulações que se seguirão.
Cerca de 15% do eleitorado americano está convencido
da verdade histórica e profética desse relato ou de outros
na mesma veia.
Em um sistema de dois partidos, isso é suficiente para
decidir o rumo das eleições. Esses eleitores são bem organizados e financiados e votarão no candidato republicano.
Karl Rove e os agentes do presidente cuidaram disso, remodelando de maneira adequada o programa e as prioridades do partido.
Certos ou errados, os fundamentalistas cristãos acreditam que George W. Bush é um dos seus assim como pensaram de Ronald Reagan. Para eles, o que agita o Oriente
Médio não é um conflito político: é a fase intermediária de
um confronto teológico, e o Deus cristão está ganhando.
Por conseqüência, de acordo com o plano divino, eles
apóiam a política de Sharon na Cisjordânia e assumem a
defesa das colônias judaicas.
Desde que foi programada -isto é, desde 12 de setembro de 2001-, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos
lhes pareceu uma etapa crucial no que deve levar ao "rapto" e à segunda vinda de Cristo. Não está de fato escrito no
capítulo nove do apocalipse que devemos libertar "os quatro anjos que estão acorrentados sobre o grande rio Eufrates" para que eles "levem à morte um terço dos homens"?
Uma guerra contra o islã, seja qual for o lugar em que
se desenrole, é forçosamente uma guerra santa -uma
"jihad" cristã conduzida das alturas celestiais-, com
um coro de deputados homens e mulheres (republicanos, mas também diversos democratas) que cantam
nosso Deus sob a forma de uma poderosa fortaleza, enquanto nossos soldados cristãos, em passo marcial,
afundam cada vez mais nas areias movediças.
Entretanto, para tornar o país mais seguro, tratamos
em todo o território aqueles que duvidam da veracidade desse relato não como oponentes em um debate,
mas como heréticos: eles são caçados, reduzidos ao silêncio e condenados ao desprezo. Além disso, como
hoje vivemos os últimos dias do mundo, não há motivo
para sacrificar-se pelas futuras gerações, nenhum sentido em acreditar nesse antiquado sonho americano
que repousava sobre uma hipótese bem secular, segundo a qual poderíamos legar um mundo melhor a nossos filhos e netos se cuidássemos suficientemente da
economia pessoal como da economia pública e se tratássemos o outro da maneira como desejamos ser tratados. No pesadelo americano, não há um futuro ainda
não criado e modificável pelo qual trabalhar, não há futuro a preparar para nossos descendentes.
O mapa do consumo
Assim, quando em 11 de setembro de 2001 os asseclas de Bin Laden cometeram
seus atentados contra o World Trade Center e o Pentágono, nossos dirigentes não nos deram um mapa do
caminho: eles nos pediram para consumir. Eles não
reorganizaram a economia nacional para torná-la independente do petróleo do Oriente Médio: lançaram
um novo veículo utilitário 4x4 de lazer e planejaram
uma invasão no Iraque.
Quando um grupo de primatas superiores -chimpanzés ou gorilas- começa a sentir falta de alimento,
os machos adultos são acometidos de loucura devoradora, de voracidade apocalíptica. Eles engolem todas as
bananas e todas as frutas que restam no território do
grupo. E, quando não há mais bananas e frutas, eles invadem o território de seus vizinhos e se tornam seus senhores por meio da violência.
Nós, seres humanos, somos uma variedade de primatas superiores, e nosso grau de evolução não nos impede de ter um acesso de loucura devoradora. Pelo contrário. A única diferença entre os chimpanzés e nós é
que inventamos uma teologia para justificá-la.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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