|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ brasil 505 d.C.
O filósofo relembra a convivência
intelectual com o crítico Roberto Schwarz
desde os anos 1950
e aponta suas divergências teóricas
Retoques a uma sereia desmistificada
Bento Prado Jr.
Devo dizer, antes de mais nada,
quão feliz me sinto por poder
participar desta justa homenagem a meu velho amigo Roberto
Schwarz. Felicidade que não deixa de ser
sombreada por um mínimo de inquietação. Com efeito, que poderia eu dizer de
pertinente, nesta ocasião, sem limitar-me à
rememoração de uma longa amizade? Depois de muito meditar, acabei por decidir,
sob o título acima inscrito, retomar criticamente meu texto de 1968, que tentava examinar a primeira obra de meu amigo. O título é roubado a André Gide que, depois de
publicar seu "Retour de Russie" [Retorno
da Rússia], francamente apologético do
universo soviético, escreveu seus "Retouches au Retour de Russie" [Retoques ao
Retorno da Rússia], em que a apologia cede lugar a um distanciamento crítico.
No meu caso, aqui e agora, trata-se sempre de rememorar um momento de nossa
convivência intelectual. Mas de uma rememoração que é exatamente uma "Erinnerung", no sentido hegeliano da palavra, isto é, uma reinteriorização, uma reincorporação do passado que não deixa intacto o
presente, pois implica em "Aufhebung"
-que, no mesmo vocabulário, significa,
ao mesmo tempo, superação, cancelamento e conservação. Processo essencial do devir do espírito que é sempre superação de
si mesmo e autocrítica.
Não se trata de dizer que nada valia no
ensaio que consagrei a "A Sereia e o Desconfiado". Trata-se antes de mostrar como
o texto que escrevi, há quase 40 anos, está
efetivamente distante de mim, como jamais o reescreveria tal e qual, mas, sobretudo, trata-se de sublinhar algumas ambigüidades do texto que se prestaram a uma
leitura equivocada.
Ao fazê-lo, completo uma tarefa já iniciada, pois no início dos anos 80 (há uns 20
anos), por ocasião de uma iniciativa da
Unesp, em Araraquara, tive a oportunidade de fazer, numa conferência largamente
improvisada, uma autocrítica de outro escrito meu de 1968, consagrado, a pedido da
revista italiana "Aut Aut" (em um número
que contou também com a colaboração de
Roberto Schwarz), ao "Problema da Filosofia no Brasil".
No texto original, baseado em parte em
Antonio Candido e Michel Foucault (A.
Candido, ao ler o texto, acrescentou, com o
humor de sempre: "Michel vai gostar muito do paralelo sugerido") e sobretudo no
clássico "método de análise estrutural" de
Martial Guéroult, distanciava-me levemente de meu mestre João Cruz Costa em
nome de um vago anti-historicismo. Valia-me, para tanto, do privilégio concedido
por A. Candido à idéia de sistema literário
e ao privilégio, concedido por Foucault, à
idéia de estrutura: no segundo caso, é claro, eu seguia passivamente a moda da filosofia francesa da época.
Falando em Araraquara, insisti no inadequado do amálgama Candido/Foucault e
declarei que meu texto da "Aut Aut" era
cego para a importância da história social
na história da filosofia (sem jamais, todavia, fazer da história da filosofia uma simples "história das idéias").
Estatuto da linguagem
É a mesma
operação que é preciso levar a cabo a propósito do ensaio consagrado ao livro de
Roberto Schwarz. A moda de então, na filosofia francesa, levou-me a utilizar novamente Foucault (que, aliás, não deve ser
condenado às trevas exteriores, longe disso, embora tenha comemorado a tomada
do poder no Irã, por Khomeini, com um
ensaio intitulado "O Retorno do Espiritual
em Política"). E a censurar, no excelente
escritor (cujo livro insistia eu -roubando
uma metáfora foucaultiana, contra "as
moscas cegas da reflexão", que diziam que
era mal escrito- que era escrito como um
poema), uma certa indeterminação quanto ao estatuto da linguagem literária (pelo
menos da literatura dos séculos 19 e 20, já
que o estatuto dos matemas e dos poemas
varia muito ao longo da história da literatura ocidental -vide o caso de Lucrécio).
Insistência ou mania de filósofo, mais do
que crítico literário, que levaria alguns a
crer que, na ocasião, eu aderia a alguma
forma de "absoluto literário" ou à tese (na
moda então) da "intransitividade do verbo
poético", que testemunhava uma espécie
de mallarmesismo muito tardio e, digamos, fora de lugar.
Na verdade, eu e Roberto não estávamos,
creio, tão distantes um do outro. Eu dizia,
reconheço, que na literatura encontramos
uma "verdade que não é do mundo", mas
acrescentava logo a seguir: "Mas que pesa,
no entanto, e que ilumina". Com isso, queria insistir no fato de que há uma espécie de
"verdade literária" que precede, de algum
modo, a verdade das chamadas ciências
sociais. Roberto recentemente dizia, em
entrevista, se não me engano, coisa muito
parecida. E não é verdade que o próprio
Marx afirmava que os romances de Balzac,
a despeito do conservadorismo do autor,
eram mais reveladores do essencial da história social da França do século 19 do que a
obra "científica" dos historiadores?
Tal idéia, já presente em meu ensaio antigo, foi retomada mais recentemente para
sublinhar o caráter excepcional da obra de
crítica literária de nossos maiores: Sérgio
Buarque de Holanda e Antonio Candido.
Talvez houvesse apenas um ponto muito
tópico de discordância real. Falo da interpretação que Roberto dá do filme "Oito e
Meio", de Fellini. A despeito de acertos formidáveis que sublinho em meu ensaio,
continuo achando que, ao contrário do
que diz Roberto, no filme, a rememoração
da infância não é apenas uma superfície
onde transparece o essencial: a transformação do cinema em indústria.
Continuo achando que tal visão é muito
parecida com a do duro crítico contratado
pelo personagem central e que é enforcado
no meio do filme ou na imaginação do diretor hesitante. Eu brincava no texto, dizendo que jamais Roberto poderia sair de
dentro do filme e escrever sobre ele porque
já fora enforcado dentro do próprio filme:
como um soldado morto em 1941 jamais
poderia escrever a história da Segunda
Guerra Mundial.
Juventude Socialista
Mas, para os
mais jovens, talvez fosse interessante relembrar a gênese do meu texto. Ele me foi
solicitado pela redação da revista "Teoria e
Prática", que pensava promover, como indica seu título, crítica da cultura e crítica
política de uma perspectiva revolucionária. Por que o pedido? Amigo dos editores
da revista, eu não fazia parte dela, embora
participasse freqüentemente das reuniões
da comissão editorial. Mas ninguém ignorava nossa antiga convivência intelectual
-esse misto de cumplicidade (jamais do
ponto de vista da prática autopromocional, tão freqüente entre poetas e literatos) e
de polêmica sempre virtual. Tratava-se,
para a revista, de trazer à luz, de incentivar
o debate entre candidatos a escritor que
partilhavam ideais políticos; ou entre pessoas que podiam dizer: "Socialismo, sim!
Mas com Proust e Kafka!".
De fato, grande era a cumplicidade. Nós
nos cruzamos pela primeira vez na Juventude Socialista, em 1955 (onde fui tesoureiro, o que dá uma idéia da eficácia da organização..., mas onde podíamos ouvir versões do marxismo livres do dogmatismo
stalinista, como nos discursos de Paul Singer e Maurício Tractenberg). Reencontramo-nos, em 1957, no saguão da Biblioteca
Municipal, quando Roberto veio falar-me
de dois poetas: Carlos Drummond de Andrade (que já era minha maior paixão literária) e Gottfried Benn, poeta alemão de
que jamais tinha ouvido falar.
Em 1957 ou 1958, ouvíamos juntos
("chez" Jacó e Gita Guinsburg) os cursos
de seu mestre Anatol Rosenfeld, que logo
em seguida organizou, conosco e colegas
minhas, em casa de Lúcia Seixas (que logo
se tornaria Lúcia Prado), um seminário de
um ano sobre "A Morte em Veneza", de
Thomas Mann. De seu lado, na segunda
metade dos anos 1950, Roberto descobria,
meio por acaso, na livraria Herder, os autores da Escola de Frankfurt, de que ninguém falava então.
Na mesma ocasião, eu descobria, também por puro acaso, na livraria Francesa, o
livro de Alexandre Kojève sobre Hegel. Simultaneamente, pois, redescobríamos
Hegel, que impregnaria nossas imaginações fascinadas pela articulação (ou desarticulação) entre literatura e política.
Era normal, assim, que me solicitassem o texto em pauta, para melhor mostrar a identidade entre a
identidade e a diferença, para guardar o vocabulário de Hegel. Uma diferença que se mostrava na tensão
entre a germanofilia de Roberto e
minha francofilia (tensão pouco grave, já que, como dizia o Lebrun, desde Madame de Stäel os franceses
passaram a pensar um pouco à maneira alemã). Lembro-me (para
acrescentar uma anedota) que em
1964 apresentei Paulo Arantes a Roberto Schwarz; logo a seguir, Paulo
veio me dizer, com ironia, que se
sentia como o Hans Castorp de "A
Montanha Mágica", dividido entre
dois mestres. A que acrescentei: nesse caso, sou o Settembrini, porque,
embora reconhecendo a grandeza
da obra de Lukács, não gostava de
seu livro "A Destruição da Razão".
Aliás, encontrando-me recentemente com seu discípulo, hoje radicado na Inglaterra, István Mészáros,
disse-lhe que escrevera algures que
esse livro era uma má obra de um
grande autor. O antigo discípulo redargüiu: "Isso porque você ignora as
concessões que teve de fazer à polícia
política, para poder publicar o livro!". Descobri então que não se tratava de um mau livro de um grande
autor, mas de uma "obra coletiva".
Depois de então, envelhecemos ou
"amadurecemos". Roberto escreveu
seu Machado e continua a escrever.
De minha parte, recomecei meu itinerário de pesquisa, talvez condenado a retornar a meu ponto de partida. De qualquer maneira, hoje escreveria um ensaio bem diferente sobre
"A Sereia e o Desconfiado". Um ensaio certamente mais compreensivo,
que permitiria mais um recomeço
de conversa. De uma conversa que
nunca deixou de recomeçar.
Nota
Este texto foi lido por ocasião do encerramento de um ciclo de estudos sobre a obra
de Roberto Schwarz realizado na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, em agosto passado.
Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos
(SP) e professor emérito da USP. É autor de
"Presença e Campo Transcendental" (Edusp).
Texto Anterior: + cultura: A ilha do dia anterior Próximo Texto: + livros: A terra prometida e não resgatada Índice
|